Mira Amaral, antigo presidente do Banco de Fomento Angola e BIC, privou com a elite do poder angolano. Na véspera das eleições, o gestor explica o que poderá ser Angola a partir do dia 23.
Foi presidente do Banco de Fomento Angola entre 1998 e 2002, quando era administrador do BPI. Mais tarde, em 2007, liderou a entrada dos angolanos do BIC em Portugal, de onde saiu em 2014. Luís Mira Amaral conhece de perto a realidade económica de Angola, privou durante muitos anos com a elite do poder do país e, dessa relação, destaca a cordialidade com que sempre foi recebido em Luanda. Admite, porém, que a fronteira entre política e negócios privados é muito ténue em Angola. E diz que nunca sentiu qualquer preconceito da parte angolana relativamente ao passado de ex-potência colonizadora e colónia entre Portugal e Angola.
O país vai esta quarta-feira a votos para eleger o sucessor de José Eduardo dos Santos. Para o antigo ministro, hoje na administração da Sociedade Portuguesa de Inovação e da sociedade de capital de risco BusyAngels, a transição de poder em Angola será suave. “As transições em África não são tão radicais como se pensa”, assegura.
As eleições gerais em Angola vão mudar alguma coisa no país?
Percebo que haja alguma expectativa porque falamos da substituição de um Presidente da República que esteve no poder há 38 anos. Só isso gera forçosamente uma elevada expectativa.
Essa expectativa também decorre pela forma como José Eduardo dos Santos liderou o país nestas últimas décadas?
A sua longevidade no poder, com a sua personalidade, com o facto de ter sido com ele que se assistiu finalmente à paz em Angola, seguida de um período de reconstrução económica forte, obviamente que é uma mudança de ciclo que gera algum nervosismo e expectativas. Mas eu chamaria a atenção para o facto de estas transições em África, e já se viu isso na Namíbia, não serem tão radicais como poderemos pensar no Ocidente. Primeiro porque o candidato do MPLA é aquele que deverá ganhar. A lista do MPLA vai ser a mais votada. Isto significa que haverá um novo Presidente da República, mas será uma transição dentro do MPLA. Por outro lado, o ainda Presidente vai continuar algum tempo como presidente do partido. Portanto, há aqui dois fatores de transição suave.
A criação do cargo de presidente emérito reforça esta ideia de transição suave…
A transição será suave. Mas o facto novo está na possibilidade de o partido CASA-CE ficar em segundo lugar e não ficar a UNITA. Se isto acontecer, a tradicional hegemonia dos dois partidos MPLA e UNITA, que vem dos tempos da Guerra Civil, começa a ser contestada. Há uma outra geração que emerge na senda política angolana e que é protagonizada pelo partido CASA. Obviamente que não vai ganhar, mas pode ser o segundo partido mais votado, o que significa a ascensão de gente mais jovem à vida política e pode prenunciar a prazo quebrar a hegemonia de duopólio do MPLA e da UNITA.
Pode ser o início do fim desse duopólio…
Pode ser o início do fim desta estrutura que foi herdada da independência e da guerra civil. Isto é um facto novo. Não quer dizer que o MPLA perde já o poder. Mas, de facto, é absolutamente normal e inevitável que o MPLA ganhe as eleições mas com menos votos do que nas últimas eleições. Mas isto são tudo factos que o tempo vai explicar. O mais interessante vai ser perceber que percentagem o partido CASA terá, qual será a diferença em relação ao UNITA e se isto anuncia que de facto o partido CASA possa emergir no futuro como partido que disputa a liderança com o MPLA, quebrando a hegemonia MPLA-UNITA.
A longevidade de José Eduardo dos Santos no poder, com a sua personalidade, com o facto de ter sido com ele que se assistiu finalmente à paz em Angola, seguida de um período de reconstrução económica forte, obviamente que é uma mudança de ciclo que obviamente gera algum nervosismo e expectativas.
Apesar de sair de cena, a figura de José Eduardo dos Santos vai continuar muito presente na vida dos angolanos?
