Carlos Duque, sócio e Coordenador de Contencioso e Arbitragem da PRA - Raposo, Sá Miranda & Associados, em entrevista à Advocatus, fala sobre o estado da arbitragem em Portugal.
Carlos Duque é um dos fundadores da Pedro Raposo & Associados em 2001, é sócio responsável pelo Departamento de Contencioso e Arbitragem, associado da Portugaljuris, membro da Associação Eurojuris International com 650 escritórios associados em 19 países e árbitro do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Luso Espanhola. Em entrevista à Advocatus, fala sobre o estado da arbitragem em Portugal.
Quais as principais diferenças entre atuar como advogado das partes e como árbitro em disputas complexas?
A principal diferença reside no papel que cada um desempenha e no objetivo que se busca alcançar. O advogado, representando uma parte, tem o dever de defender os interesses do seu cliente, enquanto o árbitro, como um terceiro imparcial, busca encontrar uma solução equitativa para todas as partes envolvidas.
Como avalia o crescimento da arbitragem no nosso país, especialmente em setores como infra estruturas, energia e contratos públicos? Há resistência cultural ou jurídica?
Com o objetivo de atrair investimentos nos setores das infraestruturas e energia, tem-se assistido nos últimos anos a uma preocupação do Estado em prever a utilização de mecanismos privados de resolução de conflitos, entre os quais a arbitragem.
Com efeito, a arbitragem garante ao setor público e aos seus parceiros privados, especialmente investidores estrangeiros, maior segurança jurídica, bem como a tecnicidade das decisões e a celeridade exigida pelo mercado na solução dos conflitos.
Assim, a Administração Pública tem optado por inserir cláusulas compromissórias nos contratos de concessão e de parcerias público-privadas (PPPs).
O mesmo tem acontecido na contratação pública, com o artigo 476.º do CCP a introduzir um regime específico de arbitragem que se torna aplicável quer aos litígios emergentes de um procedimento pré-contratual (arbitragem pré-contratual), quer aos litígios que surjam durante a execução de contratos sujeitos ao regime de contratação pública (arbitragem sobre contratos).
Diria que a atração do investimento estrangeiro e a internacionalização das empresas nacionais tem “obrigado” a conciliar a prossecução dos interesses públicos do Estado de acolhimento do investimento com uma adequada proteção do investidor estrangeiro. E a arbitragem assume a maior importância para este equilíbrio. Com efeito, sujeitar uma empresa estrangeira aos tribunais do Estado envolvido implica, em caso de litígio, o risco de processos judiciais que se arrastam no tempo e, eventualmente, sem a necessária garantia de qualidade técnica de decisão e imparcialidade.
Quais as vantagens da arbitragem face aos tribunais tradicionais, considerando custos, tempo e especialização dos árbitros?
A arbitragem oferece várias vantagens em comparação com os tribunais tradicionais, especialmente em termos de custos, tempo e especialização. Geralmente, a arbitragem é mais rápida e menos custosa, com prazos de resolução de conflitos mais curtos e taxas reduzidas. Além disso, as partes podem escolher árbitros com conhecimento especializado na área em disputa, o que pode resultar em decisões mais precisas e eficazes. Em resumo, a arbitragem oferece um meio eficiente, flexível e especializado para resolver disputas, tanto a nível nacional como internacional, proporcionando benefícios significativos para as partes envolvidas.
Diria que a atração do investimento estrangeiro e a internacionalização das empresas nacionais tem “obrigado” a conciliar a prossecução dos interesses públicos do Estado de acolhimento do investimento com uma adequada proteção do investidor estrangeiro”
Como é que Portugal se posiciona no cenário de arbitragem internacional, especialmente em disputas investidores/Estado?
Portugal tem vindo a ocupar uma posição significativa no panorama internacional da arbitragem, especialmente no âmbito das disputas investidor-Estado, devido ao seu marco legal de arbitragem moderno e à crescente atividade da sua comunidade arbitral. Além disso, Portugal desempenha um papel importante como país lusófono, o que o coloca numa posição privilegiada para lidar com investimentos e disputas com países de língua portuguesa.
Portugal tem uma posição importante na arbitragem internacional, destacando-se pela sua participação em órgãos internacionais e pelo desenvolvimento de um quadro legal moderno e uma comunidade arbitral ativa. O país é membro de convenções internacionais e tratados bilaterais, o que reforça a sua credibilidade como sede de arbitragens internacionais. Além disso, Portugal tem um número significativo de vagas para árbitros internacionais, ocupando um dos primeiros lugares no mundo neste campo.
