“O défice demográfico é o problema mais grave e difícil de ultrapassar do país”

Depois de vários anos focado no défice das contas públicas, o país deve agora focar-se noutro défice: o demográfico. Em entrevista, Gonçalo Saraiva Matias diz que esse é o problema mais grave.

O problema “é urgente“. Portugal é dos países mais envelhecidos do mundo e isso deverá ter impactos no mercado de trabalho e até no sistema de proteção social. “É altura de olhar para o défice demográfico”, apela, por isso, o presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Em entrevista ao ECO, Gonçalo Saraiva Matias sugere a criação de uma agência que promova o país como destino do trabalho, para atrair os trabalhadores necessários.

E desengane-se quem acha que os salários tipicamente mais baixos praticados em Portugal serão um travão a essa atração de profissionais. “Podemos tirar partido daquilo que o país tem de bom, como fizemos quando trabalhámos o investimento e o turismo“, defende o responsável.

Esta é uma de três partes da entrevista de Gonçalo Saraiva Matias ao ECO. Nas outras duas, o presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos reflete sobre a emigração de jovens portugueses e ainda sobre as eleições de 10 de março.

Em alguns momentos da nossa história, demos grande atenção aos défices das finanças públicas. O défice demográfico é porventura o problema mais grave do país.

Gonçalo Saraiva Matias

Presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Portugal é um país envelhecido. Estamos a dar atenção suficiente – nomeadamente, na esfera das políticas públicas – a este problema, tendo em conta os seus potenciais impactos no mercado de trabalho?

O problema demográfico é muito sério em Portugal, e não estou certo de que esteja a merecer a devida atenção. Em alguns momentos da nossa história, demos grande atenção aos défices das finanças públicas. O défice demográfico é porventura o problema mais grave, mais estrutural e mais difícil de ultrapassar do país. Portugal é dos países mais envelhecidos da Europa e até do mundo. Se olharmos para a evolução da Segurança Social, o rácio entre os ativos e os que estão a receber chegará a 2050 com um valor praticamente igual entre eles. Ou seja, é a insustentabilidade do sistema. Até 2017, Portugal esteve a perder população pelas duas vias possíveis.

Sem nascimentos suficientes e com emigração.

Há duas vias para desenhar a população: a via natural e a via migratória. O saldo natural consiste na diferença entre aqueles que nascem e morrem todos os anos. O saldo migratório consiste na diferença entre aqueles que saem e entram no país. Entre 2010 e 2017, Portugal perdia população pelas duas vias. Isto mostra a situação em que nos encontramos.

Como podemos corrigir essa situação?

Não há milagres. Há estas duas: a via natural e a via migratória.

Julgo que, a curto prazo, tem alguma preferência pela via migratória.

Acho que é muito importante a política de natalidade. Mas demora muito tempo a produzir efeitos, desde logo na sustentabilidade da Segurança Social. As pessoas quando nascem não começam logo a descontar. A via migratória, por outro lado, tem algumas vantagens. Depois de 2017, começámos a ter saldos migratórios positivos. Nos últimos três anos tivemos saldos totais positivos. Ou seja, nos últimos três anos não perdemos população. Ganhámos ligeiramente população todos os anos, com uma única explicação que é a via migratória, porque o nosso saldo natural piorou sempre. Não estou a dizer que é a forma ideal, até porque ela tem dificuldades e desafios, mas é a única forma, no curto prazo, de compensar esta crise demográfica que vivemos.

Gonçalo Saraiva Matias, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em entrevista ao ECO - 09FEV24
Gonçalo Saraiva Matias, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em entrevista ao ECO Hugo Amaral/ECO

O presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) disse há poucos meses que a mão de obra que temos recebido “acrescenta pouco”. Como é que resolvemos essa equação de precisar de mais mãos, mas ao mesmo tempo precisar que sejam mãos qualificadas?