Isso nem é um juízo de valor, é um juízo de facto. Foi presidente durante 38 anos. Foi o segundo presidente de Angola, sucedeu àquele que fez a independência. Esteve 38 anos, aguentou uma guerra civil. Fez a paz. Teve alguma sagesse para não destruir a UNITA e acomodar esse sistema político. Obviamente que este homem marca e, portanto, as coisas não se apagam de um dia para o outro. Por isso é que digo que vai haver uma transição a curto prazo suave. A médio e longo prazo ninguém sabe dizer até porque, mesmo dentro do próprio partido, e eu vi isso, as pessoas são diferentes. Incutem depois o seu cunho pessoal.
Conhece bem a realidade angolana, económica, social… Como é que caracteriza a evolução do país durante estas últimas décadas com José Eduardo dos Santos no poder?
Houve uma fase da guerra civil e depois de terminada a guerra civil houve uma fase de construção de Angola. Essa fase de construção foi conseguida no domínio das rodovias. Angola voltou a ter uma rede de estradas que eu já fiz de jipe. Atravessei toda Angola de jipe, de norte a sul. Aquele conjunto de estradas alcatroadas que tínhamos deixado e que tinham sido desfeitas, o governo mandou reconstruir essas estradas. Angola tem neste momento uma rede rodoviária que é quase ímpar no caso da África Subsariana que permite a alguém como eu atravessar de jipe Angola de Norte a Sul do país, calma e comodamente sem quaisquer problemas. Curiosamente tem uma rede de postos de abastecimentos muito semelhante à nossa, de duas concessionárias: a Puma e a Sonangol. As estações de serviço fazem lembrar as nossas da Galp. Angola já se atravessa calmamente de carro, de um lado ao outro.
E nos outros setores?
Nos aeroportos, ainda não é claro. Ainda estão numa fase de construção. Caminhos-de-ferro também começaram a construir, mas aí o processo foi menos bem conseguido porque houve muita construção chinesa. E a construção chinesa é de fraca qualidade. Quando os chineses entraram em Angola houve algum receio de que a construção civil portuguesa pudesse perder para os chineses. Mas ao fim de um certo tempo percebeu-se que a qualidade da nossa construção civil é muito superior à chinesa. Mesmo nas estradas e nos edifícios, a construção chinesa é inferior à portuguesa. E nos caminhos-de-ferro a construção chinesa está longe de ser famosa.
E em relação aos portos?
É uma área em que eles estão muito atrasados. O porto de Luanda tinha graves estrangulamentos, e era preciso não só melhorar o porto de Luanda como diversificar a rede de portos para não se afunilar tudo na capital. Tem sobretudo a ver com o porto a Sul, na zona de Benguela. Já começou a funcionar mas ainda não é claramente uma alternativa a Luanda, porque tem de ser complementada com rodovia, que já funciona, e com ferrovia, que não está famosa. Depois há toda a fase de diversificação de economia. E essa fase está muito atrasada.
É uma economia muito dependente das receitas do petróleo…
É muito difícil, pela natureza humana, falar em diversificação da economia quando se tem um petróleo com preço elevado e que permitia receitas muito elevadas para o país. É uma situação cómoda, fácil…
O incentivo a diversificar não era muito grande?
Exato. O elevado preço do petróleo até era um desincentivo. Mas quando o petróleo caiu, e recordo que quando estive em Angola em agosto de 2014, estive numa conferência em que expliquei que o shale oil americano ia afundar os preços. Senti que todos estavam admirados com o que disse. Não tinham consciência do que ia acontecer uns meses depois. Sendo a economia angolana muito dependente do petróleo, quase monoproduto de exportação, quando o petróleo cai de preço, obviamente que a economia angolana passa a ter alguns problemas, deixa de ter uma situação de abundância, passa a operar num contexto de restrição financeira, e torna-se evidente a necessidade de diversificar a economia. Mas esta diversificação não se consegue apenas com a prata da casa. Para isso é essencial o Investimento Direto Estrangeiro (IDE). Por exemplo, foi quando estive no Governo que trouxemos a Autoeuropa, a Continental, a Bosch. Se Portugal, naquela fase, não tivesse tido a consciência de que não conseguiria diversificar a economia sozinho… veja o estado da economia angolana, com muito menos capacidade empresarial que a portuguesa, com recursos humanos muito menos capacitados que os portugueses. Isso é crucial.
