Leonor Pissarra é a sócia responsável pelo Departamento de Life Sciences & Healthcare da SRS Legal. À Advocatus fala dos maiores desafios que o direito da Saúde enfrenta atualmente em Portugal.
Leonor Pissarra é a sócia responsável pelo Departamento de Life Sciences & Healthcare da SRS Legal. Com uma carreira na área jurídica com mais de 25 anos, é reconhecida na área da indústria farmacêutica e de biotecnologia. Tem assessorado clientes em questões regulatórias complexas, propriedade intelectual, compliance e governança no setor da saúde. Desde outubro de 2024 que é sócia na SRS Legal, depois de mais de 13 anos como Country Chief Legal Officer & Board Member na Novartis Farma – Produtos Farmacêuticos. De 1998 a 2011 foi advogada coordenadora na VdA – Vieira de Almeida & Associados.
Quais são os principais clientes do departamento de Life Sciences & Healthcare da SRS Legal em termos de tipo?
No nosso Departamento de Life Sciences & Healthcare, trabalhamos com uma série diversificada de clientes que abrangem vários segmentos do setor da saúde.
Temos como clientes principais grandes empresas farmacêuticas, que atuam na pesquisa, desenvolvimento e comercialização de medicamentos inovadores. Estas empresas necessitam frequentemente de aconselhamento jurídico em questões regulatórias (por exemplo, questões relacionadas com preços e comparticipação e acesso ao mercado de produtos inovadores), contratuais que envolvem o seu negócio em Portugal e também em outras matérias como, por exemplo, ensaios clínicos, promoção, propriedade intelectual e patentes.
Apoiamos também empresas de dispositivos médicos, dando-lhes suporte no registo/notificação junto da autoridade reguladora (INFARMED) e bem assim em todas as questões regulatórias associadas à respetiva comercialização.
Os prestadores de cuidados de saúde, tais como hospitais e redes de clínicas, são outro tipo de clientes muito relevante para a SRS Legal. Estes clientes lidam com questões jurídicas que vão desde a preparação e gestão de contratos de fornecimento e de prestação de serviços médicos, até questões relacionadas com a responsabilidade civil médica e compliance regulatório.
Além disso, damos apoio a médicos e profissionais de saúde em todas as questões relacionadas com responsabilidade médica, incluindo o seu patrocínio no âmbito de ações judiciais (cíveis e penais) de responsabilidade médica.
Com o crescente avanço da tecnologia da saúde, também temos clientes que são startups de telemedicina, empresas de IA aplicada à saúde e plataformas digitais que desenvolvem soluções inovadoras para o cuidado e monitorização da saúde.
Quais são os principais diplomas que regulamentam esta área em Portugal? São suficientes?
Os principais diplomas que regulamentam a área da saúde em Portugal, como a Lei de Bases da Saúde, fornecem um quadro sólido para a organização e funcionamento do setor. As leis existentes abrangem matérias como o acesso aos cuidados de saúde, a investigação e desenvolvimento, a regulação e financiamento de medicamentos e dispositivos médicos, e a proteção dos direitos dos doentes.
O que falta, talvez, é uma certa flexibilidade legislativa que permita uma adaptação mais ágil às inovações. Com efeito, a área da saúde está a evoluir de forma ultrarrápida, principalmente com o impacto das novas tecnologias, como a inteligência artificial, a edição genética (gene editing), a medicina personalizada e a telemedicina. Por isso, embora a legislação vigente seja sólida, há um espaço crescente para a sua adaptação e atualização, tornando-se essencial criar normas mais específicas que equilibrem a segurança, a eficácia e a promoção de novas tecnologias, para garantir que o sistema de saúde continue eficaz, seguro e acessível a todos.
Por outro lado, os riscos associados ao armazenamento e uso de dados de saúde tornam a regulamentação da privacidade uma prioridade. A implementação de legislação como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) é um passo significativo, mas a crescente digitalização no setor exige uma aplicação ainda mais rigorosa e adaptações às novas realidades tecnológicas.
