“Há normas fiscais que são ilegais por violação de Direito da União Europeia”

Em entrevista à Advocatus, a sócia contratada da Abreu Advogados, Sara Soares, fala sobre os tribunais fiscais, da evolução da tributação verde e da relação entre os contribuintes e a AT.

Sara Soares é sócia contratada e integra a Abreu Advogados desde 2008, tendo o seu principal foco em contencioso e consultoria fiscal. Tem particular intervenção em assuntos relacionados com IVA, designadamente com isenções em operações internas nos setores da saúde, desporto, educação e imobiliário, bem como com importações, transações intra-UE e operações envolvendo entidades públicas.

Colaborou na implementação de empresas distribuidoras de produtos petrolíferos em Portugal, bem como em procedimentos e processos de contencioso tributário relacionados com tributos especiais (de que é exemplo a CESE), impostos sobre o rendimento e impostos especiais de consumo. Tem também participado em projetos de investimento em Moçambique do ponto de vista da tributação direta e do imposto do selo. Em entrevista à Advocatus, fala sobre a situação dos tribunais administrativos e fiscais, da evolução da tributação verde e da relação entre os contribuintes e a Autoridade Tributária.

Houve algumas melhorias nos TAF depois de oito anos de PS e um ano de AD no Governo?

Sim, houve. Ainda há um caminho a percorrer, mas a justiça tributária de hoje é melhor do que a justiça tributária de há dez anos. Nos últimos anos, tem havido um esforço em termos de recrutamento de juízes para os TAFs, sendo que as últimas “reformas” do contencioso tributário (2019 e 2021) têm procurado acolher na lei a posição reiterada da jurisprudência sobre determinados temas, de forma a reduzir contencioso desnecessário. Em termos práticos, uma das alterações que trouxe uma melhoria mais significativa e evidente na tramitação dos processos fiscais foi a criação, nos tribunais de primeira instância e de recurso, de juízos de competência especializada para as execuções fiscais e recursos contraordenacionais, permitindo que, nessas matérias, as decisões sejam proferidas com maior celeridade e que os juízos comuns possam concentrar-se em processos que são, em regra, mais complexos.

Qual o perigo a nível de reformas fiscais – ou falta delas – com a marcação de eleições legislativas antecipadas?

Diria que, da mesma forma que antes de se adquirir uma empresa, se realiza uma due diligence, importa, antes das reformas fiscais, identificar quais os aspetos que se pretendem alterar e porquê, definindo, por outro lado, critérios de mensuração dos resultados dessas reformas. Ou seja, independentemente do contexto político em que ocorrem as reformas, parece-me que faria sentido enquadrá-las num plano assente numa auditoria prévia e medidas de acompanhamento dos resultados, designadamente para efeitos de gestão de pendências junto dos TAFs. Por exemplo, seria importante apurar se alterações à lei em favor dos contribuintes estão efetivamente a ser implementadas pela AT. Pense-se, por exemplo, na alteração ao RGIT introduzida pela Lei 7/2021, que veio clarificar o regime da dispensa de coima – será esta uma norma que está efetivamente a ser aplicada pela AT ou há resistência em aplicá-la, assim se continuando a gerar contencioso?

Como está a evoluir a tributação verde em Portugal?

​A tributação verde em Portugal encontra-se dispersa em legislação que regula diferentes tipos de tributos, sendo uma preocupação do legislador fiscal patente, não apenas nos impostos que mais facilmente se associam a objetivos ambientais (como o ISV ou o ISP), como também em impostos sobre o rendimento (IRC) e o consumo (IVA) e, ainda, em tributos parafiscais (de que é exemplo a taxa sobre os sacos de plástico). A evolução da legislação tem sido no sentido de agravar a tributação sobre a utilização de combustíveis fósseis e a emissão de CO2, incentivando, por outro lado, consumos mais responsáveis do ponto de vista ambiental (de que são exemplo os diversos benefícios fiscais associados à aquisição de veículos elétricos).

A existência de preocupações ambientais associada a determinados tributos nem sempre, contudo, reflete a realidade, o que poderá ferir de ilegalidade os atos de liquidação desses tributos. Veja-se, por exemplo, o caso da Contribuição de Serviço Rodoviário, a qual, de acordo com o Estado Português, visava incentivar a racionalização do consumo de combustíveis e a utilização sustentável das vias rodoviárias, mas que foi considerada ilegal pelo TJUE por não ter, como exigia o Direito da UE, um motivo específico, antes se destinando à simples obtenção de receita.

Independentemente do contexto político em que ocorrem as reformas, parece-me que faria sentido enquadrá-las num plano assente numa auditoria prévia e medidas de acompanhamento dos resultados, designadamente para efeitos de gestão de pendências junto dos TAFs. Por exemplo, seria importante apurar se alterações à lei em favor dos contribuintes estão efetivamente a ser implementadas pela AT”

Qual a importância do contencioso tributário para a definição de relação jurídica fiscal que se estabelece entre o Estado e os contribuintes?