O país tem de ter atenção às políticas que desenvolve. Temos estado a tentar identificar o saldo de qualificações, isto é, entre aqueles que saem e aqueles que entram, qual é o saldo. Intuitivamente, olhando para os números, a impressão que dá é que realmente temos um saldo de perda de qualificações, porque os nossos emigrantes são, em média, jovens e altamente qualificados, e quem entra, em média, parece que as qualificações são mais baixas.

Como é que isso se resolve?

Resolve-se através de uma política migratória, que Portugal não tem verdadeiramente. Portugal tem estado aberto um pouco ao sabor de quem vem e de quem sai. Uma política migratória olha para as necessidades da economia portuguesa… Não estou a dizer que vamos apenas procurar atrair pessoas que têm altas qualificações ou que têm altos rendimentos. É olhar para as necessidades do país e procurar atrair perfis que correspondam a essas necessidades do país e pessoas que tragam qualificações que acrescentem valor ao país. Há outros países que o fazem. Por exemplo, o Canadá, a Irlanda, a Austrália, que têm políticas migratórias muito sofisticadas e tiveram, nos últimos anos, sucesso na atração e na retenção de talento. Portugal, de facto, não tem conseguido ter essa política.

Por ignorância dos Governos?

Talvez porque as prioridades têm estado noutros aspetos.

Erradamente?

Gosto de olhar para as coisas de uma forma construtiva. Acho que é o tempo de olhar para esta realidade que é fundamental. Portugal passou muito tempo a olhar para os défices das contas públicas, que eram um problema mais urgente. Foi dedicado muito esforço a isso. Mas agora é talvez a altura de olhar para o défice demográfico.

Precisamos de pessoas que venham para cá viver as suas reformas ou fazer os seus investimentos, mas também precisamos de pessoas que venham para cá trabalhar.

Gonçalo Saraiva Matias

Presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Mas, neste período de pré-campanha eleitoral, este é um tema que não está novamente a ser discutido com muita relevância. Não tem tido muita presença nos debates ou discursos.

Era bom que tivesse. É o momento de discussão sobre os grandes temas nacionais e, na minha opinião, este é claramente um grande tema nacional.

Sei que chegou a sugerir a criação de uma agência para a promoção de Portugal como destino de trabalho. De que modo funcionaria?

Há muitos anos que fazemos com sucesso a promoção de Portugal no mundo como um destino de turismo ou como um destino de investimento. Portugal tornou-se num destino inquestionavelmente bem-sucedido de turismo. Era importante que alguma estrutura do Estado assumisse a função de promover Portugal como destino de trabalho e para se viver. Já fizemos isso com sucesso no investimento e no turismo, mas não o fizemos na atração de talento. Precisamos de pessoas que venham para cá viver as suas reformas ou fazer os seus investimentos, mas também precisamos de pessoas que venham para cá trabalhar. Penso que esse trabalho não está a ser feito.

E como é que se combatem os estereótipos ligados à entrada de mão de obra não qualificada?

Há setores da nossa atividade que dependem dessa mão de obra não qualificada, como o turismo ou a agricultura, que são setores fundamentais no PIB português. Para mim, o maior problema é a desregulação do sistema migratório. Tivemos problemas de funcionamento das nossas estruturas públicas migratórias durante vários anos. Isso é perigoso, até porque abre a porta a formas de exploração da mão de obra e a formas de imigração clandestina. Obviamente tem de ser regulado e controlado. Esse é talvez o maior problema, porque isso tem que ver com a própria dignidade dos imigrantes que nos procuram. Por outro lado, quando se fala da diversificação do perfil migratório e da elevação das qualificações, isso aí já tem que ver com uma política muito ativa. Hoje falamos numa corrida mundial pelo talento.

Gonçalo Saraiva Matias, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em entrevista ao ECO - 09FEV24
Gonçalo Saraiva Matias, presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, em entrevista ao ECO Hugo Amaral/ECO

Os especialistas dizem que há mesmo uma guerra pelo melhor talento.

Quase uma guerra, porque o talento é escasso e, no mundo global, há uma competição feroz, que passa por salários, pelo sistema fiscal, mas não só. Passa pela atratividade dos países em várias dimensões. Uma delas é a política migratória e até a simplificação burocrática. Alguém que tem de tomar uma decisão de emigrar para algum lugar vai ter todos esses aspetos em consideração, incluindo a burocracia.

