Maioria absoluta vai aumentar conflitualidade social
António Saraiva, António Lobo Xavier, Isabel Gil, Pedro Duarte e Vítor Bento debateram os riscos e oportunidades da vitória do PS nas eleições. Apostam no legado que António Costa quererá deixar.
A Câmara de Comércio Americana em Portugal (AmCham) reuniu num hotel em Lisboa cinco oradores para debater o resultado das legislativas que deram a maioria absoluta ao PS. António Saraiva, António Lobo Xavier, Isabel Gil, Pedro Duarte e Vítor Bento discutiram as causas da vitória dos socialistas, da derrota do PSD e os riscos e oportunidades dos próximos quatro anos. Numa coisa todos concordam: é preciso fazer diferente e avançar com reformas que até aqui não foram feitas. Há quem tenha esperança que seja desta, porque António Costa quererá deixar um legado. A contestação social vai aumentar.
A conversa começou pelo diagnóstico. Para Isabel Gil, reitora da Universidade Católica, os eleitores escolheram “a estabilidade, a previsibilidade, a manutenção de um status quo“. “O eleitorado, que saiu de uma pandemia, está de certa forma amedrontado pela incerteza”, por isso “votou num modelo de sociedade que já conhece e que prevê que possa continuar a trazer segurança”, acrescenta.
Na opinião da também presidente da Federação Internacional de Universidades Católicas, os portugueses não gostam de arriscar, “ainda não faz parte daquilo que é o projeto de vida e desenvolvimento do nosso modelo social” e “isso ficou muito evidente nos resultados destas eleições”.
Vítor Bento elaborou um gráfico, que já circula nas redes sociais, que mostra que os pensionistas, outros beneficiários de apoios sociais, os funcionários públicos e os que ganham o salário mínimo somam uma larga maioria dos eleitores, o que não acontecia em 1980. Enquanto o PS conseguiu falar para esse eleitorado, o mesmo não aconteceu com o PSD e a direita. “A sociedade de hoje não é a sociedade de há 40 anos. Ou há propostas políticas que criem coligações sociais com base na realidade social que existe ou são propostas de andar a tatear. Não têm fundamento”, afirmou o presidente da Associação Portuguesa de Bancos.
E recorre a um exemplo: “Uma das propostas que surgiu, e eu sou totalmente de acordo, é sobre a redução do IRS. Mas 80% do IRS é pago por 16% das famílias. Qual é a coligação social que se consegue? O que é que isso interessa aos 50% ou 60% da população que ou não paga IRS ou vive do IRS que os outros pagam?” Tem de haver, no mínimo, uma mensagem para os dois lados. Se isto não for criado, é óbvio que a reação de um dos lados vai ser hostil”, remata.
“Qual é a mensagem que quem quer governar tem para estes 60%? Um leitmotiv que podia ser um agregador de uma grande coligação social que interessava a todos é a dos salários”, acrescenta o também professor da Universidade Católica e do ISCSP. A subida do salário médio é provavelmente um tema que consegue congregar o interesse dos trabalhadores e do empresariado, sustenta.
"A população idosa não pode ter medos. Alguém tem de lhes falar das alternativas sem lhes provocar medos. Sem isso, as coisas serão sempre assim.”
António Lobo Xavier diz que a vitória do PS não o surpreendeu. “A surpresa é os políticos não saberem para quem falam”. “Como é que é possível ir a um debate na televisão dizer que vai mudar a Segurança Social e que vai pensar no sistema de capitalização, mas não tem uma ideia concreta? Se não sabe, não fala. Porque nesse mesmo momento, 4,5 milhões de pessoas, que não têm capacidade de perceber o que está na cabeça de um político, que é para as reformas futuras e não as já atribuídas, deitam-se à noite angustiadas com aquele homem que pode ganhar as eleições”, afirmou o jurista e comentador político, referindo-se a Rui Rio, sem, no entanto, dizer o nome. “A população idosa não pode ter medos. Alguém tem de lhes falar das alternativas sem lhes provocar medos. Sem isso, as coisas serão sempre assim”.
Oportunidade para reformar
António Saraiva realça que a maioria absoluta é uma oportunidade para “fazer diferente”. “É uma responsabilidade acrescida para encetar reformas“, defende o presidente da CIP, elencando algumas áreas que considera prioritárias: política fiscal, justiça e administração pública. “É preciso dar mais eficiência à máquina do Estado”, sublinha.
"Em 30 anos, um partido terá governado o país durante 24. O que está em causa não é qual o partido, é não ser um sinal saudável para a democracia.”
Pedro Duarte, diretor de Corporate, External & Legal Affairs da Microsoft, identificou três riscos e três oportunidades do resultado eleitoral de domingo. O antigo deputado do PSD teme “uma espécie de ‘mexicanização’ do regime”. “Em 30 anos, um partido terá governado o país durante 24. O que está em causa não é qual o partido, é não ser um sinal saudável para a democracia”.
Outro risco que identifica é a “perceção de autosuficiência”. “Não vai ser preciso negociar nada, decidiu, está decidido, ponto final, às vezes à volta de uma mesa por 3 ou 4 pessoas”, diz. Por último, teme um “autoconvencimento de que fórmula dos últimos anos foi uma fórmula de sucesso, uma fórmula mágica”, quando foi ajudada por circunstâncias favoráveis. “É preciso fazer diferente”, apela.
