Inês Almeida Costa, associada coordenadora da MFA Legal, em entrevista, fala sobre segredo de justiça, corrupção, a fase de instrução e das medidas para a Justiça inscritas no programa de Governo.
A advogada integra a equipa de Direito Penal, Contraordenacional e Compliance da MFA Legal como associada coordenadora. Optou por se dedicar em exclusivo à área do Direito Penal, Contraordenacional e Compliance, na qual já se havia especializado academicamente, exercendo-a há 8 anos. Na sua área de especialização, a Inês desenvolve a respetiva atividade profissional, tanto na área da consultoria jurídica, como na área da resolução de litígios, já tendo participado em vários processos mediáticos como o Marquês, Vistos Gold, CMEC/EDP, Processo BES, processo do surto de Legionella, caso das Secretas, Galpgate, E-toupeira, entre outros.
Antes de integrar a equipa, como elemento fundador, a Inês exerceu advocacia na Vieira de Almeida (de 2019 a 2022) e na PLMJ Advogados (de 2012 a 2019). Desempenhou funções como membro do Gabinete do Provedor de Justiça português (2022 a 2023), onde esteve especialmente dedicada a temas de constitucionalidade e a temas relacionados com o sistema penitenciário português.
No programa de Governo, apresentado ontem, a suspensão provisória do processo aplicada a quem contribuir para a verdade nos processos de corrupção está a ser ponderada. É uma medida positiva?
O direito premial não é um fenómeno novo. O debate a propósito do tema foi especialmente espoletado a partir de casos como o da Lava Jato, no Brasil. Neste campo, Portugal sempre se mostrou mais conservador que outros países – países esses dotados de uma diversa matriz (por exemplo, os EUA) ou que se mostram mais permeáveis a essas influências (como seja o Brasil). De todo o modo, há que reconhecer que o legislador português também não se mostra totalmente alheio ou desfavorável a esta corrente. Há vários exemplos disso, tanto no direito penal, como no direito processual penal. Tal é sobretudo (já) visível ao nível da corrupção (lato sensu). De facto:
Do ponto de vista substantivo, (já) se prevê, no âmbito dos crimes de recebimento indevido de vantagem e de corrupção, ativos e passivos, a possibilidade de dispensa de pena, se “o agente (…) tiver denunciado o crime antes da instauração de procedimento criminal”, ou mesmo a possibilidade de atenuação especial da pena, se o mesmo “durante o inquérito ou a instrução, (…) tiver contribuído decisivamente para a descoberta da verdade” ou se, “até ao encerramento da audiência de julgamento em primeira instância, (…) colaborar ativamente na descoberta da verdade, contribuindo de forma relevante para a prova dos factos” (artigo 374.º-B, n.ºs 1, 2 e 5, do Código Penal, artigo 19.º-A, n.ºs 1, 2 e 5, da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sobre crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos, artigo 5.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril, sobre a responsabilidade por crimes de corrupção no comércio internacional e na atividade privada, e artigo 23.º, n.ºs 1, 3 e 5, da Lei n.º 14/2024, de 19 de janeiro, que estabelece o Regime Jurídico da Integridade do Desporto e do Combate aos Comportamentos Antidesportivos).
Do ponto de vista processual, verifica-se exatamente o mesmo fenómeno. Aliás – e com capital relevância no contexto da presente resposta –, importa recordar que, já desde 1994, que o nosso ordenamento jurídico prevê um regime especial de suspensão provisória do processo no âmbito da corrupção ativa (artigo 9.º da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro, sobre medidas de combate à corrupção e criminalidade económico financeira). A aplicação deste regime especial de suspensão provisória do processo está dependente de um comportamento anterior do agente (i.e., anterior à concreta aplicação da suspensão provisória do processo). Mais concretamente, a sua aplicação – no final da fase de investigação ou no final da fase de instrução – depende do facto de “[t]er o arguido contribuído decisivamente para a descoberta da verdade”.
Dito isto, gostaria de salientar que, do ponto de vista prático, vejo a implementação generalizada deste regime especial de suspensão provisória do processo, no contexto da corrupção, como positiva.
Significa tudo isto que a proposta do Governo, no que tange à aplicação da suspensão provisória do processo no contexto da corrupção, por um lado, e no que se reporta à alusão à lógica premial que lhe preside, por outro lado, não é totalmente uma novidade para o ordenamento jurídico português. Mas isso não significa que a proposta do Governo não possa ser pertinente.
Na verdade, considero que há aspetos, no referido regime especial da suspensão provisória do processo, que podem – e, diria eu, devem – ser melhorados. Desde logo, saber o que é uma “contribuição decisiva para a descoberta da verdade” acarreta, não raras vezes, dificuldades práticas de monta. Entende-se que tal expressão deverá conduzir à ideia da apresentação, por parte do arguido premiado, de um contributo relevante, decisivo e completo para a investigação, naturalmente relacionado com a factualidade em apreço (sendo exemplo disso a identificação de outros agentes e o fornecimento de prova cabal para a demonstração do esquema corruptivo em causa). Sendo este o entendimento que perfilho, a verdade é que o mesmo não decorre diretamente da lei, que deixa espaço para dúvidas e incertezas. Por outro lado, admite-se que, à semelhança do que existe no direito substantivo, o Governo possa querer equacionar o alargamento deste regime especial de suspensão provisória do processo ao lado passivo da corrupção.