Por outro lado, assistindo-se a um indeferimento de pedidos de anulação de laudos arbitrais, os tribunais judiciais nacionais têm vindo a reafirmar a arbitragem como um mecanismo definitivo de resolução de litígios, promovendo a segurança jurídica dos laudos arbitrais e impedindo que as ações de anulação sejam indevidamente utilizadas como um recurso encapotado contra decisões arbitrais. O que contribui também para uma maior confiança na arbitragem como forma de dirimir litígios entre investidores-Estado.
Quais os maiores desafios em litígios contra a Administração Pública portuguesa?
Os maiores desafios em litígios contra a Administração Pública portuguesa incluem a complexidade da legislação e dos processos administrativos, a falta de alguma transparência e de acesso a informações, a duração excessiva dos processos judiciais e a cultura de resistências administrativas que podem levar a recusas e demoras na resolução de conflitos.
Como tem evoluído a jurisprudência em matéria de responsabilidade civil do Estado por atos administrativos?
A evolução da nossa jurisprudência tem sido marcada por uma maior abertura à responsabilização do Estado, com uma tendência para a proteção dos direitos dos cidadãos. Houve uma transição para uma maior atenção à proporcionalidade e à necessidade de responsabilizar o Estado por danos causados por atos administrativos, mesmo em situações em que a culpa não é demonstrada.
Como a digitalização e a inteligência artificial estão a impactar o contencioso e a arbitragem em Portugal? Há riscos de “burocracia digitalizada”?
Um dos maiores desafios que a IA suscita no domínio jurídico é a falta de transparência nos processos de tomada de decisão, que pode levar a uma diminuição da credibilidade pública nos sistemas judiciais. Se os cidadãos tiverem a perceção de que as decisões judiciais estão a ser tomadas por sistemas opacos ou incompreensíveis, a legitimidade dos tribunais pode ficar diminuída.
Para aproveitarmos os benefícios indiscutíveis da tecnologia no domínio da justiça, é essencial estabelecer regulamentação eficaz, garantir a transparência dos sistemas utilizados e assegurar que haja sempre um controlo humano sobre as decisões fundamentais.
Qual o papel da arbitragem em disputas emergentes, como transição energética ou conformidade ESG?
A arbitragem desempenha um papel crucial na resolução de disputas emergentes, devido à sua flexibilidade, confidencialidade e eficiência. É uma opção atraente para conflitos complexos e tecnicamente exigentes, que podem surgir em projetos de infraestrutura energética ou em litígios relacionados com gestão de ativos com foco em ESG.
Como lidar com conflitos de interesses em arbitragens, especialmente em casos de “nomeações múltiplas” de árbitros?
Em arbitragens, os conflitos de interesse são tratados através de revelações por parte dos árbitros, com o objetivo de identificar e avaliar potenciais conflitos. A revelação não implica automaticamente desqualificação, mas permite às partes e aos tribunais avaliar as impugnações. No caso de nomeações múltiplas, os árbitros devem avaliar a sua capacidade de atuar imparcialmente em cada caso, podendo recusar a nomeação se houver dúvidas. A decisão de recusar deve ser baseada em critérios objetivos, considerando a aparência de imparcialidade.
Em resumo, a gestão de conflitos de interesse em arbitragens, especialmente em casos de nomeações múltiplas, requer um compromisso com a transparência e a imparcialidade. A revelação de potenciais conflitos de interesse, a avaliação objetiva da situação e, se necessário, a recusa da nomeação são passos essenciais para garantir um processo justo e confiável.
Quais as melhores práticas para garantir transparência e confidencialidade em processos arbitrais?
Para garantir transparência e confidencialidade em processos arbitrais, é fundamental que as partes definam e acordem as regras sobre acesso e divulgação de informações. A confidencialidade, embora importante para a proteção de dados sensíveis, não deve obscurecer a necessidade de transparência na relação com as partes, como no caso da decisão arbitral.
Em suma: A transparência e a confidencialidade em processos arbitrais devem ser tratadas de forma equilibrada, com foco na proteção das informações sensíveis e na garantia do acesso das partes à justiça.
