Comissões cobradas pela ASF levantam dúvidas de legalidade
O regulador do seguros mudou a forma como cobra pela gestão dos fundos de acidentes de trabalho e de garantia automóvel. Fiscalização da ASF alega falta de sustentação jurídica.
A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) mudou, em 2020, a forma como passou a cobrar pela gestão do Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) e do Fundo de Garantia Automóvel (FGA). A nova metodologia fez soar os alarmes da Comissão de Fiscalização do próprio regulador que, além de assinalar que o cálculo da cobrança pela ASF não tem sustentação jurídica, também sugeriu ilegalidade financeira. A Inspeção Geral de Finanças terá concordado com esta comissão.
O regulador, liderado por Margarida Corrêa de Aguiar desde junho de 2019, identificava os custos diretamente imputados a estes dois fundos, FAT e FGA, nomeadamente despesas de pessoal e fornecimentos e serviços de terceiros, e acrescia um encargo variável comum difícil de individualizar. No final desse ano, a ASF alterou a metodologia e passou a calcular o seu fee de gestão através de um valor de comissão calculado sobre valor líquido da carteira de investimentos de cada um dos fundos.
Na prática essa mudança significou uma receita para a ASF de cerca de seis milhões de euros em 2020 com a gestão dos dois fundos públicos responsáveis pelas indemnizações aos lesados quando os responsáveis por um acidente de carro ou de trabalho não têm seguro. Em 2019, os montantes cobrados aos fundos totalizaram cerca de 1,2 milhões de euros, sendo no entanto de sinalizar que existe um “constrangimento de efetiva comparabilidade de realidades diferentes”, como sublinhou a Comissão de Fiscalização no parecer que consta no Relatório de Atividade e Contas Anuais de 2020.
Já para 2021, a entidade previa um valor de comissões de gestão do FAT e do FGA de 10,1 milhões, um aumento de 70,2% face ao ano anterior. Ao contrário, a estimativa para as taxas de supervisão, que são pagas pelas empresas seguradoras, é de uma redução de 13,8%.
“A ASF limita-se a ser ressarcida pelas despesas incorridas com a gestão dos dois fundos, FGA e FAT, não beneficiando de qualquer ganho adicional”, afirmou a ECO fonte da administração da ASF, acrescentando que “no âmbito da gestão dos referidos fundos, foi adotada uma nova metodologia baseada na imputação, direta e indireta, dos custos incorridos com administração dos mesmos, não se configurando a existência de qualquer ilegalidade, tendo os fundos sido sempre objeto da cobrança de comissões”.
A BDO & Associados, sociedade auditora das contas da ASF, refere-se a este tema no seu relato sobre a auditoria das demonstrações financeiras de 2020, salientando que “a comissão de gestão calculada com base no valor dos fundos é o modelo comummente utilizado pela maioria dos fundos (mobiliários, imobiliários, de pensões, de capital de risco, etc…), que habitualmente consta dos respetivos regulamentos de gestão desses fundos”, conclui.
Quando a comparação é com os outros supervisores financeiros, Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), a prática é diferente, em particular nos valores que cobram. O BdP, por exemplo, não cobra qualquer comissão por gerir o Fundo de Garantia de Depósitos e o valor que a CMVM recebe pela gestão do Sistema de Indemnização aos Investidores é simbólico, muito longe dos dez milhões de euros que a ASF pretende cobrar ao FAT e ao FGA.
A decisão está agora nas Finanças que, em janeiro de 2020, no despacho em que aprovou o plano de atividades e propostas de orçamentos, “enfatizava” a questão da ilegalidade financeira e de falta de sustentação jurídica levantada pela Comissão de Fiscalização.
A Comissão de Fiscalização, num parecer de 18 de novembro de 2019 que é reproduzido no relatório de 2020, sinalizou que “os planos e orçamentos apresentados contemplam uma nova metodologia aparentemente não baseada na agregação de custos suportados pela ASF, mas em comissões de gestão a cobrar pela ASF ao FGA e ao FAT. Atendendo à novidade desta solução e aos princípios aplicáveis neste domínio, de tipicidade de receitas e despesas (…), considera-se que a eventual implementação carecerá de uma adequada clarificação sobre a sustentabilidade jurídica da solução e de uma explicitação dos parâmetros ou critérios utilizados para calcular as comissões”.
Já nas conclusões do parecer sobre o relatório, a Comissão de Fiscalização acaba por aprovar o documento, apesar de salientar as observações e recomendações relativamente a estes pontos, nomeadamente colocando “significativa ênfase sobre esse problema de legalidade financeira a merecer devida atenção e seguimento”.
O Relatório de Atividade e Contas Anuais foi acompanhado de uma nota técnica da ASF sobre a cobrança das comissões de gestão, com a sustentação para a prática. Nesta nota, o supervisor faz um enquadramento onde recorda que as comissões têm sido cobradas “ao longo de mais de duas décadas”, sempre tendo sido considerado que têm “enquadramento legal”. No entanto, o modelo de cálculo “carecia de aperfeiçoamento”, defendem, pelo que foi instituído um diferente.
O Conselho de Administração vê a nova metodologia como “legítima”, mas decidiu consultar dois “reputados professores de Direito”, Tiago Duarte e Eduardo Paz Ferreira, sendo que ambos defendem a legalidade financeira da prática. A ASF admite, ainda assim, que nada impede a administração de ajustar as comissões orçamentadas ao “concreto desenvolvimento da despesa”.
Ao que ECO apurou, toda a fundamentação para a nova metodologia de cobrança foi entregue pela ASF às Finanças e já existe um parecer final da parte do ministério depois do entendimento da Inspeção Geral de Finanças (IGF). O parecer da IGF, segundo soube o ECO, indica que não existe base legal para a cobrança destas comissões de gestão. Com este entendimento, o plano de atividades da ASF não deverá ter “luz verde” das Finanças, pelo que poderá ter de ser revisto.
O ECO questionou o Ministério das Finanças sobre a situação, mas não obteve resposta até à publicação do artigo.
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