Para Pedro Ferraz da Costa não houve nenhum acordo de aumento do salário mínimo porque a decisão já estava tomada. Foi o que considera uma “palhaçada”.
Acusa o Governo e sindicatos de “hipocrisia” por existir uma contradição entre este acordo e a defesa da contratação coletiva.
É tempo de falarmos de concertação social e do papel das empresas e empresários. O ex-presidente da CIP entre 1981 e 2001 e que lidera atualmente o Fórum para a Competitividade considera que não se pode considerar que tenha existido um acordo em matéria de salário mínimo uma vez que o valor já estava decidido entre o Governo e os partidos que o apoiam.
Defende a contratação coletiva e é contra a definição de uma salário mínimo por um conjunto de razões que vão desde o facto de prejudicar quem tem menos qualificações até a questões de liberdade — os governos não devem ter o direito de determinar a partir de que valor as pessoas podem ou não trabalhar.
Conversamos ainda sobre a dificuldade em viver com o salário mínimo e sobre as responsabilidades dos empresários e gestores, nesta segunda parte de uma entrevista, depois de se ter falado sobre a atual conjuntura.
A concertação não serve para nada?
Participei em dois acontecimentos importantes da concertação social. Um foi uma tentativa, com sucesso, conduzida pelo Dr. Ernani Lopes na altura do segundo acordo com o FMI, em que era preciso explicar às forças sindicais — e, na altura, as únicas que participavam eram as filiadas na UGT — de que tínhamos que atender à deterioração dos termos de troca por efeito dos dois choques petrolíferos. A política salarial não podia ser baseada só em dados da economia interna, tinha de ter em linha de conta a competitividade externa da economia. Isso conseguiu-se. E a resposta às políticas seguidas no segundo acordo com o FMI foram muito positivas e muito rápidas.
A segunda fase importante da concertação social foi no primeiro Governo do professor Cavaco Silva. Era necessário dar sinais, para as empresas e para os sindicatos, que tínhamos que reduzir a nossa taxa de inflação. E, portanto, os crescimentos da massa salarial tinham que ser discutidos a pensar na inflação futura, com o objetivo de ser mais baixa do que a passada. E conseguiu-se fazer isso.
A partir daí mais nada de significativo aconteceu na concertação social.
É uma feira de gado, como diz o ministro dos Negócios Estrangeiros?
Para mim, feira de gado não é depreciativo. As feiras de gado correm bem se houver muita transação. Neste caso, da concertação, não percebo que transação é que há.
Não houve sempre transações? Eu dou-te isto…
Mas do quê?
Quando lá esteve?
Houve esses casos, em que utilizamos a concertação social, — ainda não havia o Conselho Económico e Social – ,- como forma de discutir com os sindicatos o que deviam ser as balizas de uma política económica com sucesso.
Os parceiros sociais, com independência para fazer acordos produtivos, não deviam receber dinheiro do Estado nem da concertação social.
Identifica alguma correlação entre a estabilidade social e os acordos de concertação social e a existência de dinheiro nos fundos comunitários? Quando há dinheiro para distribuir há acordos?
Os parceiros sociais, com independência para fazer acordos produtivos, não deviam receber dinheiro do Estado nem da concertação social.
Mas recebem?
No meu tempo, não se recebia. Eu não deixava.
Não recebia a CIP?
Como a CIP não recebia os outros não recebiam.
E a CIP agora recebe?
Não sei, não conheço as contas.
Mas acabou de me dizer que recebem apoios do Estado.
Não sei. Como os outros recebem, também deve receber. Têm programas. Quando vemos sessões e debates e depois olha para baixo para ver quem apoia e é o [programa] Compete, mais a região norte e centro…
Identifica-se com a atual CIP?
Se eu me identifico? Sou sócio da associação portuguesa da indústria farmacêutica e dessa forma participo indiretamente. Não tenho qualquer lugar dentro das estruturas. Não conheço exatamente como é que se formam as decisões lá dentro. Que eu tinha uma maneira diferente de ver as coisas, é indiscutível que tinha. Mas isso… Se este presidente acabou por ser reeleito com uma maioria enorme, é porque os associados estão de acordo.
E está de acordo, o Dr. Ferraz da Costa?
Eu posso ter uma opinião diferente dos associados. Como presidente anterior da CIP não me fica bem estar a dar aqui opiniões divergentes.
Mas parece-lhe que é mais fácil fazer acordos quando há fundos comunitários?
Eu acho que não se fazem acordos.
Se o ministro falou em feira de gado, eu falaria numa palhaçada. (…) Então se já havia um acordo do PS com os outros partidos para fixar o Salário Mínimo naquela base, a discussão ali não é dissimulada? É o quê? (…) A única posição que as entidades patronais tinham que tomar ali era dizer que não era aceitável.
Este acordo do salário mínimo não é um acordo?
