A presidente do Instituto dos Atuários Portugueses alerta para a insustentabilidade real do sistema de reformas e fala dos novos riscos que a sociedade e a indústria seguradora estão a enfrentar.
Quando alguém paga um seguro pode interrogar-se por que paga aquele preço e não outro. Esse valor está associado ao risco que uma seguradora corre quando aceita uma apólice. E quem calcula esse risco é especialista em atuariado, um ou uma profissional que leva a matemática e a estatística até às últimas consequências, detetando e avaliando as mudanças no Mundo. As suas opiniões são decisivas para as decisões das seguradoras e obrigatórias para o supervisor do mercado.
Lourdes Afonso é atuária e professora associada no Departamento de Matemática da FCT NOVA onde é membro da Comissão Científica do Mestrado em Atuariado. É também docente convidada na NOVA IMS e atuária responsável dos ramos não vida certificada pela ASF, entidade reguladora. Presidente da Direção do Instituto de Atuários Portugueses desde janeiro de 2021, está perfeitamente a par do estado da arte na análise do risco existente para toda a sociedade portuguesa e também para o setor. Foi entrevistada por ECOseguros.
Quais os grandes desafios que se colocam aos atuários em 2022?
O poder computacional permite desenvolver e aplicar novas metodologias que englobam mais variáveis explicativas do risco, assim, numa componente mais inovadora em termos científicos, temos que o big data, o advance analytics e as tecnologias blockchain estão a trazer mudanças ao perfil do atuário. Ao mesmo tempo as abordagens mais clássicas têm cada vez mais aplicação, desde logo ao nível da prestação de contas (reporting) como por exemplo, é imposto pelo Solvência II e pelo IFRS17. As ciências atuariais começam a ser expandidas para outras áreas para além das tradicionais como a banca e os seguros. Existe já uma grande gama de organizações que entendeu o valor acrescentado dos atuários e dos analistas de dados nas suas equipas. Sempre que avaliação e gestão de risco e de responsabilidades estejam envolvidas, temos um desafio para um atuário.
Como se está a manifestar esta nova realidade?
Na mudança na forma como as pessoas fazem negócios, em alterações demográficas e económicas, novos seguros, nova regulamentação… Neste momento a fasquia está elevada. A inovação, tecnologia, e pensamento criativo são fundamentais para o trabalho do atuário no futuro, não só em 2022.
Como está a avaliar novos riscos como ciberataques?
A Investigação e desenvolvimento de modelos para avaliação de risco nesta temática é relativamente recente, com maior desenvolvimento a partir de 2017. A taxonomia ainda não está estabelecida, o que não ajuda. A maior dificuldade é, no entanto, a falta de dados para ajustar os modelos. Há uma necessidade de consolidar conceitos para que os riscos possam ser bem definidos, os seus impactos mensurados e, desde modo, criar um mercado para estes riscos. A comunidade atuarial está a trabalhar para contribuir para que este seja mais um risco que os indivíduos e as empresas possam segurar num futuro próximo.
Um dos impactos do Covid-19, que todos esperamos ser temporário, foi a redução da esperança de vida, que poderá ter impacto na redução da idade normal de reforma da Segurança Social.
Ainda é difícil medir impactos de ataques?
A variedade de tipos de ataques, voluntário como o phishing, o ransomware, as fraudes clássicas, ou os acidentes que podem correr num servidor, ou serviço de backup, a variedade de danos causados pelos ataques, materiais, pessoais, de imagem, dificultam o apuramento quer da frequência quer do custo de cada evento. Este é um tipo de risco em que a mutualização pode estar em causa devido à rápida evolução do risco, à possibilidade de perdas muitíssimo elevadas, risco de acumulação e risco de alguns produtos que não são de ciberataques conterem garantias que podem ser ativadas com um ataque cibernético.
Em relação a alterações climáticas?
As alterações climáticas são um dos temas do momento a ser acompanhado pela International Actuarial Association (IAA) com a criação de grupos de trabalho que já produziram dois documentos que discutem os riscos climáticos sob o ponto de vista atuarial: Importance of Climate-Related Risks for Actuaries, e o Introduction to Climate-Related Scenarios, que foram disponibilizados, respetivamente, em setembro de 2020 e fevereiro de 2021.
O que está a mudar na abordagem da longevidade, saúde e long Covid?
A longevidade já é um assunto que está em acompanhamento há alguns anos. A utilização de tabelas de mortalidade dinâmicas que avaliam as probabilidades de morte/sobrevivência por coorte (conjunto de pessoas com caraterísticas comuns) já estão a ser aplicadas. Os dados disponibilizados pelo INE ao “The Human Mortality Database” permitem a qualquer atuário a criação de tabelas de mortalidade que podem ser ajustadas com a experiência da seguradora em que se insere utilizando modelos correlacionais. Continua a ser um tema importante devido aos impactos sociais que tem.
A saúde é uma área que, também, está em grande evolução devido às inovações médico-científicas que impactam nos tratamentos e prevenção de doenças, tendo assim impacto nos custos médicos e consequentemente nos prémios a cobrar ao cliente.
