Inflação pode restringir consumo ou desviá-lo para gamas inferiores, mas o diretor-geral da Centromarca duvida que os consumidores voltem a “fazer o circuito das capelinhas" atrás das promoções.
Ao contrário do que aconteceu na última crise, que coincidiu com a presença da troika em Portugal, os consumidores portugueses evidenciam hoje um “grau de maturidade” que não os levará a repetir essa corrida promocional. A crença é do diretor-geral da Associação Portuguesa de Empresas de Produtos de Marca (Centromarca), que antecipa “um período de dois a três meses muito complicados em termos de reorganização de fornecimento” e que pede “um equilíbrio sério” na negociação entre os supermercados e os fornecedores.
Em dois anos, as cadeias de sortido curto, como o Lidl, Aldi e Mercadona, conquistaram 3% de quota, que diz ser “um desvio bastante grande” para um mercado como o português. E com a marca própria a pesar 80% das vendas nesses supermercados, Pedro Pimentel reconhece, em entrevista ao ECO, que neste contexto podem ser mais competitivos nos preços, “por terem o circuito mais controlado em termos de sourcing do que as outras, que estão dependentes de uma miríade de fornecedores”.
Os estudos de mercado na área do grande consumo mostram que os preços já começaram a aumentar em 2021 e que nas marcas de fabricante terão subido mais do que nas dos distribuidores, as chamadas marcas brancas. Porque é que isso acontece?
É natural que, numa primeira fase, o reflexo se faça sentir mais diretamente nas marcas de fabricante porque fazem a repercussão mais direta desses custos num agravamento de tabelas [de preços]. Principalmente quando falávamos de agravamentos de baixa densidade. A partir do momento em que a eletricidade, os combustíveis e toda a parte das matérias-primas aumentam de forma acelerada, quer de um lado, quer do outro, o agravamento, por comparação com o que se verificava no final de 2021, terá tendência a ser comum às duas famílias de produtos. Não me parece que vá existir uma grande diferença.
Não antecipa que o diferencial de preços entre elas se alargue?
Não antecipo. Muitas empresas, além das suas próprias marcas, produzem as marcas brancas, que, no fundo, são um marginal, acabam por funcionar como complemento. A partir do momento em que os aumentos das matérias-primas são muito altos e a escassez de alguns bens é profunda, o marginal tende a ser mais caro. Em termos de teoria económica, as marcas brancas até podem tender a aumentar mais, na base dos custos, do que as marcas de fabricante. Como ocupam uma parte marginal da produção das empresas que produzem simultaneamente os dois tipos de produtos, para essas empresas, cada unidade a mais custa bastante dinheiro porque estamos a repetir matérias-primas e custos de produção mais caros.
Portanto, pelo contrário, diz que pode haver um diferencial menor entre elas?
As marcas brancas, no custo, até podem agravar mais do que as marcas de fabricante. Não podemos é esquecer que quem marca o preço ao consumidor é o distribuidor, que estipula as margens de comercialização que entende. O gap não nasce exclusivamente dos custos, mas muito mais fortemente da forma como são posicionados os produtos em termos de margem no mercado.
Não podemos é esquecer que quem marca o preço ao consumidor é o distribuidor, que estipula as margens de comercialização que entende. O gap não nasce exclusivamente dos custos.
Mas acha que essa aproximação de preços pode chegar ao consumidor final?
Sim. Principalmente nos produtos que são produzidos à escala local. Isto é, marcas próprias produzidas em Portugal com empresas que tenham mais dificuldade no acesso às matérias-primas e aos custos de produção.
Mesmo que se confirme esse menor diferencial no preço, com esta inflação galopante e o orçamento das famílias portuguesas tão limitado, este contexto não poderá levar ao reforço do consumo de marcas brancas?
Se as pessoas em Portugal, por definição, têm uma enorme sensibilidade ao preço — é claramente um fator prioritário na escolha –, essa tendência vai-se agravar. Estamos a contar que a reação óbvia à inflação seja as pessoas tornarem-se ainda mais restritas em termos daquilo que consomem. Consumindo menos ou optando por gamas de preços inferiores. É natural que essa compressão no consumo se sinta. Talvez não no imediato porque, antecipando aumentos de preços, muita gente está a fazer compras mais alargadas e de prevenção. Mas este primeiro momento vai ter uma consequência [futura no consumo].
A reação óbvia à inflação é as pessoas tornarem-se ainda mais restritas em termos daquilo que consomem. Consumindo menos ou optando por gamas de preços inferiores.
Sejam marcas de fabricante ou dos distribuidores, qual prevê que seja a evolução nos preços para o consumidor, ao longo das próximas semanas e meses?
Por muito que se tente fazer o discurso para a positiva, os sinais não são bons. Estamos a falar de agravamentos brutais dos custos produtivos, nos transportes. E em alguns produtos vemos o agravamento pelo efeito da própria guerra porque [Rússia e Ucrânia] eram mercados de origem de algumas matérias-primas, como os cereais. Mas depois há um efeito em cascata. Todos falaram dos óleos, mas se não estiverem disponíveis ou o preço for elevado, as pessoas vão procurar alternativas, como o azeite ou a manteiga, para o mesmo tipo de utilização. E a pressão sobre esses produtos também aumenta.
Quais as categorias que mais podem subir para o consumidor?
Todas as que tenham ligação direta ou indireta com os cereais e as gorduras alimentares, como as famílias dos óleos, azeites, manteigas. Essas pelo efeito mais direto da guerra. E uma segunda matriz que é brutal, com resultados complicados, porque uma grande parte dos cereais vão para a alimentação animal.
Como está já a ser e como vai ser nos próximos tempos a batalha entre os produtores e os distribuidores na negociação dos preços?