O contencioso tributário é essencial para a definição da relação que se estabelece entre o Estado e os contribuintes. Naturalmente, se a informação que um contribuinte consegue obter da AT é clara, completa e prestada em tempo útil, haverá mais condições para o cumprimento das obrigações fiscais e o espaço para que haja divergências na interpretação da lei diminui. Se, por outro lado, e como vemos acontecer tantas vezes na prática, o contribuinte recebe por parte da AT informações incompletas, obscuras e que se alteram consoante o interlocutor com quem contacta, há mais espaço para que surjam questões que apenas se resolvem em contencioso.

Houve uma falta de vontade política para a reforma legislativa da legislação processual tributária até aqui?

A legislação processual tributária tem vindo a ser alterada nos últimos anos – houve pequenas “reformas” do contencioso tributário em 2019 e 2021. Continua, contudo, a ser necessário dotar os Tribunais Administrativos e Fiscais de recursos humanos suficientes para fazer face ao número de pendências e conseguir ganhos de eficiência. O mesmo se diga relativamente à Autoridade Tributária e Aduaneira, que está neste momento a viver uma crise causada por falta de meios humanos, muito visível no incumprimento dos prazos legalmente estabelecidos para dar resposta aos pedidos dos contribuintes (designadamente, dos prazos de execução das decisões judiciais com os respetivos juros de mora associados) – o que, por seu turno, acaba por colocá-los numa posição de necessidade de recurso ao contencioso tributário para verem os seus pedidos atendidos.

Quais são os tipos mais comuns de litígios entre contribuintes e a AT em Portugal?

A situação que mais tipicamente dá origem a contencioso tributário em Portugal estará relacionada com a contestação de liquidações adicionais (de IVA, IRC, IRS, etc.) na sequência de procedimentos de inspeção tributária. Haverá também um número relevante de casos relativos autoliquidações em que o que se discute são ilegalidades do regime jurídico do tributo (como acontece, por exemplo, com a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético) e a atos de fixação do valor patrimonial (como o caso do IMI dos parques eólicos). Depois, há também muitos atos praticados pela AT no âmbito de processos de execução fiscal que são ilegais e trazem prejuízos patrimoniais imediatos para os contribuintes (relacionados, por exemplo, com atos de penhora) e que dão origem a diversos processos judiciais.

Os custos de advogados e processos judiciais são um entrave para os contribuintes contestarem decisões da AT?

A decisão de contestar as decisões da AT passa, naturalmente, por uma avaliação custo-benefício, em que os honorários dos advogados e os encargos com os processos judiciais são componentes consideradas pelos contribuintes. Mas não são as únicas. Com efeito, nem todos os contribuintes têm a possibilidade de pagar as dívidas fiscais que pretendem discutir, o que significa que será instaurado o correspondente processo de execução fiscal. Para que se evite a prática de atos de penhora, é necessário prestar garantia (pelo valor da dívida, juros e custas acrescido de 25%) ou pedir dispensa de garantia (e demonstrar a verificação dos respetivos requisitos), sendo que, enquanto a execução fiscal estiver pendente, continuarão a vencer-se juros de mora (cuja taxa para 2025 é de 8,309%). Por outro lado, sendo possível efetuar o pagamento da dívida fiscal em causa, importa ter em conta que a discussão da legalidade pode levar vários anos, durante os quais o contribuinte estará privado desse capital (ainda que, em face de uma decisão favorável, tenha direito ao seu reembolso acrescido de juros indemnizatórios de 4%/ano). Assim, todos estes custos relacionados com o pagamento/cobrança coerciva da dívida fazem também parte da decisão dos contribuintes de contestar ou não as decisões da AT.

Quais as taxas de sucesso dos contribuintes em litígios contra a AT (tendência)?

Na arbitragem tributária, segundo os dados tornados públicos, o que se tem verificado é que os contribuintes ganham mais processos e a AT ganha os processos de maior valor. Segundo os últimos dados relativos à justiça estadual, embora menos recentes, os contribuintes tendem a ganhar mais processos.

Como é garantido o princípio da igualdade entre grandes empresas e pequenos contribuintes?

Uma alteração da cultura da AT poderia contribuir para diluir as desigualdades entre grandes empresas e pequenos contribuintes. Decerto que uma postura mais cooperante por parte da AT, que assegurasse a prestação de informação clara, completa e em tempo útil a todos os contribuintes, evitaria, em geral, contencioso desnecessário, contribuindo para uma maior igualdade entre contribuintes de dimensões e capacidade financeira desiguais. Para isso, seria também necessário reforçar os meios humanos ao dispor da AT.

O Portal das Finanças e a submissão eletrónica de recursos melhoraram o acesso à justiça fiscal?