Mas Portugal é tipicamente um país de salários mais baixos do que outros países europeus. Conseguiria atrair talentos qualificados? De que modo?

Claro que esse é um desafio, que tem de estar centrado também no crescimento da economia e na condição para melhores salários. Mas acho que não é o único fator. Portugal tornou-se muito atrativo em todo o mundo como destino turístico e de pessoas que vêm para cá viver precisamente porque também tem outros fatores, como o clima, a segurança e a qualidade de vida. Temos de jogar com tudo isso. Em relação aos jovens – e o problema dos jovens é sério –, há questões relacionadas com a habitação, com a conciliação entre a vida pessoal e a vida profissional… Há uma série de questões que são acessórias da questão salarial, e que pesam tanto ou mais na decisão de fixar residência e local de trabalho.

Não temos, portanto, de ser fatalistas e pensar que estamos condenados a atrair só mãos não qualificadas por não ter os melhores salários.

Temos de ser realistas. Temos de trabalhar no sentido de oferecer melhores salários e melhores condições. Temos de melhorar, obviamente, a atratividade fiscal do país. Mas não é só isso. Podemos tirar partido daquilo que o país tem de bom, como fizemos quando trabalhámos o investimento e o turismo.

O que não podemos ter é a demissão total do legislador ou do regulador, ao dizer aos migrantes que venham de qualquer forma e, depois, logo se vê que condições é que têm. O problema não é só o da segurança, é também o da dignidade das pessoas.

Gonçalo Saraiva Matias

Presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos

Recentemente, o Governo criou um visto que permite a entrada no país para procura de trabalho. Que lhe parece esta medida?

Há muitas críticas sobre o visto para a procura de trabalho. Não sou muito crítico em relação a isso. Já sou mais crítico em relação ao modo como as entidades públicas não têm funcionado e não têm respondido atempadamente. Isso é muito mais problemático. O sistema canadiano funciona por pontos. Também não há necessidade de um contrato de trabalho prévio. O que se passa é que há uma avaliação das necessidades laborais do país num determinado momento e, depois, procura-se fazer um encontro entre a oferta que vamos buscar fora e essas necessidades. Com isso, de alguma forma, podemos dispensar o formalismo do contrato de trabalho. O que não podemos ter é a demissão total do legislador ou do regulador, ao dizer aos migrantes que venham de qualquer forma e, depois, logo se vê que condições é que têm. O problema não é só o da segurança, é também o da dignidade das pessoas.

A quem caberia, dentro do nosso país, fazer essa avaliação das necessidades do mercado de trabalho?

Propus a criação de uma agência para as migrações, que podia ter esse papel. Entretanto, foi criada uma agência, mas não exatamente com esta configuração. Continuo a achar que uma boa solução seria uma agência para as migrações que olhasse para o fenómeno de forma integrada, e não apenas para o fenómeno da imigração, mas também para o fenómeno da emigração, e que gerisse os fluxos de forma integrada.

Referiu a burocracia. Apesar das várias medidas que vêm sendo tomadas, mesmo a imigração de mão de obra para setores como a agricultura e a construção civil continua a não ser um processo propriamente ágil. Porque é que não se tem feito mais para facilitar esses processos?

Todo o processo é muito burocrático. Nos últimos anos, tem ficado ainda mais lento. E isso é problemático. A estrutura económica portuguesa é constituída, esmagadoramente, por micro, pequenas e médias empresas, que não têm capacidade para recrutar internacionalmente. Não são empresas que possam fazer road shows pelo mundo à procura dos melhores trabalhadores mais qualificados. O Estado deve apoiar as empresas nesse esforço, como apoia na internacionalização. Portanto, era fundamental, por um lado, que o Estado as ajudasse a chegar a esses mercados de oferta de mão de obra. Por outro lado, que desburocratizasse e que o processo se tornasse muito mais simples e rápido.

  • Diogo Simões
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