Também não devemos esquecer os desafios éticos que surgem com os progressos no setor. Questões como o consentimento informado em investigação clínica ou a utilização de dados genéticos exigem regulamentações mais detalhadas que respeitem os valores éticos e a dignidade humana, garantindo que as práticas no setor da saúde são justas e transparentes.
Por fim, crises como as pandemias (como a recente COVID-19) revelaram a absoluta necessidade da existência de um sistema regulatório ágil, capaz de enfrentar e dar resposta adequada a emergências de saúde pública enquanto garante a equidade no acesso aos recursos.
Assim, enquanto os diplomas existentes representam uma base sólida, a evolução contínua do setor da saúde, tanto em termos tecnológicos quanto éticos, exige uma atualização constante das normas aplicáveis. Isso assegurará que as leis permanecem suficientes para proteger os direitos dos doentes, promover a inovação e garantir a qualidade nos cuidados de saúde prestados.
O que falta, talvez, é uma certa flexibilidade legislativa que permita uma adaptação mais ágil às inovações. Com efeito, a área da saúde está a evoluir de forma ultrarrápida, principalmente com o impacto das novas tecnologias, como a inteligência artificial, a edição genética (gene editing), a medicina personalizada e a telemedicina”
Como é que o Direito da Saúde se relaciona com a Bioética?
O Direito da Saúde e a bioética estão interligados, pois ambos tratam de questões que envolvem o cuidado e a dignidade do doente, mas de perspetivas complementares. Enquanto o Direito da Saúde regula as relações jurídicas no âmbito da saúde, garantindo que os direitos dos doentes são respeitados, e estabelece as responsabilidades dos profissionais e instituições de saúde, a bioética baseia-se nos princípios morais e éticos que orientam as práticas médicas e de saúde.
Por exemplo, em situações como a investigação clínica envolvendo seres humanos, o consentimento informado é um princípio bioético fundamental que deve ser incorporado no Direito da Saúde. Isso significa que, em várias situações, os advogados que atuam na área de saúde devem garantir que os profissionais de saúde estão cientes das implicações éticas das suas decisões clínicas e de investigação, ao mesmo tempo que asseguram que as leis são cumpridas. Além disso, o avanço de tecnologias como a edição genética e a inteligência artificial trazem novas questões éticas que devem ser tratadas com base em princípios jurídicos, como a proteção da autonomia do doente e o direito à privacidade.
O Direito da Saúde não pode, pois, ser tratado de forma separada da bioética, já que as leis muitas vezes servem para traduzir e garantir a aplicação dos princípios éticos no dia a dia da prática médica.
Quais são os maiores desafios que o Direito da Saúde enfrenta atualmente em Portugal?
O Direito da Saúde enfrenta vários desafios no contexto atual, principalmente relacionados com a evolução das tecnologias médicas e a complexidade crescente do sistema de saúde. A regulamentação de áreas como a telemedicina, a medicina personalizada e a inteligência artificial está a ser um grande desafio. Embora existam algumas normas gerais, a legislação frequentemente não consegue acompanhar a velocidade de evolução dessas tecnologias, criando lacunas em termos de responsabilidade profissional e proteção dos doentes.
Outro desafio importante é o tratamento e uso dos dados de saúde. O RGPD representa um grande passo para a proteção de dados, mas existem questões complexas relacionadas com o armazenamento, processamento e partilha de dados de doentes, especialmente com o uso de plataformas digitais na nuvem.
Acresce que o acesso a medicamentos inovadores e a (in)equidade no sistema de saúde são questões jurídicas que exigem uma atenção especial. Com efeito, o elevado custo de muitos tratamentos inovadores coloca grandes desafios para garantir a acessibilidade a todos os cidadãos, sem comprometer a sustentabilidade do sistema público de saúde (Serviço Nacional de Saúde – SNS).
