Portugal "queixa-se" de escassez de mão de obra qualificada, mas o reconhecimento das qualificações dos imigrantes continua a ser, ano após ano, um processo complicado e longo, relata Patrícia Lemos.
Aperto. É essa a palavra usada por Patrícia Lemos para descrever a situação vivida por “milhares de brasileiros” que vieram para Portugal com o novo visto para procura de trabalho, já que as empresas “não o conheciam” e os organismos públicos não conseguiram dar vazão aos processos do elevado volume de imigrantes.
Em entrevista ao ECO, a fundadora de uma empresa especialista na realocação de profissionais, a Vou Mudar para Portugal, explica que, entretanto, os empregadores foram tendo conhecimento, mas avisa que persiste um dos grandes obstáculos à vinda de trabalhadores “altamente qualificados”: a validação das qualificações continua a ser difícil e demorada, obrigando a quem chega a Portugal a mudar de área de trabalho e a reinventar-se.
Por outro lado, Patrícia Lemos sublinha que os preços da habitação dispararam em Portugal, sem que os salários tenham acompanhado. E critica as respostas dinamizadas pelo Governo. Diz que é preciso, em alternativa, apostar na construção e nos transportes que permitam que os trabalhadores vivam, querendo, a alguma distância do centro das cidades.
Os brasileiros que são altamente qualificados, tirando a área de tecnologias de informação, têm muitas dificuldades para se recolocar no mercado. Porquê? Por causa da validação dos diplomas.
As empresas portuguesas queixam-se de escassez de talento adequado às vagas que têm disponíveis, nomeadamente ao nível dos trabalhadores qualificados. Que contributo podem dar os imigrantes para a resolução desse problema?
Hoje temos um volume imenso de brasileiros que querem mudar para Portugal, e o emprego é fundamental. Há dois perfis de brasileiros: o profissional qualificado e o profissional que não tem a formação universitária e não fala inglês. Há uma massa muito grande a vir para o trabalho na restauração e na limpeza. Já os brasileiros que são altamente qualificados, tirando a área de tecnologias de informação (TI), têm muitas dificuldades para se recolocar no mercado. Porquê? O primeiro ponto, é a validação dos diplomas. Quantos médicos brasileiros conhece que exercem em Portugal? Poucos perto do volume de médicos e enfermeiros que gostariam de se mudar. Há uma dificuldade da mão de obra qualificada conseguir exercer a sua atividade em Portugal. Enfermeiros, médicos, contabilistas, personal trainers. Muitos abrem mão dessas profissões em função da segurança, da qualidade de vida dos filhos e vão exercer atividades em áreas menos qualificadas.
Há, portanto, burocracia excessiva que impede que os profissionais qualificados assumem determinados lugares no mercado e que possam dar à economia o valor que, de outro modo, poderiam dar.
Exatamente. Tive uma gestora financeira na minha empresa no Brasil que foi também [responsável pela área] financeira de uma rede hoteleira muito grande francesa. Ela veio para Portugal. É contabilista, mas não conseguiu fazer a validação [das qualificações]. Trabalhou como cuidadora de idosos e trabalhou lavando pratos em restaurantes em Cascais. Acabou por fazer um curso de assistente dentária e há dois anos trabalha como assistente dentária em algumas clínicas em Portugal. Ou seja, ela era uma profissional altamente qualificada, mas teve de se reinventar porque não conseguiu ultrapassar todas as exigências que existiam para que pudesse trabalhar em Portugal.
Mas sente que o processo de reconhecimento das qualificações tem melhorado ao longo dos últimos anos?
Não tenho visto nenhuma melhoria desde que estou aqui. Onde há profissionais qualificados brasileiros a trabalhar? Na área de tecnologia. Os profissionais de TI muitas vezes vêm e sofrem, mas conseguem [colocar-se no mercado]. Porquê? Porque é uma mão de obra ainda mais escassa.
Além do reconhecimento de qualificações, que retrato faz dos outros processos burocráticos envolvidos na imigração, nomeadamente ao nível da Segurança Social?
Existem vários pontos. No ano passado, quando o Governo português criou o visto para quem vem à procura de trabalho, isso foi um divisor de águas para os brasileiros. Muitos brasileiros que não eram elegíveis aos outros vistos tiveram a possibilidade de vir. Foi uma mudança muito grande e muito boa. Milhares de pessoas vieram, só que o mercado de trabalho, as empresas, não conheciam esse visto. As pessoas chegaram e não conseguiram trabalho com esse visto, que tinha um tempo máximo de quatro meses. Foi um transtorno. Paralelamente, houve dificuldades na parte operacional, nomeadamente no Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). Milhares de pessoas vieram e ficaram numa situação de precariedade. Não tenho a menor dúvida de que a situação vai melhorar. A intenção do visto foi muito boa. É um ganha-ganha para as duas partes.
Chegou a falar-se em “regras absurdas” para a obtenção desse visto, nomeadamente em termos financeiros. Essas questões estão resolvidas?
As regras não ficaram claras. Não existiu uma voz que dissesse aos brasileiros claramente [que regras se aplicavam]. Faltou ser esmiuçado e o que aconteceu foi que se geraram várias interpretações. Passada essa primeira etapa, a parte burocrática ainda continua a ser um gap muito grande, mas o desejo de emigrar dos brasileiros não mudou.
