“Os políticos não podem continuar a desconsiderar a Justiça”, defende juiz presidente da comarca de Lisboa

Artur Cordeiro, juiz presidente da comarca de Lisboa desde 2021, é magistrado judicial há 30 anos. Em entrevista ao ECO, aponta responsabilidades aos sucessivos Governos das falhas da Justiça.

Artur Cordeiro, juiz presidente da comarca de Lisboa desde 2021, é magistrado judicial há 30 anos. Exerceu funções como juiz de direito nos Juízos Criminais de Almada, no Tribunal Judicial de Estremoz, na Instrução Criminal do Círculo de Portimão (Portimão, Silves, Lagos e Monchique), na Instrução Criminal de Albufeira, nos Juízos Cíveis de Portimão, no Tribunal Judicial de Tavira, nas Vara Cíveis de Lisboa, nos Juízos Cíveis de Lisboa, nos Juízos de Instrução Criminal de Lisboa e nas Varas Criminais de Lisboa. Foi nomeado, em comissão de serviço, como assessor do Supremo Tribunal de Justiça, por deliberação do Conselho Superior da Magistratura de 2011. Cessou tais funções e iniciou mandato como Vogal do Conselho Superior da Magistratura em abril de 2013.

O ECO tem vindo a divulgar séries semanais de trabalhos sobre temas cruciais para o país, no período que antecede as eleições legislativas de 10 de março. Os rendimentos das famílias, o crescimento económico, a crise da habitação, o investimento em infraestruturas e os problemas da Justiça estão em foco. O ECO vai fazer o ponto da situação destes temas, sintetizar as propostas dos principais partidos e ouvir a avaliação dos especialistas. Leia a entrevista ao juiz presidente da comarca de Lisboa, Artur Cordeiro.

Artur Cordeiro, juiz presidente da Comarca de Lisboa, em entrevista ao ECO/Advocatus - 26FEV24

Defendeu, recentemente, que o combate à criminalidade económico-financeira mais complexa deveria passar pela criação em Portugal de um tribunal especializado nessa área. Pode explicar as razões?

Essencialmente pelos benefícios que decorrem da especialização, a qual tem sido o fio condutor de verdadeiras reformas, bem sucedidas, na área da Justiça. Desde há muito que Portugal tem vindo a aperfeiçoar as infraestruturas humanas e legais, assim como o diálogo entre as instituições que, diariamente, trabalham no combate ao crime económico-financeiro. A preocupação com esta matéria motivou a criação de estruturas especializadas no estudo e identificação de ilícitos de natureza económica, entre as quais se destacam o Observatório Permanente da Justiça, a Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária e o Tribunal Central de Instrução Criminal que, através da Lei n.º 77/2021, de 23 de novembro, foi objeto de reorganização, aumentando para nove o número de magistrados. Em 2020 foi aprovada a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção para 2020-2024 e criado, em 2021, o MENAC – Mecanismo Nacional Anticorrupção. Recentemente, sob a direção do Conselho Superior de Magistratura (CSM), nasceu a Estrutura ALTEC – Apoio Logístico à Tramitação de Elevada Complexidade, que se insere no Grupo de Apoio à Tramitação Eletrónica de Processos (GATEP), essencial para dar resposta às esquecidas carências de suporte ao julgamento.

Existe um desequilíbrio entre os meios para este tipo de crime na fase de inquérito, face à fase de julgamento?

Na criminalidade especialmente complexa, que convoca a intervenção de conhecimentos especiais para a apreciação, tramitação e decisão, existe um profundo desequilíbrio, no que respeita à disponibilização de recursos humanos e materiais, ao longo da vida do processo. Nas fases de inquérito e instrução é notório o investimento de recursos humanos e materiais, especificamente dedicados a este tipo de ilícitos. Esta aposta não foi, até agora, replicada na fase de julgamento, marcada pela ausência de um quadro de magistrados judiciais estáveis que, por via da especialização, sejam capazes de melhor responder às exigências deste tipo de processos e que tenham ao seu dispor infraestruturas materiais adequadas de suporte à decisão.