Adicionalmente, a responsabilidade médica também continua a ser uma área em que os profissionais de saúde enfrentam desafios, com a necessidade de uma definição mais clara sobre os limites da responsabilidade em situações envolvendo a prática clínica.
Como é que o Direito da Saúde tem acompanhado os avanços tecnológicos, como a inteligência artificial, a telemedicina e a edição genética?
O Direito da Saúde tem procurado adaptar-se aos avanços tecnológicos, mas há ainda um caminho a percorrer. A telemedicina, por exemplo, tem visto uma regulamentação mais concreta, especialmente após a pandemia de COVID-19, mas ainda carece de normas claras quanto à responsabilidade dos profissionais de saúde e à proteção da privacidade dos doentes. No que diz respeito à inteligência artificial na saúde, embora existam algumas orientações sobre como a IA pode ser usada para diagnóstico médico e tratamento personalizado, há uma carência de regulação em especial sobre responsabilidade no caso de erros cometidos por sistemas baseados em IA.
Já no caso da edição genética, especialmente com tecnologias como CRISPR (edição genómica), as questões jurídicas são particularmente complexas, já que envolvem dilemas sobre os limites da intervenção humana na genética, a autonomia do doente e as implicações éticas e legais da modificação genética de embriões. O direito precisa de antecipar-se a estas questões, garantindo que os avanços científicos são compatíveis com os direitos fundamentais dos indivíduos e com os princípios éticos que protegem a dignidade humana.
Em suma, o Direito da Saúde está em constante processo de adaptação, e os advogados especializados nesta área desempenham um papel crucial em garantir que as novas tecnologias são usadas de forma responsável e em conformidade com o regime legal aplicável.
Como lidar com os conflitos entre o avanço científico e os limites éticos e legais?
Lidar com esses conflitos exige um equilíbrio delicado entre os avanços científicos e os direitos individuais. O Direito da Saúde deve ser uma ferramenta para garantir que os avanços tecnológicos não ultrapassem os limites éticos que respeitam a dignidade humana, a autonomia do doente e os direitos fundamentais.
Em primeiro lugar, é essencial que os profissionais de saúde e instituições de saúde sejam sensibilizados sobre as questões bioéticas que envolvem novas tecnologias. A transparência e o consentimento informado devem ser sempre priorizados, especialmente em tratamentos que envolvem novos métodos, como a edição genética. A legislação deve também estabelecer limites claros para o uso dessas tecnologias, garantindo que sejam usadas para fins terapêuticos, e não para práticas que possam comprometer a autonomia ou o bem-estar dos indivíduos.
Além disso, a criação de comissões de ética e a colaboração interdisciplinar entre cientistas, advogados/juristas, médicos e bioeticistas são fundamentais para garantir que a inovação científica e a proteção dos direitos dos doentes estejam em constante diálogo e harmonia.
Finalmente, a recente adoção do Regulamento de IA da EU vem trazer novos desafios à inovação da saúde, atentos os riscos que a sua adoção massiva suscita.
No que diz respeito à inteligência artificial na saúde, embora existam algumas orientações sobre como a IA pode ser usada para diagnóstico médico e tratamento personalizado, há uma carência de regulação em especial sobre responsabilidade no caso de erros cometidos por sistemas baseados em IA”
Quais são os principais riscos jurídicos associados ao uso de dados de saúde em plataformas digitais?
O uso de dados de saúde em plataformas digitais representa um conjunto significativo de riscos jurídicos, especialmente no que diz respeito à privacidade e segurança dos dados dos doentes. O RGPD impõe requisitos rigorosos sobre como os dados devem ser tratados, mas ainda existem desafios relacionados com divulgação não autorizada, acesso não autorizado e uso indevido de dados pessoais.
Além disso, a responsabilidade em caso de falhas de segurança cibernética ou divulgação não autorizada de informações sensíveis pode constituir um risco significativo para as plataformas digitais. Se os dados dos doentes forem expostos ou usados indevidamente, isso pode resultar em avultadas coimas e em danos reputacionais para as empresas, já para não mencionar as ações judiciais por parte dos doentes envolvidos.
