“Lamento que, neste caos, o Ministério Público não imponha a ordem”

Alexandra Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha ECIJA, fala sobre o programa de Governo, a fase da instrução, o segredo de justiça e a atuação do Ministério Público. Leia a entrevista.

Alexandra Mota Gomes, sócia na Antas da Cunha Ecija é licenciada pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pós-graduada em Arbitragem pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Frequentou o Curso de pós-graduação em Direito Penal Económico-Financeiro no Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e o Curso Avançado em Cooperação Judiciária Internacional e Europeia em Matéria Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

Entre 2000 e 2020, integrou a equipa da PLMJ. O seu trabalho tem-se centrado sobretudo na área da criminalidade organizada, crimes económicos, white colar crimes e cibercriminalidade. Tem experiência no âmbito da prevenção da corrupção, do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo. Bem como na área das contraordenações, em especial no âmbito do direito bancário, mercado de capitais, farmacêutico, ambiente, construção civil, energia, telecomunicações, publicidade e economia.

Foi responsável pelo lançamento de um programa de compliance “Highly Commended” na edição de 2018 do Financial Times, Innovative Lawyers, na categoria de novos produtos e serviços. É membro da Associação de Advogados Penalistas.

No programa de Governo, apresentado ontem, a suspensão provisória do processo aplicada a quem contribuir para a verdade nos processos de corrupção está a ser ponderada. É uma medida positiva?

Nos casos de corrupção ativa e de oferta indevida de vantagem já é possível a aplicação do instituto de suspensão provisória do processo quando o arguido tenha contribuído decisivamente para a descoberta da verdade. Desde 21 de março de 2022, deixou inclusivamente de ser necessário que o arguido também tivesse denunciado o crime para poder beneficiar deste regime.

Apesar de se desconhecer em que moldes concretos pretende o atual Governo adaptar o instituto em causa, antecipa-se que esta medida pretenda encorajar os arguidos a colaborarem com as autoridades judiciárias, recompensando-os através da sua não submissão a julgamento.

Esta medida tem, desde logo, o impacto positivo de facilitar a investigação criminal. Em muitos casos, as práticas corruptivas são caracterizadas pela sua sofisticação. A obtenção de informação mais detalhada sobre o modus operandis dos agentes permite, por isso, às autoridades compreenderem e descreverem a prática do crime com maior rigor e sustentação.

O contributo do arguido pode envolver a identificação de outros intervenientes no crime. Portanto, esta medida constitui também um incentivo à violação do “pacto silêncio” que os une. Circunstância que terá certamente um efeito dissuasor, na medida em que, por temerem vir a ser denunciados, os agentes do crime podem deixar de querer prevaricar, principalmente em conluio.

A medida em causa tem também a vantagem de poder antecipar o pagamento de quantias pelos arguidos, através do cumprimento das injunções aplicadas, sem necessidade de julgamento e de fazer incorrer o Estado em despesas adicionais.

Esta medida pode, no entanto, ter os seguintes efeitos perversos que devem ser ponderados: i) protelar a realização de diligências e confundir as autoridades, com prejuízo para a investigação criminal; ii) não traduzir um verdadeiro arrependimento sincero, porque denunciar terceiros pode ter um único propósito: o de “safar a própria pele”, “dando os outros à morte”; iii) incentivar e premiar um comportamento que, em certos contextos, evidenciará uma característica humana negativa – a traição ao próximo.

Ao ponderar a adaptação do regime atualmente em vigor, o Governo deveria também refletir sobre a existência de meios efetivos que lhe permitam proteger aqueles que optam por colaborar com as autoridades, no caso de verem a sua segurança comprometida.

E a fixação de 72 horas do prazo máximo para decisão de medidas de coação desde a detenção de um arguido, permitindo ainda que possa ser ouvido por mais do que um juiz de instrução?

Atualmente o Código de Processo Penal prevê um prazo de 48 horas para que o detido seja presente ao Juiz de Instrução Criminal para primeiro interrogatório judicial ou para a aplicação de uma medida de coação.

Aumentar o prazo para que um arguido seja interrogado depois de ter sido detido, significa coartá-lo na sua liberdade por mais um dia. O direito à liberdade não deve ser sacrificado de forma excessiva ou injustificada.

Por maior que seja o volume de trabalho nos tribunais e por mais complexo que seja o processo-crime em investigação, o direito à liberdade deve sempre ser sempre ponderado e prevalecer.

