“A bastonária dos advogados transformou a Ordem numa caricatura sindical”

Agostinho Pereira de Miranda tem sido um forte opositor da atual bastonária da Ordem dos Advogados em vários artigos de opinião e em publicações nas redes sociais. Leia a entrevista à Advocatus.

Sócio Fundador, Miranda & Associados, Agostinho Pereira de Miranda é atualmente presidente da associação ProPública – Direito e Cidadania. Foi magistrado do Ministério Público, Inspetor da Polícia Judiciária, docente universitário e membro de órgãos sociais de várias empresas, incluindo Galp, REN, Zon e Cabinda Gulf Oil. Integra atualmente o quadro de vários organismos internacionais, como o Secretariado do Tratado da Carta da Energia (Bruxelas) e o ICSID, do Banco Mundial (Washington).

Viveu e trabalhou nos EUA, em Angola e no Reino Unido. Foi autor de livros e de centenas de artigos sobre matérias de Direito e de Energia. Em 2015 foi distinguido com a Medalha de Honra da Ordem dos Advogados. É presidente de três ONGs, e a Confederação das Associações de Defesa do Ambiente conferiu-lhe, em 2021, o Prémio Carreira.

Nos últimos meses tem sido um forte opositor da atual bastonária da Ordem dos Advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, em vários artigos de opinião e em publicações nas redes sociais. Leia a entrevista à Advocatus sobre o que se pode esperar na segunda volta das eleições para bastonário da OA e Conselho de Supervisão, que são já no dia 31 de março.

Agostinho Pereira de Miranda, da Miranda e Associados, em entrevista ao ECO/AdvocatusHugo Amaral / ECO

 

A segunda volta das eleições está à porta. Vai apoiar formalmente o candidato João Massano?

Apoio João Massano porque é um candidato sem truques, unificador da classe e com uma visão clara para o futuro da advocacia e da justiça portuguesas.

Esperava estes resultados da primeira volta?

Não esperava ver a Bastonária ‘incumbente’, com todos os meios de que dispõe, ganhar com uma diferença tão pequena (menos de 3% dos votos) relativamente ao segundo candidato. Mas fiquei menos surpreendido com o número de votos em branco (quase 15%). Os advogados não se reveem nesta Ordem.

Em quem votou, na primeira volta? (se quiser dizer, claro)

É mais fácil dizer em quem não votei: na candidatura da continuidade, que trouxe desprestígio à advocacia e que foge ao único combate de que depende a sobrevivência da Ordem – o da autorregulação, da independência, da liberdade da nossa profissão.

O que considera que esta bastonária OA fez de pior?

Dividiu os advogados e hostilizou colegas e outros órgãos da Ordem numa altura histórica em que todos devíamos estar unidos contra a ameaça existencial que paira sobre a profissão; transformou a Ordem numa caricatura sindical, com greves e reivindicações populistas; ignorou os interesses dos cidadãos que querem mais e melhor justiça. Porquê? Porque nunca definiu um propósito estratégico para a Ordem, mesmo quando esta foi atacada pelo poder político como não o fora em quase 100 anos de existência. Em vez disso, enredou-se em escaramuças táticas de pouca valia e de grande impacte mediático.

Os advogados sentem, e bem, repulsa por um órgão de controlo e fiscalização da profissão constituído em 60% por não advogados. Seria um eloquente e sério sinal para o poder político que nenhum advogado se apresentasse a concorrer para esse órgão”.

Considera que isso são os pontos mais importantes que a advocacia enfrenta neste momento?

A bastonária tem duas bandeiras na campanha (tal como teve no seu mandato): a CPAS e a atualização das tabelas dos advogados oficiosos. São aspetos muito importantes para todos os advogados, especialmente para os que exercem em prática isolada. Mas a atual Bastonária não conseguiu progressos em nenhum deles, salvo no plano do marketing autopromocional. O mais importante para a advocacia neste momento é a alteração do quadro regulatório, aprovado pelo PS e tacitamente aceite pelo PSD. É intolerável a desigualdade que se estabeleceu com a autorregulação da advocacia, através da criação de um Conselho de Supervisão dominado e presidido por não advogados.

Acha que uma solução diferente para a CPAS é necessária?