Dito isto, gostaria de salientar que, do ponto de vista prático, vejo a implementação generalizada deste regime especial de suspensão provisória do processo, no contexto da corrupção, como positiva. Se corretamente mobilizado, este regime traz vantagens para o Estado (ao nível da investigação, mas também – e ainda que residualmente – ao nível da racionalização de custos, pois a suspensão substitui a realização de um julgamento e de subsequentes recursos) e, simultaneamente, para os agentes colaborantes (porque, não obstante estes poderem ser sujeitos a injunções, como consequência da suspensão, os mesmos não têm que passar por um julgamento, com os custos financeiros, sociais e sentimentais que isso acarreta, nem correm o risco de “manchar” o seu registo criminal).
Note-se que esta minha visão positiva da aplicação do regime está, contudo, condicionada à existência de controlo e escrutínio, tanto sobre aquilo que é comunicado pelo agente colaborante às autoridades (no sentido de se dever examinar rigorosamente a veracidade e importância do contributo oferecido para efeitos de atribuição do “prémio”), como sobre aquilo que lhe é prometido, enquanto “prémio” (que, em rigor, não poderá ser mais do que a promessa do Ministério Público de propor a suspensão, cuja concretização ficará dependente da posterior concordância do Juiz de Instrução [artigo 9.º, n.º 1, proémio, da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro]). Tudo terá que estar detalhado no processo e seguir diretrizes e orientações claras, por forma a afastar tudo quanto seja arbitrário – aspeto que o Governo deverá procurar garantir.
Posto tudo isto e em suma: considero essencial o desenvolvimento de um debate com vista à definição, da forma mais clara e precisa possível, dos contornos, pressupostos e condicionantes da suspensão provisória do processo, no âmbito da corrupção, procurando concretizar, densificar e porventura alargar o âmbito da medida hoje vigente.
E a fixação de 72 horas do prazo máximo para decisão de medidas de coação desde a detenção de um arguido, permitindo ainda que possa ser ouvido por mais do que um juiz de instrução?
Atualmente – e para aquilo que por ora mais interessa –, o artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, prevê que “[a] detenção a que se referem os artigos seguintes é efetuada (…) [p]ara, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido (…) ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coação”.
A aplicação prática deste artigo sempre gerou muita discussão, ao nível da prática judiciária – embora a questão só tenha ecoado recentemente, ao nível da comunicação social, com a Operação Influencer e com o Caso da Madeira, onde os Arguidos, para efeitos do respetivo interrogatório judicial e aplicação de medidas de coação, ficaram detidos bem mais do que 48 horas.
Importa começar por destacar que a discussão jurídica desenvolvida em torno do preceito levou a que, com a bênção do Tribunal Constitucional, se cristalizasse a jurisprudência segundo a qual o referido prazo de 48 horas imporia “apenas” que o arguido detido saísse da esfera administrativa (nomeadamente, policial), sendo apresentado a juiz de instrução para interrogatório tendente à posterior aplicação de medidas de coação. Assim, é comum entender-se que o respeito do prazo de 48 horas se encontra satisfeito com o interrogatório do detido sobre os respetivos elementos de identificação.
O mesmo é dizer que o referido prazo de 48 horas, à luz desta jurisprudência, não quer abarcar a prolação da decisão sobre as medidas de coação. E isto porque, nas palavras do Tribunal Constitucional, a duração dessa tarefa dependerá, desde logo, do caso concreto, da sua complexidade, da prova recolhida, do número de agentes envolvidos, do estado físico e psíquico do arguido e da estratégia de defesa por si adotada.
Compreende-se (e concorda-se com) esta forma de ver as coisas e, por isso, tem-se alguma reticência em apoiar a medida proposta pelo Governo por mais que o seu propósito de base seja por demais louvável. Aliás, antecipa-se que a lógica que preside à jurisprudência citada seja importada para a discussão de uma medida – como aquela que o Governo pretende instituir – que limite a 72 horas o prazo máximo para a prolação de decisão sobre medidas de coação de um arguido detido, impedindo a sua execução prática.
Mas com isto não quero dizer que considero correta a detenção de um arguido (que, afinal, ainda é tido como um presumido inocente, à luz da nossa Constituição) por bem mais do que 48 horas (como atualmente acontece) ou do que 72 horas (como se pode vir a discutir).
A questão é que a imposição do referido prazo de 72 horas, sem mais, pode ter efeitos perversos, como seja, desde logo, a aceitação acrítica da visão (tantas vezes tão enviesada) do Ministério Público, seja no que toca à indiciação dos factos, seja no que toca à promoção sobre a aplicação de medidas de coação. E, efetivamente, enquanto cidadã, mas sobretudo enquanto advogada, também não fico confortável com a “cedência” que, nesta hipótese, a garantia dos direitos de defesa dos arguidos (para mais contra a aplicação de medidas de coação) acabaria por fazer.
É, sem dúvida, de saudar a sensibilidade do Governo para este problema tão delicado. Creio, contudo, que a medida tem de ser pensada com cuidado, atenta a tendência (que observo na prática) de o Ministério Público, salvo honrosas exceções, propor medidas de coação demasiadamente pesadas, erigidas sobre narrativas enviesadas.
Por tudo o que digo, considero que a sensibilidade que o Governo revela para o problema da detenção dos arguidos, objetivada na referida medida de implementação do prazo de 72 horas, deve traduzir-se, igualmente, em medidas que ajudem a garantir a efetiva defesa dos arguidos detidos.
