Débora Melo Fernandes, sócia da Pérez Llorca: “A urgência climática exige rápida descarbonização da economia e acelerada transição energética”

A advogada Débora Melo Fernandes juntou-se ao escritório de Lisboa da Pérez-Llorca em 2024 como sócia de Direito Público e Regulação. Na entrevista ao ECO/Advocatus, fala da crise climática.

A advogada Débora Melo Fernandes juntou-se ao escritório de Lisboa da Pérez-Llorca em 2024 como sócia de Direito Público e Regulação. Antes de ingressar na Pérez-Llorca foi sócia da Gama Glória. De 2007 a 2020 esteve na Sérvulo e Morais Leitão na área de Direito Público e Administrativo. Foi também assessora jurídica do Ministro da Modernização Administrativa. Atualmente atua como árbitra no Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e é também fundadora da Associação de Direito Administrativo (ADA) e embaixadora da ‘Mulheres no ESG’.

Com mais de 15 anos de experiência em várias áreas do Direito Administrativo, a sua atividade incide na área regulatória dos mais diversos setores como energia, mobilidade, ciências da vida e TMT e em questões complexas em matéria de formação e execução de contratos públicos, arbitragem e contencioso administrativo.

Qual o papel do setor jurídico / advogados no mundo da sustentabilidade?

Não há setor da economia que esteja ou que vá ficar intocado pela regulação climática e da sustentabilidade, do setor financeiro à indústria, da agricultura à educação, da mobilidade à energia. A jornada da transformação exigida por toda esta regulação é complexa e multifacetada e exige, por parte das empresas, governos e sociedade, um acompanhamento jurídico e estratégico muito próximo. É um erro considerar que o cumprimento desta regulação dispensa o conhecimento jurídico. O advogado estará na primeira linha da assessoria estratégica e técnica, seja na interpretação e aplicação da avalanche regulatória em matéria de sustentabilidade, seja na identificação e gestão de riscos e oportunidades e na definição de estratégias de governance e decisões de investimento e posicionamento no mercado, incluindo sob o ponto de vista da comunicação.

Por outro lado, tem-se observado um aumento significativo de processos de litigância climática. Este crescimento reflete uma exigência cada vez maior por parte da sociedade em geral para que as empresas assumam responsabilidades mais claras e efetivas relativamente às suas emissões de carbono e impactos ambientais. Este cenário sublinha a necessidade de um aconselhamento jurídico rigoroso, seja para fazer uma avaliação rigorosa e transparente dos riscos de litigância climática e de acusações de greenwashing, seja, claro, no acompanhamento desses processos jurisdicionais.

Há muitas medidas importantes, mas, se só posso escolher uma, vou responder que a mais urgente é, sem dúvida, travar o aquecimento global, com a redução drástica da emissão de gases com efeito de estufa. E aí a discussão em torno do limite dos 2 ou 1.5 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais é absolutamente relevante, sendo que os relatórios do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) têm de ser acompanhados de perto”

De que forma é que a Pérez-Llorca pretende atuar em termos de aposta neste setor?

A Pérez-Llorca posicionou-se, desse cedo, na dianteira da oferta jurídica em matéria de ESG e alterações climáticas. Tem uma equipa de advogados com perfil muito transversal com dedicação a estes temas.

O compromisso e investimento nesta matéria é de tal ordem que uma das primeiras iniciativas a que nos associámos em Portugal – e ainda só estamos no terceiro mês de operação – consiste numa parceria com a Faculdade de Direito da Universidade Católica na organização de um curso inovador sobre “Regulação das Alterações Climáticas”, de que eu sou uma das coordenadoras, e em que participam mais dois sócios do escritório. Este é um sinal claro da nossa aposta no setor.

Além disso, há, claro, um caminho interno que também já foi e continuará a ser feito, e que está muito bem refletido nos nossos relatórios de sustentabilidade de 2021 e 2022. We walk the talk – e, por isso, compreendemos bem os desafios e as dificuldades das empresas e organizações que nos procuram.

Os políticos estão a fazer o suficiente para travar a crise climática?

As ambições e esforços são muito desiguais no mundo. Na Europa e em Portugal, há esforço e ambições notórios. Se isto é suficiente? A urgência climática mostra que não. 2024 começou com um novo recorde de emissões de CO2, com um aumento de 1.1% de 2022 para 2023.

Portugal, por exemplo, na revisão do Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) de julho do ano passado antecipou o horizonte da neutralidade carbónica, e medidas como esta são importantes. Contudo, é preciso mais consistência, agilidade e segurança jurídica nos incentivos e políticas setoriais para que consigamos concretizar as ambições anunciadas.

Qual a medida climática mais urgente?