Como é que o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) impacta o setor da saúde?
O RGPD tem um impacto significativo no setor da saúde, pois impõe restrições rigorosas ao tratamento de dados pessoais, especialmente dados de saúde, que são considerados dados sensíveis. Hospitais, clínicas e outras entidades prestadoras de cuidados de saúde devem garantir que os dados dos doentes são tratados de forma segura, com consentimento explícito do doente, e que os direitos dos doentes (como o direito ao esquecimento e à portabilidade dos dados) são rigorosamente respeitados.
Isso exige que as instituições de saúde implementem medidas rigorosas de segurança cibernética e assegurem formação aos seus profissionais sobre como garantir a conformidade com o RGPD. Por outro lado, estas instituições devem ser transparentes em relação à forma como os dados dos doentes são usados e armazenados, e devem estar preparadas para auditorias e investigações relacionadas com possíveis falhas de segurança.
Quais são as melhores práticas para garantir a segurança e a privacidade dos dados dos pacientes?
Garantir a segurança e a privacidade dos dados dos doentes é essencial em qualquer instituição de saúde, especialmente no contexto digital. Algumas das melhores práticas incluem encriptação de dados (todos os dados sensíveis dos doentes devem ser encriptados para garantir que, mesmo em caso de uma falha de segurança, as informações não sejam acedidas ou interpretadas por terceiros não autorizados), controlo de acesso rigoroso (implementação de autenticação multifatorial e controlo de acessos restritos, de modo a garantir que apenas os profissionais autorizados podem aceder a informações sensíveis dos doentes, incluindo a definição clara de papéis e responsabilidades dentro da organização), formação contínua (os profissionais de saúde e todos os colaboradores devem ter formação regularmente em questões de segurança de dados e proteção de privacidade já que a sensibilização para os riscos e melhores práticas é fundamental), monitorização constante (a adoção de sistemas de monitorização de segurança cibernética em tempo real, para identificar e responder rapidamente a incidentes de segurança, como tentativas de acesso não autorizado), auditoria e conformidade (realização de auditorias periódicas e implementação de medidas de compliance com a legislação vigente, como o RGPD, com testes regulares de vulnerabilidade para garantir que a segurança está sempre atualizada), e política de retenção de dados (estabelecimento de políticas claras sobre quanto tempo os dados dos doentes serão armazenados e quando devem ser descarregados ou eliminados de maneira segura, em conformidade com a legislação).
Estas práticas visam não apenas garantir a segurança dos dados, mas também assegurar aos doentes que as suas informações são tratadas com a máxima confidencialidade e conforme os seus direitos.
A responsabilidade em caso de falhas de segurança cibernética ou divulgação não autorizada de informações sensíveis pode constituir um risco significativo para as plataformas digitais. Se os dados dos doentes forem expostos ou usados indevidamente, isso pode resultar em avultadas coimas e em danos reputacionais para as empresas, já para não mencionar as ações judiciais por parte dos doentes envolvidos”
Porquê a aposta nesta área?
A aposta na área de Life Sciences & Healthcare é uma decisão estratégica que se baseia no crescente impacto da saúde na vida das pessoas e no desenvolvimento contínuo do setor. O setor de saúde está a passar por uma transformação profunda, impulsionada pela tecnologia, biotecnologia e pelo aumento da consciencialização pública sobre a saúde. Como resultado, surgem novos desafios legais e regulatórios que exigem conhecimentos técnicos especializados.
O nosso escritório reconhece a importância de acompanhar essas mudanças para garantir que nossos clientes têm um apoio jurídico adequado, que possibilite a inovação dentro dos limites da lei, ao mesmo tempo que protege os direitos dos doentes e a segurança dos serviços de saúde. Além disso, a área de saúde oferece uma oportunidade para contribuir diretamente para o bem-estar da sociedade, ajudando a resolver questões críticas relacionadas designadamente com o acesso a tratamentos inovadores, o avanço tecnológico na saúde, a proteção de dados pessoais e a responsabilidade médica.