Se a guerra na Ucrânia se prolongar no tempo e escalar em temos de geografia… Imaginando um cenário não tão grave, diria que teremos um período de dois a três meses muito complicados em termos de reorganização de fornecimento. Não é só Portugal, são todos os países do mundo que, de repente, procuram outros mercados de abastecimento — ou se já lá estavam, veem mais compradores nesses mercados. Essa moldagem ainda vai demorar vários meses.
É óbvio que o distribuidor, que põe o produto na mala do carro do consumidor, não quer um agravamento de preços muito alto porque significa comer poder de compra às pessoas. Tem de haver aqui um equilíbrio sério entre o que cada uma das partes possa absorver. Ninguém de bom senso acha que a transposição direta de todos os custos para o consumidor vai resolver alguma coisa. Entre os supermercados e os fornecedores vai existir sempre essa tensão quanto às condições de fornecimento. Neste período tem de haver alguma solidariedade porque, no fundo, todos vão ter de absorver uma parte destes impactos para não serem transpostos integralmente para o consumidor, que não teria capacidade para pagar 20%, 30%, 40% a mais.
Teremos um período de dois a três meses muito complicados em termos de reorganização de fornecimento. (…) Ninguém de bom senso acha que a transposição direta de todos os custos para o consumidor vai resolver alguma coisa.
Quem estará mais preparado para lidar com isto: os hipers como o Continente, Pingo Doce ou Auchan, que têm uma oferta de gamas muito mais ampla, ou as insígnias de sortido curto, como o Lidl, Aldi e Mercadona?
Logicamente, havendo cadeias em que 80% do que vendem é a sua própria marca e outras em que só pesam 30% ou 40%, num caso há um controlo total ou quase total do processo e no outro há uma combinação de impactos – sou eu, os meus fornecedores e a relação entre uns e outros produtos. Mais competitivas em termos de preço? Sim. Por terem o circuito mais controlado em termos de sourcing do que as outras, que estão dependentes de uma miríade de fornecedores. Nessas cadeias de sortido curto também não se coloca tanto a fricção com os fornecedores porque o número que trabalha com elas é relativamente menor e, além disso, a parte das vendas é relativamente curta para os grandes fornecedores.
Nos últimos dois anos, estas cadeias têm ganho peso nas preferências dos consumidores portugueses. Quais os motivos?
Por várias razões, não é apenas pela questão de preço. Tem a ver também com o facto de se terem começado a habituar – até pelas questões de saúde pública – a concentrar as compras muito mais num único espaço, em vez de as dividirem por vários supermercados. Em vez de entrarem nesses espaços apenas para comprar três ou quatro coisas, comprarem carrinhos completos, tudo o que precisam para a casa. E serem lojas mais amplas também deu maior segurança [num contexto de pandemia]. Depois, pelo próprio alargamento da rede nessas três cadeias, que têm feito investimentos muito fortes na abertura de novos espaços. Essas cadeias acabaram por ir buscar um bocadinho ao bolo, à quota global do país. Em dois anos foram buscar 3% de quota, o que no mercado português, que é bastante maduro, é muito. É um desvio bastante grande. E isso nota-se mais pelo efeito da Mercadona, que partiu quase do zero.
Qual é o peso atual das marcas brancas no retalho alimentar em Portugal?
Neste momento andará nos 36% a 37% em valor. Em volume é muito mais do que isso. (…) O facto de estas cadeias crescerem, por si mesmo, tem uma implicação no crescimento da marca branca em Portugal. Se éramos um cliente do Auchan, do Continente ou do Pingo Doce e passamos a ser clientes da Mercadona, do Lidl ou do Aldi, qualquer um de nós passa automaticamente a comprar mais produtos de marca própria porque as opções dentro dessas lojas são essas. O crescimento da marca própria em Portugal deve-se não apenas ao efeito do poder económico, do custo e da preferência das pessoas, mas também ao facto de elas passarem a fazer cada vez mais compras nesses locais.
Já referiu que a pandemia trouxe uma menor distribuição das compras das famílias por diferentes insígnias. Pode agora haver uma inflexão nesse comportamento?
Começou pela questão de saúde pública, para menor mobilidade. O consumidor que antes fazia umas compras perto do emprego, no caminho para casa, outras ao pé de casa, começou a concentrar mais. É um fenómeno que veio da pandemia, mas que não morreu ainda. Continua a sentir-se. Vamos ver agora se a reação ao agravamento de preços e à forma como cada um dos retalhistas comunica, pode motivar as pessoas a fazer outra vez o ‘circuito das capelinhas’ para comprar os produtos nos melhores sítios. Se tiverem alguma garantia de que o espaço onde vão permite uma compra conjunta atrativa e o abastecimento da casa de forma correta, isso mostra alguma maturidade no consumidor, que começa a sentir menos o apelo do imediato
Porém, se forem atrás das promoções, como na última crise, essas cadeias como a Mercadona, Lidl e Aldi podem ser preteridas?
Houve uma evolução nestas cadeias e que se vai prolongar. Quando foi a crise da troika, o seu modelo de negócios não estava tão bem preparado para reagir às dificuldades das famílias, como está hoje. Estas cadeias fizeram um trabalho de casa bem feito ao longo destes últimos anos e estão muito mais preparadas, por exemplo, para encarar de frente com estratégias promocionais [agressivas]. Na altura foram muito atrativas para o consumidor, mas hoje as pessoas têm um grau de maturidade e mostram até alguma saturação em relação às promoções malucas, o que faz com que prefiram uma compra mais sustentável, em vez de andarem com estes altos e baixos.
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“Portugueses mostram alguma saturação com as promoções malucas”, diz Pedro Pimentel
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