Por esse motivo, a ser alterado, o prazo máximo da detenção deveria ser determinado em função da gravidade do crime cometido, ao invés de se fixar um prazo máximo mais alargado comum a qualquer crime. Caso contrário, correr-se-á o risco de, mesmo em casos de pequena gravidade (e, normalmente, menos complexos), os arguidos ficarem privados da sua liberdade pelo mesmo prazo máximo previsto na lei.

Nesta fase processual, a ponderação do Tribunal quanto à prática do crime é de mera indiciação. Não se justifica, por isso, que os meios da Justiça, como os humanos, sejam reforçados para proceder a este tipo de apreciação.

Mesmo que se trate de um caso complexo, caberá ao Ministério Público e aos órgãos de polícia criminal reunir a informação sobre a indiciação da prática do crime e sobre os perigos que, a seu ver, justificam a aplicação das medidas de coação de forma objetiva, organizada e suportada em evidências devidamente identificadas, para que os tribunais possam decidir com ponderação, em tempo razoável e sem comprometer excessivamente a liberdade dos detidos.

Questão diferente será a fixação do prazo máximo de duração do interrogatório sob detenção, que atualmente não tem previsão legal.

Por esse motivo, a ser alterado, o prazo máximo da detenção deveria ser determinado em função da gravidade do crime cometido, ao invés de se fixar um prazo máximo mais alargado comum a qualquer crime. Caso contrário, correr-se-á o risco de, mesmo em casos de pequena gravidade (e, normalmente, menos complexos), os arguidos ficarem privados da sua liberdade pelo mesmo prazo máximo previsto na lei”

Estamos demasiado obcecados com a corrupção?

Não diria que se trata de uma obsessão. Há uma consciência generalizada de que as práticas corruptivas minam e contaminam a objetividade e independência da Administração Pública, nomeadamente nos casos em que os intervenientes, ao invés de decidirem no interesse público, estão conflituados por interesses particulares.

Tem vindo a aumentar a consciencialização do impacto da corrupção na economia; é divulgada com frequência a avaliação do índice de perceção da corrupção em cada país, à escala mundial, pela Transparência Internacional; e a própria legislação europeia reforçou a monitorização da gestão dos fundos europeus, em particular com o PRR, para evitar a fraude e a corrupção. A comunidade tem vindo também a insurgir-se e a perder confiança nas instituições perante o número crescente de casos de corrupção.

Conjugados, todos estes fatores exigem a ponderação e a aplicação de medidas que visem combater os fenómenos corruptivos. É, por isso, importante que a prevenção da corrupção continue na ordem do dia e que se efetivem os mecanismos legalmente previstos.

Nas 186 páginas do programa de Governo, não há uma única referência à advocacia. Isso é preocupante?

Não é frequente que um programa de Governo verse sobre a atividade da advocacia. Numa profissão independente do Estado, a ausência a referências à advocacia é, aliás, preferível à existência de referências que afetem o exercício livre da profissão.

Espera-se, porém, que o Governo atenda aos problemas que impactam a Justiça e às questões há muito suscitadas pela Ordem do Advogados, nomeadamente quanto às condições de acesso ao Direito e aos Tribunais.

Faz sentido a fase de instrução deixar de existir, no processo penal?

A fase de Instrução tem uma missão muito própria de permitir que um Juiz aprecie e comprove a decisão do Ministério Público sobre a submissão de um arguido a julgamento. Pode ser realizada para a apreciação de questões jurídicas relevantes e também para a apreciação autónoma da prova. Não se justificará que deixe de existir.

Distinto será discutir se as suas finalidades estão de facto a ser observadas no dia a dia. Lamentavelmente, não estão. São vários os tribunais que se escusam, efetivamente, de apreciar questões de facto e que não estudam nem conhecem sequer o processo durante todo o debate instrutório. Outros casos há em que instrução se transforma indesejavelmente num verdadeiro pré-julgamento, o que também não é aceitável. São estes vícios práticos, com os quais somos muitas vezes confrontados, que devem ser corrigidos.

Alexandra Mota Gomes, sócia da Antas da Cunha ECIJA

A prestação de contas por parte do MP é uma miragem?

O Estatuto do Ministério Público estabelece que deve ser assegurado o acesso, pelo público e pelos órgãos de comunicação social, à informação relativa à sua atividade.