Pois bem, a propósito destas outras medidas, destaco o facto de o programa do Governo equacionar admitir que o primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos seja realizado por mais do que um juiz. Considero que, não sendo esta uma medida perfeita (pois abre-se espaço para possíveis desigualdades, já que “cada cabeça, sua sentença”), a mesma, pelo menos numa primeira aproximação, não surge como uma solução totalmente despicienda ou desadequada. Sobretudo se implementada numa lógica de task force em que os vários juízes intervenientes seriam orientados por uma estratégia comum, todos participando, a posteriori, na consequente elaboração da decisão sobre aplicação de medidas de coação. Poderia ser esta uma medida excecional a aplicar, apenas, em megaprocessos.
A questão é que a imposição do referido prazo de 72 horas, sem mais, pode ter efeitos perversos, como seja, desde logo, a aceitação acrítica da visão (tantas vezes tão enviesada) do Ministério Público, seja no que toca à indiciação dos factos, seja no que toca à promoção sobre a aplicação de medidas de coação.
Estamos demasiado obcecados com a corrupção?
A corrupção está na ordem do dia, não há a menor dúvida. Caracterizar a atualidade do tema como sendo “demasiada” e como fazendo parte de uma “obsessão” já me obriga a uma exposição mais detalhada, que foca diversas perspetivas.
Importa começar por deixar claro que sou da opinião que todo o trabalho de sensibilização e educação em relação ao tema, feito a nível internacional e nacional, é crucial para imprimir correção, justeza e transparência na vida em sociedade. E, nessa medida, vejo, em geral, como positivas as medidas que vão sendo implementadas nesta matéria, a título preventivo.
Isto significa que não penso que a corrupção não seja um problema real e que não deva fazer parte da política do Governo uma missão tendente à sua perseguição e (pelo menos ideal) erradicação.
Dito isto, e porque importa à resposta da questão colocada, gostaria apenas de deixar duas notas, de índole totalmente distinta.
Primeira nota: parece-me que o discurso que tem sido desenvolvido, em geral, em torno do problema da corrupção não é, necessariamente, representativo da realidade dos factos.
Não obstante saudar as iniciativas do Governo no sentido da luta contra a corrupção, a verdade é que também creio que, ultimamente, se tem verificado uma “inflamação” geral, porventura exagerada, em torno do fenómeno. Creio que esta “inflamação” espelha a opinião de uma franja cada vez mais significativa da população, que mais não faz do que mimetizar um discurso político altamente populista, também ele infelizmente cada vez mais presente, não só em Portugal, como no estrangeiro.
Segunda nota: na prática, haverá mais processos de corrupção do que aqueles que, realmente, deveriam existir, dando uma perceção geral errada quanto ao nível de existência do fenómeno.
Creio que esta “inflamação” da corrupção espelha a opinião de uma franja cada vez mais significativa da população, que mais não faz do que mimetizar um discurso político altamente populista, também ele infelizmente cada vez mais presente, não só em Portugal, como no estrangeiro.
Tenho constatado que há processos que são logo catalogados como processos onde que se investiga o fenómeno da corrupção, mas que o são de forma leviana e, diria eu, instrumental. É que tal abre espaço para que, durante o inquérito, se possam aumentar os prazos de segredo de justiça interno e/ou lançar mão de meios de obtenção de prova e de garantia patrimonial assaz invasivos, por exemplo.
Neste contexto, basta lembrar que a alegada prática de corrupção abre margem para que o segredo de justiça interno seja prorrogado por prazos desrazoáveis, na medida em que o artigo 89.º, n.º 9, do Código de Processo Penal, prevê que o segredo de justiça (interno) – que deve durar até ao final dos prazos máximos de inquérito (comummente ultrapassados, sem qualquer sanção) – seja prorrogado, primeiro, por 3 meses (prorrogação genericamente aplicada independentemente do tipo de crime em investigação) e, depois (para casos específicos, onde se incluem os casos de corrupção), “por um prazo objetivamente indispensável à conclusão da investigação” – prazo este definido ad hoc pelo juiz de instrução, com base em promoção do Ministério Público e que, como bem se antecipa, leva, não raras vezes, a decisões favoráveis às pretensões deste último.
Outro exemplo prende-se com a circunstância de a alegada prática do crime de corrupção abrir margem para o acionamento das medidas de combate à criminalidade organizada previstas na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, onde se prevê, com assinalável abertura, a quebra do sigilo profissional dos membros dos órgãos sociais das instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento e instituições de moeda eletrónica, dos seus empregados e de pessoas que a elas prestem serviço, bem como o segredo dos funcionários da administração fiscal; o controlo de conta bancária ou de conta de pagamento; o registo de voz e imagem; ou mesmo a (altamente invasiva e pesada) perda alargada de bens e o respetivo arresto.
Nas 186 páginas do programa de Governo, não há uma única referência à advocacia. Isso é preocupante?
Não vejo essa omissão com grande preocupação. De resto, e em geral, tem sido essa a prática de Governos anteriores. Não podemos esquecer que a Ordem dos Advogados é uma associação profissional de direito público. Ora, como acontece com qualquer outra ordem profissional (às quais a Constituição da República Portuguesa reconhece autonomia), a Ordem dos Advogados foi criada com o objetivo de promover a autorregulação e a descentralização administrativa. Assim, é o próprio Estatuto da Ordem dos Advogados que diz que “[a] Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público que, no exercício dos seus poderes públicos, desempenha as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma na sua atividade” (artigo 1.º, n.º 2, do Estatuto).