Quanto às oportunidades, Pedro Duarte salienta o “recentramento” da governação, que deixa de estar dependente do PCP ou do Bloco de Esquerda, e a “realidade única nas democracias ocidentais, tirando as bi-partidárias, em que dois partidos moderados têm 70% do parlamento. É uma vantagem gigantesca. Quem dera a muitos países”. A subida da extrema-direita, embora “preocupante”, acredita que não será uma tendência crescente e talvez “já tenha atingido o pico máximo”.
Por último considera “existirem condições ideais para um reformismo de médio e prazo no país“, graças à estabilidade política, e há maior capacidade de recrutamento de quadros para o Governo proporcionada pela maioria absoluta, os recursos financeiros dos fundos europeus e um contexto externo que ainda é favorável. O também presidente do Conselho para a Economia Digital da CIP destacou ainda que António Costa “vai beneficiar de um estado de graça pela forma como ganhou, por ser inesperado, porque a oposição durante uns tempos vai estar em convulsões, ao mesmo tempo que é um primeiro-ministro já experiente, com a lição estudada”.
Maioria absoluta vai aumentar contestação social
Sem o apoio parlamentar do PCP e do Bloco, todos esperam que o novo Governo enfrente maior contestação nas ruas e paralisações. “Acho que a conflitualidade vai aumentar”, afirma António Saraiva. Para o presidente da CIP, a sensação com que os partidos mais à esquerda passam de que foram injustiçados “vai levar à contestação na rua”. “É aí que vão tentar ganhar uma força que já não têm, mas que vão tentar demonstrar”, acrescenta.
“É expectável pensar que irá haver alguma instabilidade, sobretudo se as reformas tiverem a profundidade que se deseja. Depende muito da capacidade do Governo para negociar”, diz Isabel Gil. António Lobo Xavier também considera que se avançarem reformas, “isso vai gerar agitação social”.
“Se virem aí as mensagens do PCP, que não consegue aceitar a reação do eleitorado, acha que é uma injustiça. O Bloco de Esquerda também está em negação com o seu eleitorado. Se forem ver as redes sociais são todas apelos à subversão, alguma coisa haverá, mas contida”, acrescentou o jurista.
Que legado quer António Costa?
António Lobo Xavier vê, ainda assim, na maioria absoluta uma oportunidade que o primeiro-ministro quererá agarrar. “Como conseguiu uma maioria absoluta no fim da sua vida política, não se vai candidatar mais em Portugal, não tem nada a perder, nem ninguém para convencer. Tem apenas uma escolha, e espero que decida bem, que é a escolha entre ser conhecido como o político mais hábil e inteligente ou ser conhecido como o político que deixou algum legado quando teve a hipótese de aplicar as suas próprias ideias”, afirmou o sócio da Morais Leitão.
"Se deixar o país como ele está, ou um país baseado no consumo e nas preocupações de carteira, deixará um mau legado e uma péssima história para levar para as instâncias europeias.”
“Eu tenho ideia que um primeiro-ministro prático e inteligente possa arrepiar algum deste caminho e perceba que tem de deixar um legado. Se deixar o país como ele está, ou um país baseado no consumo e nas preocupações de carteira, deixará um mau legado e uma péssima história para levar para as instâncias europeias”, acrescentou.
Uma opinião partilhada por António Saraiva. “Das características que se conhece, António Costa tem ambições futuras ou em Portugal (Presidência da República) ou em instituições europeias. Se não fizer reformas, não terá cuidado devidamente do seu currículo“, disse.
Falta pensamento sistémico e sistemático
“Interessa perceber se com esta maioria e as reformas que já foram identificadas, e das quais o país necessita desesperadamente, se o Governo vai lutar por assumir uma intervenção em áreas que são cruciais para o reforço da nossa performance económica”, considera a reitora da Universidade Católica Portuguesa. Aponta a reforma da justiça como “absolutamente prioritária e essencial”, mas também na educação.
“Portugal tem um problema gravíssimo de necessidades de recursos humanos no ensino nos próximos anos”, alerta Isabel Gil. Uma realidade que considera ser “fruto de uma demonização política de décadas, de uma imagem degradada nos média e uma estrutura de remunerações que é confortável nos níveis mais elevados da profissão, mas que é miserável nos níveis mais baixos”.
Os problemas estendem-se ao ensino superior, que “tem um quadro regulatório asfixiante, que limita a autonomia das instituições” e defende que “o investimento em ciência não pode ser de curto prazo e meramente instrumental”.
“Em Portugal temos um problema de fundo e enquanto não o superarmos nós vamos ter dificuldade em resolver os grandes problemas: nós não pensamos”, defende Vítor Bento. “Somos mais virados para a ação do que para o pensamento. Somos mais virados para o curto prazo do que para o longo prazo. E não pensamos sistematicamente e sistemicamente”, acrescenta, defendo que faltam think tanks em Portugal, privados e públicos. Os partidos já os tiveram, mas a prática perdeu-se.
“Costumo dizer que somos muito apaixonados e motivados pelos fogos de palha. De vez em quando temos um entusiasmo e é como um fogo de palha, faz uma grande chama, ilumina bastante, mas apaga-se rapidamente. Temos pouca capacidade para o lume de braseiro, que é aquele que aquece, vai consumindo e vai aquecendo”, termina o presidente da Associação Portuguesa de Bancos.
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