Este acesso deve ser assegurado pelo Gabinete de Imprensa e Comunicação da Procuradoria-Geral da República (PGR), que funciona no âmbito do gabinete do Procurador-Geral da República. Seja qual for a forma como se concretize este acesso à atividade do Ministério Público, estará sempre limitada pela preservação do segredo de justiça e pelos interesses da investigação, os quais nunca poderão deixar de ser salvaguardados e, como tal, a prestação de contas nunca poderá ser absoluta ou irrestrita.

Como avalia a comunicação (ou falta dela) por parte do Ministério Público/PGR?

A comunicação do Ministério Público, veiculada publicamente, através das conhecidas “Notas de Imprensa”, tem vindo a seguir um padrão: de noticiar o envolvimento de pessoas com especiais responsabilidades na vida pública, como os titulares de cargos políticos, na prática de crimes cometidos no exercício das suas funções, assumindo um dever de informar os cidadãos da existência desses inquéritos. Esse dever não se encontra, porém, previsto.

Ao fazê-lo dessa forma, com as limitações inerentes (por exemplo, a da não contextualização da atuação dos visados), o Ministério Público abre a porta às informações contestáveis e contraditórias; à presunção de culpabilidade e a equívocos na comunicação social.

Lamenta-se que, criado esse “caos”, o Ministério Público também não imponha a ordem, ao não elucidar a comunidade sobre os equívocos gerados com as informações transmitidas ou clarificar os meandros processuais dos casos ali mencionados.

Para evitar situações como as que vivemos nos últimos meses, quando os processos estão sujeitos a segredo de justiça, o Ministério Público deveria emitir comunicados para a imprensa apenas nos casos previstos pelo legislador: a pedido de pessoas publicamente postas em causa ou para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública, apenas quando os esclarecimentos públicos se revelarem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação.

Existe atualmente uma espécie de perseguição a políticos por parte do Ministério Público?

A investigação criminal de pessoas que exercem cargos políticos não é uma novidade. No entanto, nos últimos anos, tem-se denotado uma maior especialização, por parte órgãos de polícia criminal, na investigação da corrupção e das infrações conexas.

O aumento das denúncias de operações suspeitas, em cumprimento dos deveres de prevenção do branqueamento de capitais; o reforço da cooperação internacional entre autoridades congéneres; o trabalho de jornalismo de investigação e os incentivos às denúncias por colaboradores das próprias empresas (que se encontram atualmente protegidos pela lei) também têm contribuído para o aumento de processos desta natureza.

O próprio Ministério Público está vinculado a assumir os objetivos e a adotar as prioridades e as orientações constantes das leis sobre política criminal que, nos últimos biénios, têm sempre identificado os crimes contra o Estado como crimes de prevenção e de investigação prioritárias.

Não diria, por isso, que há uma concertação de esforços propositada para a investigação de processos que envolvam os titulares de cargos políticos, mas uma tendência para o surgimento de mais notícias desse tipo de crimes e para um investimento de meios na respetiva investigação.

Há, no entanto, um flagelo que deveria ser combatido: a divulgação de diligências ou de atos processuais pelos meios de comunicação social em evidente concertação com as autoridades, muitas vezes em processos sujeitos a segredo de justiça. Pessoas detidas em direto; buscas transmitidas ao vivo na televisão; jornalistas chegados ao local antes das próprias autoridades. Para mim, essa é a verdadeira perseguição.

Chegámos ao cúmulo de o julgamento público; a devassa da privacidade e da ofensa da reputação dos visados antecederem o seu próprio conhecimento quanto aos factos pelos quais estão a ser buscados ou privados da liberdade. Não se justifica nem se compreende. Esta concertação de agendas entre os media e os órgãos da justiça descredibiliza e desnobrece as funções da magistratura e dos órgãos de polícia criminal.

Há, no entanto, um flagelo que deveria ser combatido: a divulgação de diligências ou de atos processuais pelos meios de comunicação social em evidente concertação com as autoridades, muitas vezes em processos sujeitos a segredo de justiça. Pessoas detidas em direto; buscas transmitidas ao vivo na televisão; jornalistas chegados ao local antes das próprias autoridades. Para mim, essa é a verdadeira perseguição”

O que faz falta no Ministério Público?