Pese embora o enquadramento que agora dei – que contextualiza o silêncio do programa do Governo quanto à advocacia –, será, sem dúvida, de saudar um futuro diálogo, que se quer efetivo, profícuo e produtivo, entre o Governo e a classe dos advogados, a propósito das várias alterações que pretende implementar a propósito da justiça. É que, afinal de contas, as soluções em equação contendem, em grande medida, com a atividade da advocacia e se os advogados são vistos como elementos essenciais na e indispensáveis à administração da justiça (artigos 12.º, n.º 1, e 13.º, n.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, sobre a organização do sistema judiciário), é, pois, desejável que lhes seja dada uma voz.
Será, sem dúvida, de saudar um futuro diálogo, que se quer efetivo, profícuo e produtivo, entre o Governo e a classe dos advogados, a propósito das várias alterações que pretende implementar a propósito da justiça. É que, afinal de contas, as soluções em equação contendem, em grande medida, com a atividade da advocacia e se os advogados são vistos como elementos essenciais na e indispensáveis à administração da justiça.
Faz sentido a fase de instrução deixar de existir, no processo penal?
A 10 de outubro de 2023, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura aprovou a criação de um grupo de trabalho para (nas palavras do comunicado à data emitido) avaliar os principais constrangimentos processuais e extraprocessuais causadores de morosidade e definir uma estratégia de apoio à tramitação dos chamados megaprocessos. Um dos objetivos do grupo de trabalho consiste em (novamente nas suas palavras) avaliar a necessidade de propor eventuais alterações legislativas ao Código de Processo Penal, revisitando, sobretudo, a fase de instrução criminal, de forma a alcançar uma justiça mais célere, identificando-se os entraves a esse objetivo.
É, pois, previsível que, a breve trecho (supostamente, até ao final do presente ano de 2024), haja respostas certamente mais doutas que a minha acerca da questão que agora me é colocada. Sem prejuízo disso, e com todo o devido respeito por opinião contrária, afirmo que sou partidária da existência da fase de instrução, que vejo como um importante mecanismo de controlo da decisão que o Ministério Público toma no final da fase de inquérito.
Há muito tempo, que constato que, só nos livros, o Ministério Público age segundo padrões de estrita legalidade e objetividade. De facto, salvo raras e honrosas exceções, apercebo-me (com alguma deceção, não vou mentir) que os representantes do Ministério Público defendem as respetivas investigações bem para lá daquilo que é razoável. Os mesmos acabam, não poucas vezes, por formular acusações, não porque as provas objetivamente apontam para tal, mas sim porque os mesmos já não conseguem abrir mão da narrativa por si criada ao longo da investigação (não obstante a mesma ter sido claramente contrariada em inquérito por prova subsequentemente recolhida). E isto, quer por a sua imparcialidade já estar comprometida e por não conseguirem ver as coisas como elas são, quer por mero orgulho, fruto do seu investimento profissional e pessoal em tais investigações.
Compreender-se-á que, neste contexto, se torne (ainda mais) necessária a intervenção do Juiz das Garantias, terceiro em relação à investigação desenvolvida. Este servirá de crivo entre a investigação e o julgamento, seja impedindo que casos de manifesta improcedência em julgamento prossigam para essa fase, seja expurgando os processos que prosseguem para julgamento de “gorduras” mais óbvias.
Assim, e ao contrário do que possa parecer numa primeira aproximação, a existência da fase de instrução traz benefícios para a celeridade dos processos penais em geral, pois não “entope” os tribunais de julgamento de processos que, em rigor, nunca lá deveriam ter chegado de todo ou que não deveriam ter chegado com uma dimensão exagerada.
A chave estará em retomar aquela que é a essência da instrução. A mesma não pode ser tomada como um autêntico julgamento, em claro prejuízo para a celeridade do processo.
Em conclusão: considero que é positivo revisitar-se a fase de instrução à luz daquela que tem sido a prática judiciária em geral (não só os megaprocessos, mas também todos os demais) por forma a definir, de forma clara, a sua lógica, a sua essência, o seu objeto e respetiva finalidade. Mas nunca colocando a sua existência em xeque.
A prestação de contas por parte do MP é uma miragem?
Pelo menos, formalmente, há mecanismos tendentes a garantir a sindicabilidade da ação do Ministério Público.
Desde logo, e nos termos gerais, existe a possibilidade de acionamento de processo criminal contra magistrados do Ministério Público, no caso de haver indícios da prática de crimes. Por outro lado e em termos mais particulares, os magistrados do Ministério Público são, em geral, disciplinarmente responsáveis e prestam contas, perante a sua hierarquia.
Ademais, e a outro nível, a Senhora Procuradora-Geral do Ministério Público, pelo menos, teoricamente, também se encontra sob escrutínio, na medida em que, nos termos da Constituição da República Portuguesa, compete ao Presidente da República nomear e (para aquilo que aqui mais importa) exonerar, sob proposta do Governo, o Procurador-Geral da República.
O grande problema é que estes mecanismos – que, não sendo perfeitos em termos de prestação de contas stricto sensu, partilham dessa lógica – não se têm mostrado, na prática, efetivos.