Há muitas medidas importantes, mas, se só posso escolher uma, vou responder que a mais urgente é, sem dúvida, travar o aquecimento global, com a redução drástica da emissão de gases com efeito de estufa. E aí a discussão em torno do limite dos 2 ou 1.5 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais é absolutamente relevante, sendo que os relatórios do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) têm de ser acompanhados de perto. Esta urgência climática exige rápida descarbonização da economia e acelerada transição energética.

Os níveis de reporting têm evoluído, mas são suficientes para evitar o chamado ‘greenwashing’?

O reporting não serve para evitar greenwashing. O dever de reporte imposto pela legislação europeia vem como uma exigência de comunicar e ser transparente quanto aos números associados aos impactos das empresas em matérias de Environment, Social e Governance (ESG).

Mas a relação entre aumento do reporte e diminuição do greenwashing não é necessariamente inversa. Aliás, o greenwashing pode mesmo ser um efeito colateral dos relatórios, se estes não forem bem elaborados à luz regulação aplicável, da Corporate Sustainability Reporting Directive (CSRD) e dos parâmetros e critérios do EFRAG – European Financial Reporting Advisory Group (os European Sustainability Reporting Standards – ESRS). Sem um criterioso apoio jurídico, os relatórios podem mesmo acabar descasados da realidade da empresa, incumprir as exigências legais e até constituir prática de greenwashing.

Para onde deve caminhar a regulamentação em torno da sustentabilidade?

Alguma avalanche regulatória será inevitável, dado que muitos temas são novos e precisarão de enquadramento legal. Mas o essencial é que o caminho da regulação da sustentabilidade seja coerente entre todos os seus polos e ramificações, criando mecanismos de incentivo à transparência e à fiabilidade dos dados relativos ao impacto das empresas, e interconectando as dimensões económicas, sociais e ambientais da sustentabilidade. Diria que o mais importante é o estabelecimento de metas ambiciosas e a definição de mecanismos de implementação enforceable.

Qual o primeiro conselho que dá a uma empresa que queira estar alinhada com as melhores práticas de sustentabilidade?

Fazer um bom levantamento do ponto de situação atual da empresa em relação aos seus impactos ambientais, sociais e económicos. E traçar objetivos tangíveis e mensuráveis: onde se quer chegar por comparação com a situação em que se está? E como se vai medir essa evolução? É difícil, para não dizer impossível, avaliar o êxito das medidas adotadas se estas não puderem ser medidas. Não há melhoria tangível em matéria de sustentabilidade se esta não puder ser medida e quantificada.

Acha que ainda há atores (empresários) que percecionam o ESG como um custo adicional que poderá afetar o seu desempenho, ou já é um novo paradigma que até pode impulsionar resultados?

Sim, infelizmente o tecido empresarial das PMEs pode ainda ver as exigências ESG como uma burocracia a mais, complexa no que diz respeito à sua execução e de pouco retorno concreto. Penso, contudo, de forma otimista, que esta visão está a mudar com a crescente oferta académica sobre os temas e os fóruns de partilha e discussão dos desafios.

Temos visto vários acordos pelo clima nas COP, mas os avanços reais têm ficado aquém. Seria possível e desejável aumentar o caráter vinculativo dos acordos internacionais para o clima?

O enforcement das decisões e acordos da COP é um assunto antigo, mas de difícil operacionalização por causa da soberania/autonomia dos países em relação aos temas abordados. Não esqueçamos, contudo, que um grande contributo das COP pode ser atualizar o ponto de situação do clima mundial, como aconteceu nesta última com a publicação do primeiro Global Stocktake – GST.

Mais do que pôr o foco em vigiar e punir o incumprimento dos compromissos assumidos na COP, devíamos procurar extrair o máximo desses espaços de partilha dos esforços mundiais e aproveitar para celebrar parcerias, contratos, esforços efetivos e multilaterais, em cooperação efetiva e concretização do ODS 17 – partnerships for the goals.

Infelizmente o tecido empresarial das PMEs pode ainda ver as exigências ESG como uma burocracia a mais, complexa no que diz respeito à sua execução e de pouco retorno concreto. Penso, contudo, de forma otimista, que esta visão está a mudar com a crescente oferta académica sobre os temas e os fóruns de partilha e discussão dos desafios”

Recentemente, os jovens portugueses que colocaram 32 países em tribunal por inação climática viram a sua queixa a ser rejeitada pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Ainda assim, alguns argumentos foram validados. Que balanço faz do resultado deste caso?

O caso português – caso Duarte Agostinho – é interessante, porque there’s more than meets the eye. A leitura imediata é que o TEDH decidiu que o caso é inadmissível quanto a todos os Estados exceto Portugal, porque, apesar de as alterações climáticas serem um fenómeno global, cada Estado tem a sua quota de responsabilidade. Por isso, como os demandantes só têm vínculo com Portugal (por aqui residirem), só podem demandar Portugal.