O e-balcão veio contribuir para uma maior proximidade nos contactos entre a AT e os contribuintes. É, por isso, uma ferramenta útil, embora apresente ainda alguns aspetos que necessitam de melhoria. Por exemplo, para que o contribuinte possa confirmar se os pedidos submetidos via e-balcão foram decididos, tem de consultar continuadamente a sua página no Portal das Finanças, o que poderia ser solucionado através do envio de um alerta, sempre que a AT respondesse, para o email do contribuinte (à semelhança do que acontece com a via CTT).

A automatização de liquidações (como o e-fatura) reduz erros ou aumenta litígios?

Diria que a o preenchimento automático de declarações fiscais veio facilitar o cumprimento das obrigações fiscais dos contribuintes. Não tenho a perceção, no dia-a-dia, que essa automatização contribua para o aumento de litígios entre os contribuintes e a AT.

A AT usa inteligência artificial para análise de processos. Isso pode prejudicar o contribuinte?

A análise de processos, seja feita por inteligência humana ou artificial, comporta sempre uma margem de erro. É natural e de salutar que, da mesma forma que o setor privado utiliza ferramentas de inteligência artificial para contestar atos praticados pela AT, o setor público conheça e utilize também essas ferramentas para analisar processos e controlar as declarações e obrigações dos contribuintes – o importante é que seja em prol da descoberta da verdade material, mais do que da maximização a qualquer custo da receita fiscal.

Uma postura mais cooperante por parte da AT, que assegurasse a prestação de informação clara, completa e em tempo útil a todos os contribuintes, evitaria, em geral, contencioso desnecessário, contribuindo para uma maior igualdade entre contribuintes de dimensões e capacidade financeira desiguais”

Há cláusulas abusivas na legislação tributária que geram insegurança jurídica?

Há normas fiscais que são ilegais (por exemplo, por violação de Direito da União Europeia) e outras que permitem interpretações diversas. Desejavelmente, sempre que existe uma decisão do TJUE que declare uma norma fiscal interna contrária ao Direito da UE, ou que haja jurisprudência reiterada dos tribunais superiores que consideram ilegal a interpretação que a AT faz de certas normas, a AT deveria acolher essas interpretações – de resto, porque a isso está vinculada, ao menos em teoria e à luz da lei. Há muitos casos em que há uma insistência, por parte da AT, em continuar a litigar sobre temas que se encontram já pacificamente resolvidos pela jurisprudência a favor do contribuinte, numa postura suscetível de gerar insegurança jurídica e contencioso evitável.

Que mudanças na lei seriam necessárias para tornar o sistema mais justo?

Embora a lei preveja já a necessidade de a AT rever a sua atuação em conformidade com jurisprudência reiterada dos tribunais superiores, a prática demonstra que essa não é a postura da AT. Assim, talvez a introdução de mecanismos de composição de litígios numa fase pré-contenciosa e a fixação de incentivos aos funcionários da AT que tivessem em conta o número de litígios judiciais evitados, porque resolvidos em fase anterior, mais do que os valores cobrados coercivamente em execução fiscal, poderia ser uma solução que desincentivasse a cultura litigante que existe na AT, contribuindo, em última análise, para um sistema mais justo.

Portugal deveria adotar um Tribunal Tributário independente, como em outros países?

Em Portugal, a jurisdição administrativa e fiscal é autónoma da jurisdição comum, e parece-me que essa autonomia deve manter-se, por ser um pilar da especialização dos juízes, que é fundamental nestas matérias. Contudo, é também essencial dotar os Tribunais Administrativos e Fiscais de meios humanos – não só de juízes, como também de assessores, licenciados em áreas técnicas cujo domínio complementa o conhecimento dos juízes e desempenha um papel muito importante na decisão de várias causas.

É também essencial dotar os Tribunais Administrativos e Fiscais de meios humanos – não só de juízes, como também de assessores, licenciados em áreas técnicas cujo domínio complementa o conhecimento dos juízes e desempenha um papel muito importante na decisão de várias causas”

O funcionamento célere e eficiente da justiça tributária arbitral não provocou uma falta de investimento na justiça tributária estadual?

Esta questão foi analisada em 2023 pelo Lisbon Public Law Research Centre, que produziu um Relatório sobre a Arbitragem Tributária em Portugal e concluiu que não é possível estabelecer uma relação entre a existência da arbitragem tributária e um desinvestimento na justiça estadual. Apesar de ser necessário continuar a apostar em medidas que permitam à jurisdição estadual conseguir melhores resultados, a verdade é que, ao longo dos últimos anos, têm sido tomadas medidas orgânicas (como a recrutamento continuado de juízes para os tribunais administrativos e fiscais e a criação de juízos de competência especializada) e processuais (de acolher na letra da lei jurisprudência pacífica sobre determinados temas) que afastam a conclusão de que tem havido um desinvestimento nos tribunais administrativos e fiscais.

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