Basta recordar que, não raras vezes, as acelerações processuais deferidas em inquérito não redundam num especial escrutínio (ou sanção disciplinar), por parte da hierarquia, em relação à direção da investigação levada a cabo pelo magistrado responsável. Que (felizmente com louváveis exceções) vem sendo desenvolvida uma corrente no âmbito da hierarquia do Ministério Público que julga inadmissível (indeferindo-o liminarmente) qualquer pedido de intervenção hierárquica quanto a questões avulsas que se coloquem ao longo da investigação.
Basta ainda recordar que semelhante inércia parece existir em relação ao exercício do poder disciplinar em geral, existindo uma perceção generalizada da existência de uma solidariedade de classe, que tende a traduzir-se numa maior “desculpação” da conduta dos magistrados sob escrutínio (lógica que é importada para os processos criminais movidos contra magistrados do Ministério Público). Por fim, não deixa também de corroborar esta perceção geral quanto à falta de prestação de contas do Ministério Público o facto de, em casos mediáticos e polémicos com repercussões políticas brutais para o nosso País (como foram a Operação Influencer e o Caso da Madeira), a mais alta figura da estrutura do Ministério Público não ter vindo a público prestar os esclarecimentos que lhe competia transmitir (e que a comunidade em geral, claramente pedia), sem quaisquer apelos ou, no limite, efeitos políticos, desencadeados por quem de direito.
O que faz falta no Ministério Público?
A pergunta que me é feita exige que eu considere apenas as más experiências que tive, no foro profissional, na relação com o Ministério Público. Assim o farei, sem prejuízo de deixar bem claro que, ao longo da minha vida profissional, também tive muito boas experiências, onde imperou a competência e a seriedade.
Feita esta ressalva e focando-me, como disse, nas minhas experiências menos positivas, diria que poderá fazer falta ao (entenda-se: a alguns magistrados do) Ministério Público, salvo o devido respeito, algum “mundo” para perceber que nem todo o fenómeno diferente ou menos comum é reconduzível a crime e, por outro lado, alguma humildade e objetividade para perceber quando é hora de desistir de pugnar pela defesa de uma narrativa que, em face da realidade dos factos e da prova carreada para os autos, não mais pode vingar.
Como avalia a comunicação (ou falta dela) por parte do Ministério Público/PGR?
Muito negativamente – enquanto advogada e enquanto cidadã de um Estado-de-direito democrático.
Os megaprocessos são os responsáveis pela demora na Justiça Penal?
Tenho a convicção de que os megaprocessos contribuem, de forma bastante significativa, para a morosidade na justiça penal.
De facto, os mesmos implicam, desde logo, uma investigação, instrução e julgamento muito mais morosos e, normalmente, bem mais complexos. Os mesmos implicam ainda a intervenção e/ou articulação, em vários momentos e de várias formas, de múltiplas pessoas (desde autoridades, nacionais e por vezes estrangeiras, arguidos, assistentes, demandantes, testemunhas e respetivos advogados), com os constrangimentos que isso, muitas vezes, acarreta para o escorreito andamento de um processo.
Por outro lado, não se poderá esquecer que, em resposta ao incomensurável manancial de informação que caracteriza estes megaprocessos (habitualmente catalogados como de “especial complexidade”), são-lhes normalmente associados prazos alargados de defesa, em momentos cruciais do processo. Nesses casos, as partes beneficiam automaticamente de um acréscimo de 30 dias ou de um acréscimo por prazo superior, decidido ad hoc, se, em concreto, tal se justificar (artigo 107.º, n.º 6, Código de Processo Penal). Trata-se de uma solução que, embora justa, também acarreta maiores delongas na tramitação processual.
Não obstante, não creio que que os megaprocessos sejam os únicos responsáveis pelo atraso que é habitualmente associado à justiça penal. Sinto que também contribui para o fenómeno a falta de recursos humanos que perpassa o sistema. Terá ainda o seu peso o descontentamento generalizado (de conhecimento público) instalado na classe dos funcionários judiciais e, de certa forma, dir-se-ia, na classe de magistrados (todos funcionários públicos), que certamente levará a desmotivação e, possivelmente e em consequência, a menores níveis de rentabilidade.
De facto, salvo raras e honrosas exceções, apercebo-me (com alguma deceção, não vou mentir) que os representantes do Ministério Público defendem as respetivas investigações bem para lá daquilo que é razoável. Os mesmos acabam, não poucas vezes, por formular acusações, não porque as provas objetivamente apontam para tal, mas sim porque os mesmos já não conseguem abrir mão da narrativa por si criada ao longo da investigação.
A solução pode passar por ‘partir’ esses megaprocessos em vários, mais pequenos?
Da minha experiência, há megaprocessos que o são por o tema em si ser extensíssimo e muito profundo. Esses dificilmente conseguem ser “partidos”.
Contudo, outros há em que tal desconexão é possível e justifica-se, a bem da celeridade processual. Falo dos megaprocessos que nascem pela agregação, num mesmo processo, de várias investigações, totalmente distintas entre si, mas que, por exemplo, têm como “arguido principal” uma mesma pessoa. Há, aliás, megaprocessos que, na lógica acabada de expor, conjugam vários “arguidos principais”, cada um com o seu leque, entre si díspar, de alegadas intervenções criminosas.