Para resolver ou prevenir que tipo de situações?
A atuação da área de Life Sciences & Healthcare visa resolver e prevenir um vasto espetro de situações, incluindo: Regulação de novos medicamentos e tecnologias: prestamos assessoria jurídica no processo de autorização de novos medicamentos, investigação clínica e regulação de novas tecnologias de saúde, incluindo telemedicina e inteligência artificial aplicada à saúde;
acesso a tratamentos e medicamentos: ajudamos a resolver questões jurídicas relacionadas com o acesso ao mercado e financiamento de tratamentos inovadores e medicamentos no contexto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e dos sistemas de saúde privada; litígios de responsabilidade médica: representamos tanto profissionais de saúde quanto prestadores de cuidados de saúde em casos de erro médico, negligência ou má prática.
Questões contratuais: apoiamos hospitais, clínicas e profissionais de saúde na elaboração e revisão de contratos com fornecedores, parceiros e doentes, garantindo a conformidade com a legislação, proteção de dados de saúde: trabalhamos regularmente com instituições de saúde para garantir a conformidade com o RGPD e outras regulamentações relacionadas com a proteção de dados pessoais, evitando riscos de divulgação não autorizada de dados e sanções.
No fundo, o nosso objetivo é ajudar os nossos clientes a prevenir litígios e garantir conformidade com o quadro legal e regulamentar aplicável, ao mesmo tempo que oferecemos soluções inovadoras para problemas jurídicos complexos na área da saúde.
O processo de regulamentação de novos medicamentos e tecnologias médicas em Portugal é eficaz?
O processo de regulamentação de novos medicamentos e tecnologias médicas em Portugal é, em grande parte, eficaz, especialmente com a atuação de entidades como o INFARMED, que tem por missão regular e supervisionar os setores dos medicamentos de uso humano e produtos de saúde e garantir o acesso dos profissionais da saúde e dos cidadãos a medicamentos e produtos de saúde de qualidade, eficazes e seguros.
A aprovação de medicamentos e dispositivos médicos é um processo rigoroso que envolve avaliações clínicas, estudos de segurança e eficácia e a conformidade com o quadro normativo da União Europeia.
No entanto, com o rápido avanço das tecnologias médicas e a inovação contínua na área de biotecnologia e medicina personalizada, o processo de regulamentação enfrenta desafios. Por vezes, as novas terapias e dispositivos médicos não se encaixam perfeitamente nas regulamentações existentes, exigindo adaptações ou a criação de novas regras.
Além disso, o processo de aprovação do financiamento pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) pode ser moroso, o que pode impactar o acesso de tratamentos inovadores pelos doentes em Portugal. Apesar desses desafios, o sistema regulatório português é, no geral, eficiente e adequado.
Quais são os desafios jurídicos relacionados com a indústria farmacêutica, como patentes e acesso a medicamentos?
Os principais desafios jurídicos na indústria farmacêutica atualmente prendem-se de facto com áreas como o acesso e a propriedade intelectual/industrial.
No acesso, assistimos não raras vezes a situações em que novos medicamentos inovadores – por vezes comprovadamente mais eficazes dos que as terapêuticas existentes no mercado – não são acessíveis à população por questões estritamente financeiras. Há aqui uma clara tensão entre, por um lado, garantir o acesso a novas terapêuticas inovadoras à população portuguesa e, por outro, assegurar a continuidade e sustentabilidade do SNS.
A proteção de inovações farmacêuticas através de patentes é um aspeto crítico na indústria farmacêutica de inovação, que pretende a maximização do seu portfolio, depois de ter investido avultadamente em R&D, mas gera frequentemente disputas e litígios com as empresas de medicamentos genéricos e biossimilares.
Como é que os advogados desta área podem contribuir para a melhoria das políticas públicas de saúde?