O Ministério Público tem, sobretudo, falta de meios. Falta de meios materiais e humanos para desenvolver a investigação criminal de qualidade. Esta falta de meios tem evidentemente reflexos muito negativos não só na qualidade das decisões proferidas pelo Ministério Público, como constitui uma das principais causas da morosidade dos processos criminais em Portugal, que se arrastam anos na fase de investigação.

Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública, muito alimentada pelos comentadores televisivos residentes. Como explicar ao cidadão comum que não é assim que se faz Justiça?

A condenação não é o único sinónimo de justiça. A absolvição também poderá ser e, não raras vezes, o é. A acusação do Ministério Público, que muitas vezes é largamente difundida pelos meios de comunicação social e debatida pelos comentadores, mais não é do que uma versão da história, escrita e contada, a partir do zero, por “alguém” que não interveio diretamente nos factos e que, nada sabendo, procurou, aos poucos, montar as peças de um puzzle. Evidentemente, a essa versão (que tem as suas naturais fragilidades) soma-se a versão dos arguidos, normalmente só apresentada em julgamento e que pode, por exemplo, demonstrar que há peças da acusação que não pertencem àquele puzzle; que foram erradamente interpretadas ou que devem ser substituídas.

É na apreciação dessas versões da história e das provas juntas pela acusação e pela defesa que o Tribunal cria as suas convicções.

Naturalmente, se não existirem peças suficientes que permitam concluir o enigma trazido pela acusação, o arguido não pode ser condenado, por prevalecer a presunção de inocência. Sucede que a versão do arguido é, tendencialmente, muito menos divulgada pelos meios de comunicação. A matéria que, durante semanas havia sido debatida em horário nobre, passa a ser tratada numa mera nota de rodapé.

O burburinho que outrora se gerou inflamou a opinião pública e o seu impacto dificilmente é revertido. Permanece, por isso, a sensação de que, não havendo condenação, não se fez justiça. Os jornalistas que difundem as notícias e os comentadores que sobre elas opinam têm, por isso, responsabilidade acrescida para combater esta tese e devem zelar pela imparcialidade e pelo rigor na informação que transmitem.

Os megaprocessos são os responsáveis pela demora na Justiça Penal? O que pode ser melhorado para não termos processos a durarem tantos anos?

A necessidade que existia de investigar, de forma conjugada, todos os factos que envolvessem, por exemplo, a prática de vários crimes pelo mesmo agente, com a mesma conduta ou na mesma ocasião ou lugar, tornava os processos muito extensos e complexos.

Precisamente por isso, desde março de 2022, a conexão entre processos deixou de estar prevista quando seja previsível que venha a contribuir para o incumprimento dos prazos de duração máxima da instrução ou o atraso excessivo dessa fase processual ou da audiência de julgamento.

Infelizmente não são apenas os megaprocessos que se caracterizam pela sua morosidade. Existe, efetivamente, um problema de falta de meios, mas também de organização e de afetação dos meios materiais e humanos existentes na generalidade dos processos criminais.

A solução pode passar por ‘partir’ esses megaprocessos em vários, mais pequenos?

Foi precisamente essa a posição adotada pelo legislador em 2021.

Sabemos que a Justiça não é eficiente. Mas é independente?

Falo do MP e dos juízes. Quero acreditar que sim e recuso-me a suspeitar o contrário.

A lei do lobby vai ajudar a esclarecer e tornar certos contextos mais transparentes?

Sim. Se for devidamente regulamentada, poderá contribuir para uma maior igualdade de acesso ao poder legislativo, uma maior capacidade de informação no que toca aos representantes políticos e, principalmente, um aumento exponencial da confiança no poder político, porquanto qualquer cidadão poderia aceder livremente aos registos que determinaram todo o percurso efetuado até à tomada de decisões políticas e legislativas.

Se fosse ministra da Justiça, que medida tomaria em primeiro lugar?

Contratar uma equipa com os conhecimentos e as competências necessárias para identificar seriamente os problemas que assolam a Justiça em Portugal e encetar a reforma do sistema, que, claramente não funciona.

A Justiça é um pilar basilar de qualquer democracia e num país onde a Justiça tarda ou fica por fazer está a coartar a efetivação dos direitos e liberdades fundamentais dos seus cidadãos.

O segredo de justiça, na forma como está, deveria pura e simplesmente desaparecer?

Não. O segredo de justiça é absolutamente indispensável à investigação criminal e à proteção dos direitos dos sujeitos processuais.

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