De facto, neste segundo conjunto de processos, a existência de megaprocessos é perniciosa e acarreta custos excessivos. Tanto para o ius puniendi do Estado – que, por exemplo, pode ficar em risco para determinado núcleo de factos, nomeadamente, por força da prescrição do procedimento criminal, por a investigação, em relação a outro núcleo factual, estar a ser mais morosa. Como para os próprios arguidos – que, por exemplo, sendo visados apenas num setor do megaprocesso em apreço, têm que se subjugar ao ritmo, naturalmente bem mais lento, do megaprocesso em geral, em prejuízo do seu direito constitucional à obtenção de uma decisão em prazo razoável.
Por isto, defendo que é imperativo escrutinar, amiúde, a razão de ser e a efetiva justificação de processos de maior dimensão.
Existe atualmente uma espécie de perseguição a políticos por parte do Ministério Público?
Durante muito tempo, existia a perceção de que, não só os políticos, mas também os “ricos e poderosos”, não eram minimamente tocados pela justiça penal.
De há uns anos para esta parte, quis-se quebrar com essa lógica. Algo que é, pelo menos teoricamente, positivo, pois ninguém está acima da lei, sobretudo os políticos, que são peças centrais da democracia, por isso, submetidos a um maior (e compreensível) escrutínio. O grande problema, aqui e em todo o lado, é quando se cai em exageros – característica típica do eclodir dos contraciclos. Considerando a minha experiência profissional e aquilo que é do conhecimento geral, através da comunicação social, diria que, atualmente, ainda estamos a viver este fervor do contraciclo, que acaba sendo alimentado por um discurso populista geral e que é executado por um Ministério Público, a meu ver, não alheio a preconceitos.
Sinto que, hoje em dia, ser “bem sucedido” ou ser político parece gerar, logo a priori, desconfiança, o que é – perdoe-se-me a franqueza – manifestamente injusto.
Considerando concretamente a classe política, costumo dizer que aceitar-se ser político (nomeadamente, político com influência decisória) representa um ato de coragem e grande risco.
De facto, quantos casos não há de pessoas que, por força da sua conduta no decorrer do respetivo mandato político, são sujeitos a processos criminais, com grande repercussão mediática – e consequente julgamento e condenação social –, e que, depois, são ilibados por se perceber que a narrativa acusatória, demasiadamente inflamada, assentava em pressupostos de facto e/ou de direito errados? E o problema de tudo isto – que raras vezes é sinalizado – é que os arquivamentos / não pronúncias / absolvições nunca têm tanta projeção mediática como a anterior notícia da existência de suspeitas da prática de um crime. E, com isso, a imagem das pessoas visadas nunca é, verdadeiramente, reposta. Mais: mesmo quando a projeção mediática da inocência da pessoa visada existe, a reação automática, no público em geral, é, invariavelmente, a de que “a justiça não funciona”.
Injustiças que ficam assim perpetuadas porque, num primeiro momento, se agiu de forma enviesada e, claramente, excessiva…
A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública, muito alimentada pelos comentadores televisivos residentes. Como explicar ao cidadão comum que não é assim que se faz Justiça?
É muito complicado, sobretudo quando tudo começa com aparatosas buscas e detenções, vistas por todos em horário nobre. O cidadão comum fica, como disse atrás, com a sensação de que “a justiça não funciona”.
Sou da opinião de que o problema, muitas vezes, está a montante, isto é, no próprio eclodir dos processos e na narrativa que neles se constrói. Sobre esse tema, já tive oportunidade de me expressar atrás.
De resto, sou partidária da tese de que a informação e a educação são fundamentais para desconstruir o preconceito de que a justiça se faz condenando. Neste campo, o papel da comunicação social e dos comentadores, aqui – e em tantos outros campos –, é absolutamente fundamental. E cada vez mais fundamental, atentas as tendências populistas que vêm crescendo e manchando, também, o discurso que se desenvolve em torno da justiça penal.
Mas não só. Tendo em conta o interesse geral dos temas ligados à justiça penal, não seria despiciendo incluir, por exemplo, em aulas de cidadania, matérias que aumentassem a sensibilidade para estas questões, nas crianças e jovens (os adultos do futuro).
É, pois, fundamental que todos – e não só os profissionais que trabalham nesta área – compreendam que o direito penal serve para condenar, mas também serve para absolver e que uma ou outra opção são igualmente valiosas à luz daquelas que são as finalidades do direito penal. É ainda fundamental que todos percebam que, até por força da Constituição, todas as pessoas, ainda que num primeiro momento acusadas, são presumidas inocentes até que uma decisão transitada em julgado afirme o contrário. Tal opção tem (não só, mas também) por detrás a ideia – que também deve ser transmitida – de que o Ministério Público e os Tribunais, muitas vezes acertam, mas muitas vezes também se enganam e que, por isso, o sistema garante que várias autoridades judiciárias, ao longo de várias fases do processo, se debrucem sobre os mesmos temas. Tudo para garantir que há escrutínio e maturada ponderação acerca de algo tão sério (e com repercussões tão graves) como seja a responsabilização penal de uma pessoa. E assim, deve sobretudo ser transmitida a ideia fundamental de que se deve confiar no sistema penal e aceitar, com tranquilidade e confiança, não só as condenações, mas também as absolvições.
Sabemos que a Justiça não é eficiente. Mas é independente? Falo do MP e dos juízes.
Não tenho dados para afirmar que o Ministério Público e os juízes não são independentes de interesses externos. Nunca tive suspeita disso no exercício da minha profissão. Acresce que casos como a Operação Lex são, claramente, uma exceção.