Os advogados especializados em Direito da Saúde têm um papel fundamental na formulação de políticas públicas que afetam a saúde pública e o acesso a tratamentos e cuidados de saúde. Através do aconselhamento jurídico a organizações do setor da saúde, eles podem influenciar a criação de legislação mais equilibrada, que promova o acesso universal aos cuidados de saúde, ao mesmo tempo em que incentiva a inovação tecnológica. Podem também colaborar no desenho e construção de regulamentação que aborde as novas realidades tecnológicas, como o uso de inteligência artificial e medicina personalizada, e advogar por mudanças no sistema de saúde, especialmente no que diz respeito ao financiamento público de medicamentos e tratamentos, garantindo que as políticas de saúde sejam justas e eficazes para toda a população.
Quais são as tendências futuras no Direito da Saúde e das Ciências da Vida?
O Direito da Saúde e das Ciências da Vida está a evoluir rapidamente, refletindo as mudanças tecnológicas e sociais no setor da saúde. Algumas das principais tendências futuras incluem:
Regulação das tecnologias emergentes: com o aumento do uso de inteligência artificial (IA), big data, telemedicina, e biotecnologia, o Direito precisará de se adaptar às novas realidades tecnológicas, estabelecendo regras claras sobre responsabilidade e ética, e definindo os limites para a utilização de IA no diagnóstico e tratamento médico;
Medicina personalizada e genética: o avanço da genómica e das tecnologias de edição genética, como o CRISPR, abrirá novos desafios jurídicos, como as questões éticas sobre a modificação genética e o direito à privacidade genética. A regulação da medicina personalizada e o uso de dados genéticos dos doentes serão temas centrais nos próximos anos;
Aumento da proteção de dados pessoais: com a digitalização dos cuidados de saúde, a proteção de dados pessoais, especialmente dados de saúde, será cada vez mais relevante. As questões relativas ao RGPD, à privacidade dos dados, e à segurança cibernética, em particular, a transposição da Diretiva NIS2, devem ser um foco contínuo, com a necessidade de regulamentação mais robusta para lidar com os desafios criados no setor da saúde.
Desafios na regulação do acesso a medicamentos: com o aumento dos preços/custos dos medicamentos inovadores e o impacto da proteção das patentes, a regulação do acesso a medicamentos e tratamentos inovadores eficazes será uma questão crescente. A discussão sobre a equidade no acesso a tratamentos e os preços dos medicamentos provavelmente dominará as políticas públicas e a legislação de saúde nos próximos anos.
Telemedicina e regulamentação de serviços à distância: com a aceleração do uso da telemedicina após a pandemia de COVID-19, a regulamentação desses serviços, especialmente em relação à responsabilidade profissional, licenciamento à distância e à proteção de dados, continuará a ser um campo importante para os advogados especializados na área.
Estas tendências exigem que os profissionais de Direito da Saúde se mantenham atualizados e preparados para lidar com questões jurídicas complexas e em constante evolução.
Quais são as áreas de atuação mais promissoras dentro deste campo?
Dentro do campo do Direito da Saúde e das Ciências da Vida, há várias áreas que têm mostrado um crescimento significativo e oferecem oportunidades promissoras para advogados:
Acesso ao mercado: as questões jurídicas relativas aos preços & comparticipações, em particular, e o acesso ao mercado, em geral, constituem, como referi, uma das áreas mais interessantes e relevantes neste domínio;
Compliance regulatório: com o avanço tecnológico e consequente aumento da regulamentação no setor de saúde, os advogados especializados neste domínio (incluindo nomeadamente a conformidade com o quadro legal e regulamentar nacional e comunitário aplicável aos medicamentos e dispositivos médicos, e com o RGPD) terão uma procura crescente;
Direitos dos doentes e responsabilidade médica: a responsabilidade por erros médicos e a proteção dos direitos dos doentes são áreas sempre em voga, com um número crescente de litígios relacionados com a má prática clínica, erros de diagnóstico e violação de direitos dos doentes;
Propriedade intelectual: a proteção de patentes e a propriedade intelectual relativa a medicamentos, tecnologias médicas e inovações biotecnológicas são áreas de grande importância. A crescente demanda por novos tratamentos e tecnologias exige um conhecimento técnico e uma compreensão especializada das patentes e da proteção jurídica de inovações terapêuticas;
Saúde digital: o setor de saúde digital, que inclui plataformas de telemedicina, inteligência artificial na saúde e aplicações de saúde baseadas em dados, está em rápido crescimento. As questões jurídicas relacionadas com a regulação de plataformas de saúde, proteção de dados e responsabilidade por falhas de sistemas digitais tornam esta uma área promissora para o futuro.