Mas a verdade é que há outra leitura a fazer desta decisão, é que ela abre a porta para que os Estados sejam, sim, demandados pelos seus cidadãos e residentes. Esta leitura está, aliás, em linha com uma outra decisão do TEDH proferida no mesmo dia 9 de abril (KlimaSeniorinnen). Neste caso, o Tribunal concluiu que a Suíça violou o direito ao respeito pela vida privada e familiar e o direito a um processo equitativo de mulheres reformadas ao não adotar determinadas medidas de atenuação das alterações climáticas.

Que impacto pode ter na ação climática?

Não há qualquer dúvida de que estas decisões sobretudo a da Suíça, que é histórica – terá a sua influência em futuras ações junto do TEDH, mas também perante os tribunais nacionais e o TJUE.

Estes processos mostram a necessidade de Estados, mas também empresas em setores críticos como, por exemplo, o financeiro, a energia e os transportes, olharem para o impacto que as suas políticas, ações e, sobretudo, omissões podem ter. Uma adequada gestão de riscos passa também por conhecer a litigância climática e os processos de greenwashing que não param de surgir.

A aplicação da Lei de Bases do Clima está atrasada. É, ainda assim, uma lei consequente? As sanções no caso de falha na aplicação desta lei deveriam ser mais…

A Lei de Bases do Clima é um instrumento importante e ainda bem que existe e foi aprovada. Mas, infelizmente, é a prova de como nada se altera só por decreto.

A sua implementação está atrasada, alguns diplomas e planos que esta Lei prevê que sejam aprovados não o foram, como a Estratégia Industrial Verde, que é absolutamente essencial e que, quando aprovada, deverá também levar em conta o Regulamento Europeu Indústria de Impacto Zero, que está em fase final de aprovação na União Europeia. Do ponto de vista municipal, também ainda há muito por fazer, estando por aprovar muitos planos municipais de ação climática.

Contudo, é preciso perceber que tivemos uma crise política pelo caminho, que não favoreceu a aprovação dos instrumentos necessários. Mais do que pensar em sancionar, o foco deve estar em acelerar agora o que não foi feito.

Uma diretiva europeia que se espera ter um grande impacto é a diretiva de reporte, CSRD. As empresas têm declarado dificuldades na implementação, especialmente quando se trata do levantamento de indicadores ao longo da cadeia de valor. É um diploma que implica demasiada burocratização, a seu ver?

A resposta que não pode deixar de ser dada é que: sim, a CSRD implica burocratização, claro, porque são mais exigências que as empresas têm de cumprir, exigências que não existiam antes. Desde logo há que definir parâmetros, métricas e processos, aprovar códigos de conduta de governança, ética empresarial, declarações de responsabilidade. Por isso, com certeza, vai haver mais burocracia, no sentido de mais tarefas a executar.

O que não concordo é que a CSRD implique demasiada burocratização. Essa avaliação só seria correta se o reporte exigido, incluindo o levantamento ao longo da cadeia de valor, fosse inútil ou servisse propósitos irrelevantes, o que não é, de todo, o caso.

Agora, o que me parece mais importante discutir é como é que podemos tornar esta maior carga em algo menos difícil. Como é que a implementação destas exigências pode ser facilitada e tornar-se mais fluída para as empresas abrangidas e para aquelas que estão na cadeia de valor das empresas abrangidas, para que não sejam um obstáculo na concretização dos objetivos definidos.

A Lei de Bases do Clima é um instrumento importante e ainda bem que existe e foi aprovada. Mas, infelizmente, é a prova de como nada se altera só por decreto. A sua implementação está atrasada, alguns diplomas e planos que esta Lei prevê que sejam aprovados não o foram, como a Estratégia Industrial Verde, que é absolutamente essencial e que, quando aprovada, deverá também levar em conta o Regulamento Europeu Indústria de Impacto Zero, que está em fase final de aprovação na União Europeia”

De que forma vê que a aplicação podia ser simplificada?

Parece-me evidente que esta dificuldade é mais sentida pelas PMEs, pela falta de recursos disponíveis. Então, uma das formas de facilitar o cumprimento dos deveres de reporte passa pelo apoio que as empresas maiores podem oferecer às PMEs na sua cadeia de valor. Estamos a falar de formação e instrumentos de capacitação, ou até de patilha de recursos, como o software usado para o reporte.

Acho que este capacity building que as empresas maiores podem oferecer às PMEs na sua cadeia de valor vai ser um elemento fundamental para ajudar a reduzir a perceção de dificuldade e até alguma resistência. Até porque, é preciso não esquecer, as PMEs que mais depressa fizerem esta jornada e se adaptarem aos deveres de reporte também terão uma vantagem competitiva em relação à sua concorrência. A questão pode e dever ser vista como uma oportunidade e não necessariamente como um obstáculo.

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