Se o ministro falou em feira de gado, eu falaria numa palhaçada. Não consigo perceber a base da discussão. E não percebo como é que se conseguiu só discutir um ponto em relação ao qual a decisão estava tomada ainda antes de a discussão começar.
Porque é que diz que a decisão estava tomada?
Então se já havia um acordo do PS com os outros partidos para fixar o Salário Mínimo naquela base, a discussão ali não é dissimulada? É o quê?
É uma discussão para compensações para aumentar o salário mínimo?
Mas que compensações? Praticamente não houve. A única posição que as entidades patronais tinham que tomar ali era dizer que não era aceitável.
Pessoalmente acho que temos vantagem em ter contratação coletiva setorial. É de uma enorme hipocrisia, quer do Governo, quer dos sindicatos, dizerem que querem fomentar a contratação coletiva e depois resolverem o problema da maioria dos trabalhadores através de uma medida de caráter administrativo, que é a fixação do salário mínimo.
Metade daqueles que poderiam estar interessados em ter uma participação sindical para melhorar o seu vencimento, tem o seu problema resolvido por decisão governamental e não pela negociação. Nós temos 30 mil salários mínimos fixados em Portugal nas diversas convenções coletivas e nos diversos níveis.
Nós também temos de ter uma visão ideológica do que andamos a fazer. Se acreditamos nas empresas privadas e na economia de mercado, temos que acreditar que o diálogo social se faz dentro das empresas e não é o primeiro-ministro a decidir os aumentos de um quarto da população portuguesa.
Portanto, era desnecessário o salário mínimo?
Sou contra. Acho que o Estado se augura demasiados direitos quando diz a um indivíduo que o ‘senhor por esse trabalho não pode trabalhar, só por aquele’. Há muitas pessoas que não têm qualificações, porque não as tinham, porque não as renovaram, ninguém contribuiu para a modernização dos seus saberes e têm dificuldades em encontrar um trabalho rentável a determinado nível e ficam fora do mercado de trabalho. Um dos inconvenientes conhecidos da fixação demasiado elevada do Salário Mínimo é que isso discrimina contra os menos qualificados.
Mas admitindo que por razões políticas, e não económicas, a sociedade portuguesa ambiciona ter um Salário Mínimo. Um dos argumentos é: todos têm, também queremos ter. (É mentira. A Alemanha só tem desde 2015, a Itália não tem. Há vários países dos melhores em termos de rendimento que não têm.) Mas nessa altura dizemos: vamos discutir o salário mínimo. Quais são as condições que temos que dar a essa discussão? Para que isso não agrave um problema que temos: uma percentagem muito elevada de desempregados de longa duração, independentemente do nível absoluto da taxa de desemprego ser elevada?
O que se vê, de todos os estudos empíricos que existem, é que o salário mínimo não devia estar acima de 60% da mediana dos salários. E nós estamos a puxá-lo para cima de uma forma impressionante, a crescer 5% ao ano, com o país a crescer 1 e tal.
Há uma outra razão pela qual eu não percebo por que é que as confederações patronais entram nesta discussão: nós também temos de ter uma visão ideológica do que andamos a fazer. Se acreditamos nas empresas privadas e na economia de mercado, temos que acreditar que o diálogo social se faz dentro das empresas e não é o primeiro-ministro a decidir os aumentos de um quarto da população portuguesa. Não são as empresas que dão o aumento, é o António Costa.
Não é António Costa que passa o cheque…
Não sei. Ele até depois vai dar compensações aos que não podem passar o cheque sozinhos.
E essas compensações são suficientes?
Eu não sei se são suficientes. Quem assinou aquilo parece que achou que eram. Ou achou que não tinha outra hipótese ou nem teve coragem, nem ânimo para lutar contra aquilo.
Vou fazer uma pergunta que se houve muito à esquerda fazer: Conseguia viver com o salário mínimo?
Eu acho isso uma pergunta demagógica.
Porquê?
Porque eu preparei-me para não ter de viver com o salário mínimo. Os meus pais preparam-me para isso. Falo quatro ou cinco línguas estrangeiras, sou conhecedor de um conjunto de matérias. Se não trabalhasse em Portugal trabalhava em qualquer outro país.
Mas a sociedade como um todo tem que se preocupar com estas pessoas que só conseguem obter o salário mínimo? Que tipo de empatia tem para essas pessoas?
Estamos neste momento com um salário mínimo que, em termos de paridade do poder compra, é 73% da média europeia. E temos uma produtividade que é 66% da média europeia. Acha que é sustentável ter sistematicamente salários acima da produtividade?
Mas isso é o valor macroeconómico. Há empresas que conseguem pagar mais. Não tem simpatia com argumentos que dizem que os gestores ou gerem mal as empresas ou fazem distribuição do valor gerado…
Quase tudo o que é política macroeconómica não é conducente a que a vida das empresas seja melhor. Temos tido aumentos da tributação, imprevisibilidade… E temos outra coisa que é muito mais significativa do que a minha opinião, ou a sua, que é como os investidores estrangeiros olham para nós. E eles não acham que Portugal seja país para investir, por razões objetivas.