Não ignoro a necessidade de reflexão sobre a compatibilidade da criação de um quadro específico de magistrados, dedicados ao julgamento de processos na área da complexa criminalidade económico-financeira, com o comando previsto no artigo 209.º, n.º 4, da CRP. Contudo, parece-me que essas dificuldades poderão ter sido, de algum modo, esbatidas na orgânica judiciária nascida em 2014 que, através da especialização, tornou possível a redução exponencial das pendências acumuladas, tornando a Justiça mais célere.

No fundo, trata-se de garantir que o esforço empreendido nas fases de inquérito e instrução, confiadas a estruturas altamente especializadas (quer em termos materiais, quer em termos de recursos humanos), não se perca na fase de julgamento.

Nos últimos anos temos, lamentavelmente, assistido à ausência de políticas para a Justiça. A Justiça tem estado arredada das prioridades da política. A pontual (e efémera) reação da classe política a mediáticos casos judiciais faz parte da espuma dos dias, e não se traduz numa estratégia sustentável para a Justiça. Este alheamento é, também, responsável pelo estado atual da Justiça”

Os prazos que existem na lei, na prática, são quase só para advogados. Os prazos deveriam ser mais apertados?

Os prazos perentórios, a que julgo se refere, atingem efetivamente as partes representadas por advogados. Tendo certamente isso em mente, nos processos especialmente complexos, os magistrados judiciais têm, sem exceção, concedido as prorrogações, solicitadas pelos interessados, para se pronunciarem. Por outro lado, a defesa do interesse público subjacente à decisão de determinados processos (sublinhando-se a necessidade da descoberta da verdade material) não é compatível com os prazos estatuídos, designadamente para cada uma das fases do processo criminal. Questão diversa é a admissibilidade de compressão de direitos fundamentais, como a liberdade, por tempo previamente indefinível. Aqui diria que importará marcar uma fronteira inultrapassável, com a estatuição de mecanismos que permitam acautelar todos os interesses em avaliação.

As magistraturas têm de prestar mais contas?

Creio que as magistraturas prestam já as contas necessárias. As decisões dos magistrados judiciais são, permanentemente, escrutinadas, nas várias instâncias de recurso, pelos interessados. A esta apreciação casuística, soma-se a monitorização, geral e particular, da atividade das Comarcas (em relatórios que se sucedem, sem interrupção) e, por fim, a prestação de contas que tem lugar na avaliação periódica de desempenho individual, promovida por um órgão composto por uma maioria de não magistrados, de modo a afastar a sombra do corporativismo. Porém, independentemente das contas a prestar, nas várias instâncias, não poderemos ignorar a escassez (cada vez mais expressiva) de meios colocados à disposição dos magistrados, que são indispensáveis ao atempado exercício das suas funções.

Perante os recentes desenvolvimentos na Justiça portuguesa, com a Operação Influencer, Corrupção na Madeira e mesmo a absolvição de Miguel Alves, o MP, mais do que nunca, deveria prestar contas?

É minha convicção de que o Ministério Público (refiro-me aos magistrados em funções junto dos Tribunais) presta já as contas necessárias perante os interessados nos processos e o Conselho Superior do Ministério Público.

Que medida urgente proporia para acelerar a Justiça?

Apostaria no investimento, que considero estar em falta. Começando pelo investimento em recursos humanos, devastadoramente deficitários, e culminando no quadro normativo e nos equipamentos que permitam (imponham) a definitiva desmaterialização dos processos judiciais.

E para simplificar?

Reitero aqui a desmaterialização dos processos. Sucede que esta desmaterialização, para ser eficaz, não se confunde com a mera digitalização documental (editável ou não). O que importa é implementar uma tramitação desmaterializada do processo, suportada por uma estrutura tecnológica que permita acolher, com segurança, todas as etapas do processo, no processo crime desde a fase do inquérito até ao julgamento e subsequentes recursos. Este investimento não se esgota nos meios materiais. Tem, necessariamente, que ser complementado com uma sólida formação de todos os profissionais responsáveis pela apreciação e tramitação do processo judicial, permitindo o máximo aproveitamento de todas as potencialidades da solução tecnológica e das novas metodologias de trabalho.