A minha resposta já é diferente se considerar aquilo que chamo de “independência interna”, nomeadamente, em relação a preconceitos. Neste campo – e conforme decorre de respostas que já fui avançando atrás –, tenho notado, em processos que acompanho, exemplos de uma certa “obstinação”, por parte de magistrados do Ministério Público, no sentido de defenderem, a todo o custo e desrazoavelmente, determinada tese acusatória, em choque frontal com a objetividade e legalidade que deveriam comandar a sua atuação.
A lei do lobby vai ajudar a esclarecer e tornar certos contextos mais transparentes?
Julgo que sim. O lobbying existe, quer queiramos, quer não queiramos. Ora, a existir, prefiro que tal aconteça de forma regulada e transparente. Só assim se conseguirá traçar ao certo as fronteiras entre o lícito e o ilícito, entre o permitido e o proibido.
O lobbying reconduz-se, grosso modo, à existência de contactos que visam influenciar uma decisão pública ou política. Em si mesmo, o lobbying não me levanta grande questão. Isto porque não o limito à conotação negativa ao qual está normalmente associado. Isto é, não o vejo como sendo uma influência que se deva repelir, porque, por exemplo, se mostra favorável a interesses privados e sempre contrária ao interesse público. Efetivamente, aquela influência pode ser muito positiva e construtiva. Mais: aquela influência, se bem usada, permite que o poder decisório esteja mais bem informado e que as suas decisões sejam mais bem instruídas.
Por outro lado, se, por exemplo, as comunicações havidas entre políticos e lobbyistas forem conhecidas, porque submetidas a registo (é este um dos objetivos do programa do Governo), as mesmas serão mais facilmente escrutinadas por todos. Desde logo, porque o acolhimento ou rejeição de determinado interesse, ao nível da decisão pública ou política, terá obrigatoriamente de ser mais bem fundamentado.
Mas, mais ainda: a regulação do lobbying fomenta a igualdade de oportunidades, pois permite que a participação na formação da opinião pública ou política que leva ao processo decisório não esteja circunscrita apenas às pessoas ou empresas melhor “posicionadas” em termos de relacionamentos pessoais e/ou profissionais, alargando-se o espectro de possíveis participantes. Perspetivado deste prisma, a regulação do lobbying estimula a participação democrática.
É, pois, com agrado que constato a postura do Governo quanto ao tema do lobbying, que me parece acertada. Sem preconceitos nem hipocrisias, importa assumir as coisas como elas são, garantindo regulação e, por essa via, mais segurança, mais igualdade e mais justiça.
Poderá fazer falta ao (entenda-se: a alguns magistrados do) Ministério Público, salvo o devido respeito, algum “mundo” para perceber que nem todo o fenómeno diferente ou menos comum é reconduzível a crime e, por outro lado, alguma humildade e objetividade para perceber quando é hora de desistir de pugnar pela defesa de uma narrativa que, em face da realidade dos factos e da prova carreada para os autos, não mais pode vingar.
O que pode ser melhorado para não termos processos a durarem tantos anos?
Grande parte da duração dos processos deve-se à extensão imensa dos respetivos inquéritos.
Portanto, trata-se logo de um problema de base. Dito isto, importa fazer uma distinção importante no contexto da investigação criminal:
Há aspetos que contribuem para a duração dos processos, mas que não dependem, necessariamente, da boa ou má vontade das autoridades. Basta, por exemplo, pensar que a criminalidade tem vindo a apresentar-se cada vez mais sofisticada e que a recolha de prova se tem revelado cada vez mais difícil, sobretudo quando existem ligações transfronteiriças, exigindo o acionamento de instrumentos internacionais de cooperação, nem sempre eficientes e céleres.
Contudo, há outros aspetos que – esses sim – podem, e devem, ser abordados no contexto da resposta à questão colocada. De facto, seria fundamental controlar o tamanho dos processos, decidindo, segundo critérios rigorosos, quando deve, ou não, haver conexões e separações processuais. Seria também crucial, fomentar-se a existência de uma estratégia mais afinada quanto ao desenrolar das investigações criminais, evitando o desenvolvimento errático e não criterioso das mesmas (tantas vezes observado) e a inerente perda de eficácia e recursos, financeiros e humanos. Por fim, seria ainda essencial que o mecanismo da aceleração processual (muitas vezes acionado durante as investigações), realmente funcionasse, em prejuízo da proteção de classe que tantas vezes se observa.
De resto, no que toca às fases da instrução e julgamento, seria importante criar condições para que as decisões judiciais e todo o trabalho instrumental de um julgamento fosse facilitado, nomeadamente reforçando a disponibilização de assessores para as magistraturas (aspeto que, diga-se de passagem, não passou indiferente à proposta do Governo).
Por fim e transversalmente, urge tornar as carreiras ligadas à área da justiça mais atrativas. Falo, não só de oficiais de justiça (expressamente considerados na proposta do Governo), mas também dos magistrados do Ministério Público e magistrados judiciais. Só assim se garante a captação de mais recursos humanos, mas também motivação e empenho dos profissionais já em exercício de funções.
Se fosse ministra da Justiça, que medida tomaria em primeiro lugar?
É-me muito difícil indicar uma única medida, porque há várias que considero fundamentais.
Neste exercício difícil, destaco uma medida que tem repercussões generalizadas – a saber: a medida tendente a “[p]romover uma cultura de eficiência nos tribunais, nomeadamente através da adoção de medidas de gestão processual”, a qual, a meu ver, não deveria ser privativa dos Tribunais, abarcando também a estrutura do Ministério Público.