Mas agora os preços petrolíferos estão em mínimos…
Depois da queda do petróleo, começamos a ouvir falar novamente da diversificação da economia com um nível que não se ouvia até então. Mas IDE implica trazer não apenas capital e tecnologia. É preciso trazer recursos humanos qualificados. Podemos ter Angola a formar quadros em universidades angolanas, economistas e gestores, mas se nas empresas eles não têm enquadramento, os recém-formados não têm formação on job. Nós temos o exemplo da Autoeuropa. Foi um sítio fabuloso para os jovens aprenderem os métodos de gestão alemães. O IDE é muito importante para Angola. A minha experiência em África diz-me que os portugueses são os mais adequados para operar em Angola. Estamos naquele estado de tecnologia intermédio. Não somos tão sofisticados que os americanos, os alemães ou franceses. Mas temos a tecnologia e o know how adequado para eles. E percebemos os problemas deles. Dou-lhe um exemplo muito simples: quando uma máquina se avaria, o que faz um alemão? Telefona para a fábrica para trazer uma máquina suplente. Isso em Angola não funciona. O que é que o português sabe fazer? Sabe desenrascar e arranja a máquina.
A minha experiência em África diz-me que os portugueses são os mais adequados para operar em Angola. Estamos naquele estado de tecnologia intermédio. Não somos tão sofisticados que os americanos, os alemães ou franceses. Mas temos a tecnologia e o know how adequado para eles. E percebemos os problemas dos angolanos.
Depois também temos problemas sociais.
O índice de desenvolvimento humano em Angola é baixo. Todo o investimento em educação e saúde é fundamental. Não basta anunciar que quer diminuir as desigualdades. O desenvolvimento educacional e a qualificação das pessoas são questões determinantes para reduzir as desigualdades. Depois temos as questões da saúde. Mas falar nisto é muito bonito. E a esquerda europeia esquece-se disso: se não houver crescimento económico, se a economia não funcionar, não há meio de financiar isto. Diria que o desenvolvimento social e humano é muito importante e aí a educação e a saúde importam. Mas é preciso uma base económica para financiar isso. As coisas estão ligadas.
Falou em IDE. Mas para quem investe em Angola, são muitos os obstáculos até na transferência de capitais para fora do país…
Quando o petróleo sobe alguma coisa, isto só estimula maior produção americana, o que pressiona logo os preços. Por isso, não acredito que o preço vá subir tão cedo. Angola vai operar num contexto de restrição de divisas nos próximos tempos. O que espero é que os portugueses possam ajudar à diversificação da economia angolana e a meu ver é essa diversificação que vai trazer mais divisas. Enquanto isso não acontecer, Angola vai operar num quadro de escassez de divisas. É evidente que o governo angolano tem na mão o poder de decidir quais os setores prioritários. Depois, com as poucas divisas que tem, fazer essa gestão.
Que setores são esses?
A prioridade será a parte agrícola e medicamentos. Na medida em que produzem mais produtos agrícolas em Angola, atenua-se a pressão cambial porque precisam de importar menos. E, importando menos, isso dá algum alívio cambial. Isso diminui os problemas de transferência de capitais e escassez de divisas para pagar aos expatriados portugueses que têm enfrentado muitas dificuldades. Mas não acredito que, de um momento para o outro, venha alguém com uma varinha mágica fazer com que o problema desapareça.
Alguma ideia formada acerca do candidato do MPLA, João Lourenço?
Conheço-o mal. Fui uma vez a Angola e fui recebido por ele, quando ele era secretário-geral do MPLA. É muito simpático e recebeu-me de forma muito cortês. Mas nunca contactei com ele. Fui em visita de cortesia. Fui lá e levei-lhe cumprimentos de cortesia do presidente do PSD que na altura era, salvo erro, Durão Barroso. Recebeu-me muito simpaticamente, mas nunca tive contactos de trabalho… Tive mais contactos com responsáveis no Banco Nacional de Angola por causa das funções que desempenhei na banca do que com os líderes políticos angolanos.
A sua vida sempre esteve muito ligada à vida angolana. Como foi a sua relação com a elite angolana?