Também se inclui aqui o long Covid. Alterações nos padrões dos custos das coberturas, boas ou más, terão repercussão na tarifa. Um dos impactos do Covid-19, que todos esperamos ser temporário, foi a redução da esperança de vida, que poderá ter impacto na redução da idade normal de reforma da Segurança Social.
Existe uma permanente monitorização dos riscos?
O trabalho do atuário está em constante evolução. As tarifas têm que ser alteradas e adaptadas às novas realidades, à alteração das variáveis que explicam o risco, à inovação tecnológica. O atuário deve estar atento a essas alterações e adaptar os modelos sempre que necessário, para tal deverá estar em constante formação e aquisição de conhecimentos.
Fala-se num fundo sísmico para responder a uma catástrofe previsível de um sismo na região de Lisboa. Considera que as consequências podem ser desastrosas?
A cobertura de risco sísmico, em Portugal, não é obrigatória. Os contratos de seguro que existem estão protegidos por resseguro e pelas reservas regulatórias impostas por lei, desde logo o regulamento europeu Solvência II. No entanto o risco de fenómenos da natureza tem aumentado em frequência e severidade. Os prémios de resseguro tenderão a aumentar ou para manter o preço tenderão a reduzir coberturas. É natural que se pretenda uma proteção extra para ocorrências que, pelas suas características, podem ser muito preocupantes e, obviamente, uma boa cobertura por seguros, não só obriga a melhorar as práticas de proteção como, em caso de evento, permite fornecer de modo muito rápido, o capital necessário à recuperação, mitigando os efeitos negativos do evento.
Também o atuário tem de fazer um esforço de previsão da economia e finanças em Portugal e no Mundo? Acha possível com profunda análise do passado prever uma crise económica no futuro?
É uma discussão antiga de saber se “Deus joga aos Dados”. Os processos sociais, como quase todos os processos “não laboratoriais” e mesmo estes os mais simples, têm sempre uma componente de imprevisto. Os atuários trabalham com sistemas de grande complexidade e aleatoriedade e para isso usam modelos, nomeadamente modelos estatísticos. Estes modelos são sempre simplificações dos processos em estudo e, como tal, incompletos e com erros. Contudo o atuário desenvolve todas as suas atividades em total concordância com o processo científico, o que lhe permite ter uma dimensão das limitações das suas previsões, muitas delas com grande importância social.
Sobre um mundo determinístico, a teoria do caos e a nossa experiência diz-nos que não é possível a nenhum modelo matemático prever o futuro com a confiança que gostaríamos.
E as previsões económicas onde entram?
Algumas responsabilidades têm uma duração de várias décadas, estou a pensar no pagamento de rendas vitalícias, no apuramento de responsabilidades atuariais com pensões. É necessário o atuário ter perceção económica e financeira do mercado envolvente. Com base no passado, existem alguns indicadores que apontam para determinado conjunto de previsões, mas todas com incompletude e incerteza associada. O papel do atuário é reduzir essa incompletude, e medir a incerteza associada a cada uma das previsões. Sobre um mundo determinístico, a teoria do caos e a nossa experiência diz-nos que não é possível a nenhum modelo matemático prever o futuro com a confiança que gostaríamos.
Em relação à Segurança Social em Portugal, considera que há um risco real de a taxa de substituição (valor do último salário entes da reforma vs. 1º mês de reforma) baixar dos atuais 72% para 40% em 2050?
Estamos a falar de uma projeção a 30 anos, num sistema de financiamento, da Segurança Social, de repartição, onde a atual população ativa contribui para pagamento das pensões em vigor, num país cada vez mais envelhecido. Estão demasiadas variáveis envolvidas para obter uma estimativa com alguma confiança. Os problemas de financiamento de sistemas de repartição estão já sobejamente estudados mas, infelizmente, nalguns casos, por questões de ideologia política, pouco desse conhecimento é trazido para a prática.
Existe caminho para solução?
Terá que existir uma mudança de fundo, ou em alternativa o aumento da idade normal de reforma (exequível só até uma determinada idade, não vamos todos estar a trabalhar com 80 anos), ou uma diminuição do valor da pensão. Desta forma fica a Segurança Social responsável apenas por uma pensão mínima transferindo o resto da responsabilidade para o segundo pilar (os empregadores) e terceiro pilar (o próprio indivíduo).
Como está estabelecida a função de atuariado em Portugal?
A comunidade atuarial portuguesa é uma comunidade espalhada pelo Mundo, com forte presença nos principais mercados, tendo formação universitária de qualidade internacional reconhecida. A formação dos atuários em Portugal assenta fortemente em duas universidades, a NOVA FCT da Universidade Nova de Lisboa e o Lisbon School of Economics & Management da Universidade de Lisboa, mas também na indústria, com particular relevância para a Seguradora, Consultoria e Auditoria. Esta comunidade está representada em Portugal pelo Instituto dos Atuários Portugueses (IAP) a associação profissional dos atuários com cerca de 330 associados. O IAP celebrou em 2020 o 75º aniversário é full member da Actuarial Association of Europe e da International Actuarial Association, , mas devido à pandemia, terá o Congresso comemorativo dos 75 anos do IAP a ocorrer em 24 de maio.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Lourdes Afonso:” Terá que existir uma mudança de fundo na segurança social”
{{ noCommentsLabel }}