Bioética e genómica: o avanço da medicina genética e das terapias celulares está a gerar novas questões bioéticas e jurídicas. Os advogados especializados nestas matérias serão essenciais para lidar com questões de responsabilidade, autonomia do doente, e direitos humanos no contexto das novas tecnologias.
Os advogados especializados em Direito da Saúde têm um papel fundamental na formulação de políticas públicas que afetam a saúde pública e o acesso a tratamentos e cuidados de saúde. Através do aconselhamento jurídico a organizações do setor da saúde, eles podem influenciar a criação de legislação mais equilibrada, que promova o acesso universal aos cuidados de saúde, ao mesmo tempo em que incentiva a inovação tecnológica”.
A responsabilidade médica tem efeitos práticos nos tribunais portugueses (quer na vertente civil, quer na penal)?
Sim, a responsabilidade médica tem efeitos práticos importantes nos tribunais portugueses, tanto na vertente civil como na penal.
A responsabilidade civil médica em Portugal é tratada nos tribunais civis ou administrativos, onde os doentes podem peticionar indemnizações por danos causados por erro médico, negligência ou má prática e por violação do consentimento informado. O sistema de responsabilidade médica atualmente em vigor varia em função da relação jurídica de prestação de serviços de saúde estabelecida entre o profissional de saúde e o doente.
A natureza de tal relação é, por sua vez, condicionada pela natureza, pública ou privada, do hospital/clínica onde os serviços médicos são prestados, sendo, por isso, necessário distinguir entre responsabilidade médica no setor público e responsabilidade médica no setor privado.
A responsabilidade penal é reservada para as ofensas mais graves e visa sancionar criminalmente comportamentos inaceitáveis que prejudicam bens jurídicos protegidos constitucionalmente, como a vida, a integridade física e a liberdade, sendo inseparável e cumulativa com os outros tipos de responsabilidade.
A responsabilidade penal é avaliada perante os Tribunais Criminais e requer a verificação dos seguintes pressupostos: ação, resultado, nexo causal, dolo, negligência e culpa do agente. O sistema penal português vê a atividade médica, essencialmente, como um encontro entre autonomias – a do médico e a do doente – na medida em que requer, como regra, o consentimento do doente para intervenções médico-cirúrgicas e tratamentos realizados por um médico ou pessoa legalmente autorizada, sob pena de se cometer um crime contra a liberdade.
Em ambos os casos, seja de responsabilidade civil ou penal, a prova pericial desempenha um papel fundamental, sendo essencial a intervenção de peritos médicos que possam avaliar se houve ou não desvios dos padrões de cuidados exigidos, nomeadamente violação das legis artis.
As condenações de médicos, de prestadores de cuidados de saúde e, consequentemente, das seguradoras, também têm aumentado, nomeadamente quando a reclamação do doente se baseia na violação do dever de informar e no consequente consentimento viciado ou mesmo ausência de consentimento informado.
Estas situações geralmente dão lugar à compensação de danos não patrimoniais (morais) relevantes resultantes da violação do direito do doente à integridade física e moral, além dos danos patrimoniais decorrentes da verificação dos requisitos legais de responsabilidade civil.
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“A adoção do Regulamento de IA vem trazer novos desafios à inovação da saúde”
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