As empresas são vistas como qualquer coisa que se deve ordenhar fiscalmente.
Deixe-me só voltar à questão dos empresários: quando olhamos para alguns gestores ou empresários, o que verificamos, comparativamente com outros países, é que eles se fazem pagar muito bem, que a distribuição do que é gerado na empresa é assimetricamente concentrado no acionista…
Se olhar para os dados da central de balanços do Banco de Portugal, temos taxas de rentabilidade baixíssimas no setor empresarial. Porquê? Independentemente dessa visão de luta de classes — se são os gestores ou trabalhadores que são bons — , é porque continuamos a estar onde não é possível pagar bem, nem a uns nem a outros. Se for decompor a estrutura das nossas exportações, a fabricação de tshirts continua a ser das áreas mais importantes do têxtil. Acha que alguém pode ganhar ou pagar dinheiro a fazer tshirts, que se fazem no Paquistão ou no Vietname?
Mas por que razão é que os empresários insistem?
O que quer que façam? Fecham as empresas e vai tudo para o desemprego? Muitos têm como único objetivo sobreviver. Não é possível entrar nos novos setores com uma taxa de formação de capital fixo como as que temos tido nos últimos anos, que é inferior as amortizações do ano. Ou seja, nós temos um capital produtivo que se tem desvalorizado progressivamente. E se ficarmos só nos setores em que já estávamos, passamos a ser aquilo a que se chama obsoletos. Temos uma estrutura de comércio externo que, ainda hoje, é mais parecida com a de um país em via de desenvolvimento do que com um país de futuro.
A maior parte das empresas não são empresas. Temos 49% do emprego concentrado em microempresas. São empresas que existem por razões fiscais. As pessoas têm trabalho individual e põem-se sob a forma de empresa. Em linguagem corrente: ‘arranjas uma coisa para meter despesas’.
Mas por que é que os empresários não mudam?
Porque não há investimento. Porque não há resultados. Nada está feito para haver resultados. As empresas são vistas como qualquer coisa que se deve ordenhar fiscalmente. Isso é o que acontece em termos globais.
Mas a maior parte das empresas não paga impostos.
A maior parte das empresas não são empresas. Temos 49% do emprego concentrado em microempresas. São empresas que existem por razões fiscais. As pessoas têm trabalho individual e põem-se sob a forma de empresa. Em linguagem corrente: ‘arranjas uma coisa para meter despesas’. Não é para ter lucros, é para pagarem o ordenado à mulher e à filha. Sempre ficam com descontos para a segurança social, mais as despesas do carro e do gasóleo. Não é dessas empresas que vamos esperar qualquer desenvolvimento futuro. Temos, na nossa economia, uma percentagem muita pequena de empresas médias e grandes, quando comparamos com os outros países europeus, até com a nossa vizinha Espanha.
Temos poucas empresas com dimensão para poderem ir para o mercado internacional. O nosso crescimento vai depender fundamentalmente de aumentarmos as nossas exportações. E só aumentamos as exportações se tivermos mais exportadores e de maior dimensão. Isso está a acontecer muito lentamente.
Mas está a acontecer.
Não é aceitável que aqui aconteça muito mais devagar do que em todos os países do Leste Europeu que entraram na União Europeia.
O que é que o Governo podia fazer melhor para acelerar o aumento das exportações?
Tinha que ter uma vida financeira mais equilibrada, impostos mais aceitáveis, estabilidade das regras fiscais. Tinha que ter uma justiça económica mais célere e ter uma legislação laboral que favorecesse a mudança, a inovação, os novos e não o contrário.
Há pouco não me respondeu como é que se vive com aquele salário? Considera a pergunta demagógica…
Eu respondo-lhe. Considero demagógica, porque a nossa produtividade é 66% da média europeia, os nossos salários são 73% e o nosso consumo anda pelos 80% da União Europeia. Como viajo para países menos desenvolvidos eu digo-lhe: E como é que se vive com 100 dólares por mês? Ou com 50? Muito mal.
Nós devíamos ter como objetivo aproximarmo-nos daqueles que estão melhor. E isso não é possível sem nos aproximarmos dos níveis de produtividade que eles têm. Os salários têm que ser uma compensação dos níveis de produtividade.
É responsabilidade da classe empresarial fazer investimentos que lhe permitam situar-se em áreas onde existe maior produtividade e onde paga melhor. Há muitos que fazem isso, mas não é suficiente. Temos um conjunto de pesos mortos na economia. Temos não sei quantas empresas, projetos imobiliários, milhares de milhões que estão pendurados na Caixa e que não são empresas, são zombies, fingem que existem em termos autónomos.
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Ferraz da Costa: “Não são as empresas que dão os aumentos, é António Costa”
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