Artur Cordeiro, juiz presidente da Comarca de Lisboa, em entrevista ao ECO/Advocatus - 26FEV24

Existe uma politização da Justiça, atualmente?

Nos últimos anos temos, lamentavelmente, assistido à ausência de políticas para a Justiça. A Justiça tem estado arredada das prioridades da política. A pontual (e efémera) reação da classe política a mediáticos casos judiciais faz parte da espuma dos dias, e não se traduz numa estratégia sustentável para a Justiça. Este alheamento é, também, responsável pelo estado atual da Justiça. Sem a notória solidariedade e cooperação que caracteriza o tecido da Justiça (Magistrados, Oficiais de Justiça e Advogados), ficaria profundamente comprometida a sua realização. Estou convencido que estamos a chegar a um limite inultrapassável. A política, e os políticos, não podem continuar a desconsiderar a Justiça. A Justiça é uma inalienável função do Estado, absolutamente essencial para a paz social e para o investimento económico.

No tocante à hipotética interferência de interesses político/partidários na Justiça, e à instrumentalização desta para esses interesses, nada sei e nem tenho indícios de que tal tenha ocorrido. Cada decisão, concretamente tomada por um magistrado, para além de imune a pressões, é sempre tomada com respeito pela Lei, sendo sindicável, como não poderia deixar de ser.

Os Conselhos Superiores deveriam ter mais elementos de fora da magistratura?

Já se encontram em maioria, em solução que, ademais, é censurada pelas instituições internacionais que se dedicam ao estudo destas questões e que defendem que a avaliação da atuação dos magistrados deveria ser realizada unicamente por magistrados, ou, pelo menos, por um colégio que integre uma maioria de magistrados.

No tocante à hipotética interferência de interesses político/partidários na Justiça, e à instrumentalização desta para esses interesses, nada sei e nem tenho indícios de que tal tenha ocorrido. Cada decisão, concretamente tomada por um magistrado, para além de imune a pressões, é sempre tomada com respeito pela Lei, sendo sindicável, como não poderia deixar de ser”

Os mega processos são um dos problemas atuais a resolver ou a evitar?

O problema dos megaprocessos arrasta-se já há décadas, ainda que sem a intensidade atual. Mas só se configura como um problema, na minha opinião, porque não têm sido disponibilizados os meios humanos e materiais necessários para sua apreciação, tramitação e decisão. Não estou certo de que sejam evitáveis. Com mais ou menos palavras e páginas, a verdade é que certas realidades, suscetíveis de integrar a prática de crime, não são compatíveis com uma narrativa curta e simples.

A Justiça continua a ser um bloqueio ao investimento estrangeiro?

A realização da Justiça sem meios é um permanente desafio. Atualmente, os Tribunais judiciais trabalham no limite, é difícil fazer mais com os meios que são disponibilizados. Apesar do esforço, a permanente falta de meios impede uma resposta mais célere e eficaz. Nesta perspetiva a Justiça de hoje é um bloqueio ao investimento estrangeiro.

A responsabilidade dos problemas da Justiça também pode ser atribuída aos vários Governos?

A falta de atenção à Justiça parece-me ser uma constante nas quase três décadas de exercício da judicatura que tenho, com o indesejável enfraquecimento do Estado de Direito.

É minha convicção de que o Ministério Público (refiro-me aos magistrados em funções junto dos Tribunais) presta já as contas necessárias perante os interessados nos processos e o Conselho Superior do Ministério Público”

Que medida considera urgente (para a Justiça) que tem de estar na agenda do Governo a ser eleito?

A total desmaterialização dos processos judiciais, que não se confunde com a digitalização de documentos, nem com a tramitação assente na comunicação de documentos em formato pdf, ainda que suscetíveis de edição. Apesar das impressivas comunicações, que vêm sendo veiculadas, sobre a viabilidade imediata da desmaterialização, estamos ainda longe de a poder implementar. A sua realização impõe a participação de todos os intervenientes da Justiça no desenho de novas soluções tecnológicas de suporte à tramitação dos processos judiciais. O adequado edifício tecnológico tem, necessariamente, que ser desenhado a várias mãos. Se não incluirmos as pessoas na conceção do projeto de mudança, dificilmente será implementado.

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