Disse que as empresas não tinham conhecimento do visto para procura de trabalho. Hoje esse desconhecimento está ultrapassado?
Tem melhorado. Quando começaram a sair notícias, aí muitas empresas começaram a perceber e a adquirir o conhecimento. Os departamentos jurídicos das empresas começaram a entender que são pessoas que estão legalizadas e que podem ser contratadas. A primeira de leva [imigrantes com este novo visto] passou um aperto.
Estava a vender uma casa a um eslovaco. O que ele me disse é que não tem a menor dúvida de que Portugal é o melhor país da Europa para se viver. O povo é bom, fala inglês, tem um custo barato e tem sol.
Disse que o desejo de vir para Portugal não desapareceu. Um relatório do SEF mostrava que o número de brasileiros a viver em Portugal saltou 36% no último ano. Porque Portugal se tem tornado tão atrativo?
Portugal tornou-se atrativo para muitas nacionalidades. Estava a vender uma casa a um eslovaco. O que ele me disse é que não tem a menor dúvida de que Portugal é o melhor país da Europa para se viver. O povo é bom, fala inglês, tem um custo barato e tem sol. Portugal fez um grande esforço para entrar no roadmap das pessoas que viajam. Houve um esforço do Governo e da área de turismo para levar o país para o mundo. Portugal buscou o crescimento que tem hoje.
Apesar do esforço, pelo que me diz, colocam-se ainda muitos obstáculos à vinda para Portugal?
Não tenho dúvidas. Mas temos em Portugal 300 dias de sol por ano. Pode estar frio, mas há sol. Isso muda tudo. Eu e a minha família viemos em 2017. Na altura, olhei para os Estados Unidos e para Portugal. O que foi decisivo foi a língua, porque vim com a minha mãe com 80 anos de idade. Como é que ela ia recomeçar a vida num país com uma língua que ela não fala? Além disso, é um país que alcançou níveis interessantes de segurança. Não é um país perfeito. Não existe o paraíso. É um país que está a adaptar-se, cada vez mais, à avalanche de imigrantes. Há escolas com o mesmo número de professores do passado, ainda que o número de alunos tenha aumentado absurdamente. Na saúde pública, também. O país vive agora uma fase de necessidade de investimento em infraestruturas para que essa onda de imigrantes que chamou consiga vir.
Falou em preços baixos. Portugal vive uma crise no mercado da habitação. Como é que isso afeta a decisão dos brasileiros de virem ou não para Portugal?
Sem dúvida nenhuma. O Portugal para o qual vim em 2017 é absolutamente diferente do Portugal de hoje, em 2023. Os preços cresceram absurdamente. O que é que isso implica para os brasileiros? Precisam planear muito mais. Hoje, Portugal não dá para todas as pessoas que querem vir. Não acredito que os preços das casas baixem. Tenho visto uma série de ações do Governo. Para mim, é uma matemática muito básica. O que resolveria a questão da habitação é muito mais estrutural do que tirar, por exemplo, os vistos gold. É ter uma linha de transporte que permita às pessoas morarem mais longe, como acontece em Londres. Há pouco produto em Portugal. Quantos arranha-céus estão a ser construídos em Portugal? Nenhum. Há prédios de cinco andares, com 20 apartamentos. Isso é muito pouco. Portugal precisa de produto. Portugal precisa que a construção seja mais facilitada. Para tirar uma licença para construção hoje demora quase dois anos.
Portugal cresceu e começou a ser um país de gente grande, no sentido dos preços. Antes eram muito baixos. Subiram. Só que o salário não acompanhou.
Disse que os imigrantes precisam de planear melhor, mas quando chegam a Portugal confrontam-se, regra geral, com salários mais baixos do que a média da União Europeia. Como é que os brasileiros lidam com isso? Tendem a procurar ir para outros países, depois da entrada em Portugal?
O que é uma pena. O imigrante olha para Portugal como uma porta de entrada. Depois de legalizado, tem a Europa inteira, onde vai buscar salários maiores. Portugal cresceu e começou a ser um país de gente grande, no sentido dos preços. Antes eram muito baixos. Subiram. Só que o salário não acompanhou.
Sobre a entrada no mercado de trabalho, sente que há algum estigma em torno dos trabalhadores brasileiros?
Não tenho esse olhar da discriminação. O que acontece é que um brasileiro que chega cá, por exemplo, um gerente de logística, entende bem o mercado brasileiro. O que é que percebe da logística da Europa? No mercado europeu, o comportamento é absolutamente diferente. Então, algumas vezes, profissionalmente, é preciso dar um passo atrás, até para poder conhecer o mercado. Acho que o grande ponto do trabalho é a dificuldade de validar o diploma.
Dito tudo isto, antecipa que o fluxo migratório do Brasil para Portugal deverá recuar nos próximos anos ou nem por isso?
Não vejo um recuo. Vejo um amadurecimento das pessoas que querem mudar, o que acho fantástico. Não dá para entrar num avião e achar que se vai chegar ao 27.º Estado brasileiro. Portugal não o é. Mas o desejo de mudança não vai mudar, porque temos questões estruturais no Brasil que vai demorar muito para se conseguir [ultrapassar].
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“Brasileiros vieram para Portugal com novo visto, mas não conseguiram trabalho. Foi um transtorno”
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