Os advogados e solicitadores é que devem decidir o futuro da CPAS e, em diálogo com o poder político – que, nesta matéria, tem a última palavra – sufragarem novas soluções quando, dentro de meses, se realizarem eleições para a direção da Caixa. Foi concluída recentemente uma auditoria e há uma comissão de avaliação a avaliar diferentes alternativas para o seu futuro. É um assunto muito importante, mas estas eleições não são para a direção da CPAS.

E como avalia a atualização das tabelas dos oficiosos feita pelo Governo?

A nova tabela é má (em certas situações, pior do que anterior) e os advogados do SADT merecem mais respeito e melhores condições de trabalho. A questão central é esta: o Estado tem a obrigação moral e constitucional de afetar ao sistema de acesso à justiça mais do que migalhas. Não há Estado de Direito digno desse nome sem o regular funcionamento da justiça. E esta transformou-se já no maior cancro da nossa Democracia – e na mina de ouro das forças políticas mais radicais.

Se fosse bastonário, quais seriam as suas prioridades?

Defender os cidadãos e o Estado de Direito democrático (como impõe o Estatuto da Ordem), designadamente através da reversão das leis que limitam a independência dos advogados e os menorizam frente ao ministério público e à magistratura judicial; promover a união e a solidariedade entre todos os advogados, especialmente num tempo em que as suas tradicionais áreas de atividade são usurpadas por outros profissionais sem preparação adequada para proteger eficazmente os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; acelerar os meios de apoio tecnológico, financeiro e organizativo que permitam, especialmente aos advogados mais jovens, competir e vingar num mundo do direito em acelerada transformação.

Porque não se candidata a bastonário?

Não tenho talento nem idade para enfrentar os desafios existenciais com que a advocacia portuguesa está confrontada na sua hora mais negra. Fundei, há quase cinco anos, a primeira associação portuguesa de defesa jurídica do interesse público, a ‘ProPública – Direito e Cidadania’, que quero continuar a dirigir.

A Ordem dos Advogados perdeu prestígio?

Perdeu, e muito. Temos todos – mas especialmente a senhora Bastonária e o seu Conselho Geral – de assumir a responsabilidade por não termos combatido eficazmente a verdadeira traição cometida pelo poder político quando, nos últimos dois anos, retirou direitos à defesa e deixou os cidadãos à mercê do próximo autocrata. Não estou a exagerar. Nem Salazar foi tão longe.

O Conselho de Supervisão tem apenas uma lista de candidatos. Porque acha que isso aconteceu?

Os advogados sentem, e bem, repulsa por um órgão de controlo e fiscalização da profissão constituído em 60% por não advogados. Seria um eloquente e sério sinal para o poder político que nenhum advogado se apresentasse a concorrer para esse órgão. Um grupo constituído por advogados e docentes universitários, parte dos quais conheço e muito admiro, entendeu ser preferível constituir uma lista e apresentar-se a eleições. Respeito a sua decisão, mas não posso concordar.

Temos todos – mas especialmente a senhora Bastonária e o seu Conselho Geral – de assumir a responsabilidade por não termos combatido eficazmente a verdadeira traição cometida pelo poder político quando, nos últimos dois anos, retirou direitos à defesa e deixou os cidadãos à mercê do próximo autocrata. Não estou a exagerar. Nem Salazar foi tão longe”

Esta crise política vai ser prejudicial ao país e à Justiça e às reformas tão necessárias?

Não quero exagerar, mas esta crise política parece-me por vezes uma opereta de mau gosto. Os dois partidos nos quais tem assentado a nossa Democracia, suas conquistas e derrotas, continuam incapazes de juntar esforços para resolverem questões de regime inadiáveis, como o estado deplorável do direito e da justiça.

Multidisciplinariedade das sociedades. Há poucas ainda a seguir esse caminho. Porquê?

Como eu próprio, há muitos advogados que não concordam com a multidisciplinaridade, especialmente na versão ultraliberal que a lei portuguesa consagra. Tenho más notícias para esses colegas: as sociedades profissionais multidisciplinares das megaestruturas globais (auditoras, consultoras, sociedades financeiras e outras) vão ‘comer o almoço’ das relativamente pequenas sociedades de advogados portuguesas tradicionais. Estas têm de se reinventar se quiserem sobreviver.

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