Com isto não desejo passar a mensagem de que as preocupações centrais do Governo se devam limitar aos processos em curso. Bem ao invés, as mesmas devem também abranger um tema absolutamente fundamental e que tem vindo a ser reiteradamente esquecido e negligenciado pelo poder político: o sistema prisional e as suas condições. Daí que aproveite o presente ensejo para também sinalizar a importância da seguinte medida do Governo: “Redimensionar a rede de Estabelecimentos Prisionais e das equipas de reinserção social e promover a diferenciação e individualização da intervenção dos Estabelecimentos Prisionais”.
Ao longo da minha vida profissional, já tive a oportunidade de ver, in loco, as condições de algumas das prisões portuguesas e de, em relação às condições de todas elas, analisar em detalhe decisões condenatórias de Portugal, emitidas pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), bem como relatórios, nacionais e internacionais, emitidos pelas mais diversas entidades. E a minha conclusão foi sempre a de que o parque prisional português precisa, urgentemente, de uma intervenção profunda.
Como tive oportunidade de dizer em artigo recentemente publicado acerca do tema, “transversalmente a todo o sistema [penal português], perpassa a ideia de que todas as pessoas são igualmente dignas (afinal, é isto que decorre do art. 1.º da Constituição da República Portuguesa) e igualmente capazes de se adequar ao direito. Pretende-se, em suma, que ninguém fique esquecido só porque, um dia, cometeu um crime”. Assim, e como aí também dizia, “[n]as palavras do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), cada Estado «deve garantir que uma pessoa seja detida em condições compatíveis com o respeito pela dignidade humana, que a forma e o método de execução da medida não a submetam a angústia ou dificuldades de intensidade superior ao nível inevitável de sofrimento inerente à detenção e que, tendo em conta as exigências práticas da prisão, a sua saúde e bem-estar sejam adequadamente assegurados» (caso Muršić c. Croácia)”.
É isto que o Estado português deveria fazer (desde logo, por ter assumido internacionalmente obrigações ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes e do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes); mas que, realmente, não tem feito – já contando com quatro condenações do TEDH nos primeiros três meses de 2024 (!). Veria, assim, com muito agrado a alteração de paradigma pelo Governo ora em funções.
O segredo de justiça, na forma como está, deveria pura e simplesmente desaparecer?
Sou da opinião de que o segredo de justiça é importante e que, por isso, deve existir. O mesmo existe para proteger, não só os interesses da investigação, como os direitos dos sujeitos processuais.
Mas também concordo que o mesmo não tem sido bem aplicado, na prática processual, ficando-se amiúde com a sensação de que o sistema está subvertido, isto é, que aquilo que é a exceção (o segredo de justiça) passou a ser a regra.
Considero que a chave para a solução do problema estará em garantir um melhor controlo da aplicação ab initio do segredo de justiça e, em todo o caso, uma contínua e efetiva reavaliação da pertinência da sua manutenção. É que o que, numa determinada altura, levou a que se implementasse o segredo de justiça em determinado processo pode não mais se verificar (ou não se verificar com tanta acuidade) mais tarde, caso em que o segredo deve ser levantado.
Por outro lado, creio que fará sentido desenvolver um debate acerca da diminuição do prazo de segredo de justiça interno. Atualmente, nos termos da lei, passados os prazos máximos de inquérito, o segredo de justiça (interno) é levantado para os sujeitos processuais, não obstante o segredo (externo) para fora do processo continuar vigente. Assim acontece, como se disse, uma vez ultrapassados os prazos máximos de inquérito, “salvo se o juiz de instrução determinar, a requerimento do Ministério Público, que o acesso aos autos seja adiado por um período máximo de três meses, o qual pode ser prorrogado, por uma só vez, quando estiver em causa a criminalidade a que se referem as alíneas i) a m) do artigo 1.º [terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente e criminalidade altamente organizada], e por um prazo objetivamente indispensável à conclusão da investigação” (artigo 89.º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
Significa isto que, em geral, é permitida a prorrogação do segredo de justiça interno por mais 3 meses e que, a acrescer a isso, é permitida uma prorrogação adicional, sem limite fixado na lei (tem sido este o entendimento dos tribunais), para crimes de variada índole (onde se incluem crimes de organizações terroristas e tráfico humano, por exemplo, mas também crimes de corrupção, participação económica em negócio e branqueamento, entre outros).
Entendo que esta última prorrogação é chocantemente desproporcional, atenta a respetiva abrangência (muito díspar), mas sobretudo considerando a ilimitação temporal a que, na prática, leva.
Considero, assim, que a revisitação do regime do segredo de justiça interno – no sentido da sua limitação em prol da publicidade interna do processo – é pertinente. A publicidade interna do processo tem o importante efeito de diminuir o fosso de informação entre defesa e Ministério Público (o qual é, muitas vezes, abissal, no momento em que a investigação termina, em prejuízo dos direitos de defesa dos arguidos); de fomentar o escrutínio da atividade do Ministério Público pelos sujeitos processuais; e de, consequentemente, aumentar a pressão do Ministério Público para que as investigações se desenvolvam com celeridade e objetividade. Tudo interesses atendíveis, sobretudo nos quadros do programa do Governo.
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“Tem-se verificado uma inflamação geral e exagerada em torno da corrupção”
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