A gestão de conflitos de interesse em arbitragens, especialmente em casos de nomeações múltiplas, requer um compromisso com a transparência e a imparcialidade. A revelação de potenciais conflitos de interesse, a avaliação objetiva da situação e, se necessário, a recusa da nomeação são passos essenciais para garantir um processo justo e confiável”
Portugal é visto como um hub arbitral para países lusófonos. Que oportunidades nos traz?
A arbitragem em Portugal, em Português, com intervenientes Portugueses ou ligação a países lusófonos tem várias vantagens. Portugal tem todas as condições para se afirmar no plano internacional da arbitragem essencialmente por duas razões: é um país com posição pivot no mundo do investimento lusófono e tem um quadro legal de arbitragem moderna.
Portugal dispõe de uma lei de arbitragem moderna, largamente baseada na Lei Modelo UNCITRAL, que prevê princípios tão fundamentais como o da autonomia das partes e da cláusula arbitral, o princípio da Kompetenz-Kompetenz, igualdade das partes, processo equitativo e caráter definitivo das sentenças arbitrais.
Por outro lado, é preciso não esquecer que Portugal beneficia de uma localização geográfica de excelência, no Sul da Europa e Atlântico Este, bem como de condições climatéricas, de hospitalidade e de segurança muito competitivas, bem como a prática de preços moderados, comparadas com outros arbitral hubs europeus (como sejam Londres, Paris ou Genebra).
Já para não falar que o Português é a sexta língua mais falada no mundo, com 250 milhões de speakers, existindo uma ligação privilegiada com os países de expressão portuguesa, derivada de uma herança histórica comum, indiscutível.
A arbitragem já é vista como uma alternativa “popular” aos tribunais tradicionais em litígios comerciais?
A arbitragem é um método de resolução de disputas em que as partes envolvidas escolhem um ou mais árbitros neutros para tomar uma decisão final e vinculativa sobre o conflito, fora do sistema judicial tradicional.
Este processo é altamente valorizado pela sua eficiência e confidencialidade, oferecendo uma alternativa célere e especializada à litigância em tribunais comuns.
A opção cada vez mais crescente pela arbitragem nos litígios comerciais, em alternativa aos tribunais judiciais, tem-se justificado pela capacidade de fornecer uma solução mais rápida, confidencial e especializada.
Embora o sigilo seja fundamental para a confidencialidade e a confiança das partes, uma aplicação indiscriminada pode ter consequências negativas, especialmente em casos de investigação criminal ou quando a integridade da decisão arbitral é posta em causa”
Quais são os principais desafios da arbitragem internacional, como a conciliação de diferentes sistemas jurídicos?
Os principais desafios da arbitragem internacional incluem a conciliação de diferentes sistemas jurídicos, questões de comunicação e cultura, e a garantia de uma decisão justa e imparcial. A diversidade cultural e linguística pode gerar mal-entendidos e dificultar a comunicação entre as partes e os árbitros. Além disso, a arbitragem internacional pode ser desafiadora devido à falta de uma estrutura legal uniforme e à necessidade de interpretar as regras e leis de diferentes países.
Há um sigilo excessivo na arbitragem?
Sim, o sigilo na arbitragem pode ser considerado excessivo em determinadas situações, apesar de ser um dos seus principais atributos. Embora o sigilo seja fundamental para a confidencialidade e a confiança das partes, uma aplicação indiscriminada pode ter consequências negativas, especialmente em casos de investigação criminal ou quando a integridade da decisão arbitral é posta em causa.
É fundamental encontrar um equilíbrio entre a proteção do sigilo e a necessidade de transparência e responsabilização, especialmente em casos em que a decisão arbitral pode ter implicações significativas para a sociedade.
Existe, em Portugal, uma concentração de casos em poucos árbitros?
Em Portugal, a escolha dos árbitros não é sempre a mesma, dependendo do contexto. Em arbitragem voluntária, as partes podem acordar na escolha do árbitro ou árbitros, podendo até delegar essa escolha a um terceiro. Em outros casos, como na arbitragem obrigatória ou em situações específicas previstas na lei, a designação pode ser feita por instituições competentes.
Pese embora nos últimos anos tenha havido um aumento do número de árbitros, em arbitragens voluntárias complexas, muito técnicas e com valores relevantes, as partes tendem a procurar árbitros com experiência na matéria e altamente qualificados para o exercício da função. O que, nesses casos, pode resultar numa maior concentração. Mas é uma realidade que tende a alterar-se à medida que aumenta a comunidade arbitral.
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“Portugal tem todas as condições para se afirmar no plano internacional da arbitragem”
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