Sempre foram muito cordiais. Só tenho a dizer bem da relação que tiveram comigo. Aliás, o simples facto de ter estado no Governo de Cavaco Silva, que era um homem de quem eles gostavam, que a classe política angolana gosta, isso facilitou-me. Tive logo à partida uma recetividade por ter sido ministro de Cavaco Silva, quer em Angola, quer em Moçambique. Digamos que era um bom cartão-de-visita. Sempre tive um contacto franco e aberto com eles, sempre lhes dei a minha opinião e não vi da parte deles nenhuma reserva mental em relação às opiniões francas e abertas que eu lhes transmitia.
O simples facto de ter estado no Governo de Cavaco Silva, que era um homem de quem eles gostavam, que a classe política angolana gosta, isso facilitou-me. Tive logo à partida uma recetividade por ter sido ministro de Cavaco Silva, quer em Angola, quer em Moçambique. Digamos que era um bom cartão-de-visita.
Há muito esta ideia de forte interferência política na vida privada das empresas. Sentiu isso de alguma forma na sua atividade?
Se em Portugal há uma interferência política no setor privado maior do que eu gostava de ver, em Angola ainda existe mais. A estrutura empresarial privada angolana, em termos relativos, é mais fraca ainda do que a portuguesa. Obviamente que Angola ainda está numa fase de desenvolvimento, em que não há uma estrutura empresarial muito forte. Enquanto isso não acontecer, ainda haverá uma interferência política grande. Também não se pode esquecer que é próprio dos países africanos a classe política também se tornar empresária. Temos muitos que são políticos e empresários. Essas fronteiras entre política e setor privado, que aqui no mundo ocidental tem dias, em Angola são muito menos distantes.
Algum caso em particular?
Mesmo um empresário que tenha ligação ao setor político e pode influenciar o setor político, nunca se vai gabar nesse aspeto. Sempre tive o cuidado de não falar desses temas porque quando se fala desses temas, um cidadão da ex-potência colonizadora está menos à vontade que um americano ou alemão ou um francês.
Sentiu que de alguma forma a história entre Portugal e Angola tinha influencia na sua relação com a elite angolana?
A história dá-nos o passado em comum. Como tudo na vida, tem coisas boas e tem coisas más. Mas devo dizer que não senti deles, pelo menos com que lidei, nenhum parti pris do facto de ser português contra mim. Quando era administrador do BPI, eu é que negociei na altura com o governo angolano e com o secretário do Presidente da República dr. Van Dunem – que quase fazia o papel de primeiro-ministro que não existia na altura – a passagem do Banco Fomento de Angola a banco de direito local. Foi uma negociação limpa, fair e fiquei com excelente impressão do senhor. Só posso dizer bem da forma como as coisas correram. E ele reconhecia o papel positivo que o Banco de Fomento tinha tido no desenvolvimento bancário de Angola. Não houve qualquer parti pris pelo facto de sermos portugueses.
Foi ainda presidente do BIC Portugal, com capitais angolanos. Como foi a sua relação com os acionistas?
Foi boa, mas eu não quero falar do BIC português. Foram os acionistas angolanos que me convidaram para ser presidente do BIC português. E dois anos antes de sair anunciei no Expresso que quando fizesse 70 anos abandonava funções executivas.
Como foi a sua relação com Isabel dos Santos?
Os meus contactos eram com o dr. Fernando Teles, que era o presidente do Conselho de Administração. Foi ele, aliás, quem me escolheu porque eu tinha sido colega dele no Banco de Fomento Angola. Conheço-o desde os meus tempos de administrador do BPI e responsável pelo Banco de Fomento de Angola. Como resolveram fazer um banco em Lisboa, resolveram escolher-me para liderar o projeto em Portugal.
Como vê atualmente a relação entre Portugal e Angola?
Tendo nós o passado em comum, com coisas positivas e outras negativas, será sempre uma relação que não será neutra do ponto de vista afetivo. Não é uma relação fria e inócua, de tipos que nunca se relacionaram. Temos de perceber esta circunstância. Há sentimentos pelo meio e temos de ir gerindo esses sentimentos. É do interesse mútuo, como os dois governos têm sublinhado, essa relação. É do nosso interesse estratégico a nossa relação com Angola, e de Angola, pela capacidade de os portugueses na reconstrução do país.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Mira Amaral: “Fronteira entre política e negócios é muito menos distante em Angola”
{{ noCommentsLabel }}