Bruxelas quis rever os diplomas ESG para os simplificar. Empresas deverão sentir alívio na carga administrativa, mas ficam alertas para uma possível desregulação com efeitos negativos.
No passado mês de fevereiro, a Comissão Europeia lançou o pacote Omnibus, para simplificar a legislação europeia e aumentar a competitividade das empresas, o qual visou três diplomas de sustentabilidade. Se há quem defenda que as medidas propostas são benéficas e de encontro ao objetivo, contam-se também várias críticas: a Comissão é acusada de “desregulação” em vez de simplificação, de um excessivo foco nos custos em vez da criação de valor, e de causar uma incerteza prejudicial para os negócios e para a transição.
Em causa estão a Taxonomia Europeia, que contém os princípios para identificação de atividades económicas sustentáveis; a Diretiva de Relatórios de Sustentabilidade Corporativa (CSRD), que obriga as empresas a divulgarem informações sobre o impacto das suas atividades nas questões ambientais, sociais e de governança (ESG); e ainda a Diretiva de Devida Diligência em Sustentabilidade Corporativa (CSDDD), a qual exige que as empresas identifiquem e mitiguem impactos adversos nos direitos humanos e no meio ambiente ao longo das suas cadeias de valor.
“Este primeiro Omnibus permitirá às empresas quer contribuir de forma mais eficaz para os objetivos de sustentabilidade da União Europeia (UE), quer também preservar da competitividade da economia“, considera a CIP– Confederação Empresarial de Portugal, indo ao encontro daquele que foi anunciado como o objetivo do pacote pela própria Comissão Europeia.
A sócia de Compliance da Macedo Vitorino, Cláudia Martins, concorda que “a proposta Omnibus reduz significativamente a carga administrativa das empresas”, mas ressalva que “as alterações podem comprometer a transparência e a comparabilidade da informação sobre sustentabilidade, dificultando a avaliação do desempenho ESG pelas partes interessadas”.
Este primeiro Omnibus permitirá às empresas quer contribuir de forma mais eficaz para os objetivos de sustentabilidade da União Europeia, quer preservar da competitividade da economia.
Tendo em conta que as diretivas de sustentabilidade eram vistas como “standards globais” e que os EUA “se encontram num caminho de desregulação sem precedentes”, Madalena Perestrelo, consultora sénior de Bancário, Financeiro e Fusões e Aquisições na PLMJ, considera que este não é apenas um debate sobre leis: “É uma discussão mais profunda sobre direção e caminho político da União Europeia“.
Na ótica da consultora da PLMJ, o Relatório Draghi apela à proporcionalidade entre a dimensão das empresas e respetivas obrigações, mas em vez de fazer este ajustamento, a proposta Omnibus acaba por assumir que muitas empresas “podem permanecer opacas em matéria de sustentabilidade”, detetando um “recuo” em “medidas importantes”. Ao mesmo tempo, defraudam-se as expectativas de partes interessadas como bancos, os investidores, e consumidores, que exigem cada vez mais informação sobre sustentabilidade.
Alice Khouri, responsável do departamento Legal da Helexia, entende também que, com a recente proposta de alteração dos diplomas, “ganha força o pensamento de curto prazo e as prioridades voltam a mudar” na Europa, quando “a sustentabilidade estava a começar a ganhar espaço na estratégia corporativa”. Ao mesmo tempo, o período de indefinição e espera enquanto as propostas não são efetivadas, “gera muita incerteza e atrasa a tomada de decisões, comprometendo o ritmo que já precisava de ser acelerado”.
É uma discussão mais profunda sobre direção e caminho político da União Europeia.
“Um dos principais desafios para as empresas neste momento será gerir a incerteza associada a este pacote Omnibus“, corrobora a conselheira no Centro para Negócios Sustentáveis e liderança da Católica Lisbon, Angela Lucas, realçando que, no período de transição, as empresas continuam legalmente sujeitas a obrigações que provavelmente serão alteradas ou mesmo eliminadas nos próximos meses.
O futuro da proposta Omnibus depende agora das negociações com o Parlamento Europeu e o Conselho, o que pode resultar em negociações difíceis e em novas alterações substanciais: “Se o Omnibus acabará por ser uma verdadeira simplificação ou um pacote mais amplo de ‘desregulação’, teremos ainda de esperar para ver”, considera a conselheira de Negócios Sustentáveis da Católica. Para a partner da PwC Cláudia Coelho, é importante que tanto a revisão das normas como a publicação dos standards voluntários ocorram “com a maior brevidade possível”, para que as empresas possam usufruir de forma eficiente do novo prazo fornecido.
Comissão focada nos custos, não tanto nos benefícios
“A Comissão Europeia por diversas vezes assinala os custos associados ao reporte; mas o foco é integralmente colocado nos custos, sem que seja feita uma análise aprofundada da relação entre os custos e os benefícios“, critica Madalena Perestrelo, argumentando que não existem dados que comprovem a relação entre custos reduzidos de reporte e aumento de competitividade, até pelo caráter recente da legislação.
Os custos iniciais são naturalmente elevados, reconhece, mas espera-se que se vão reduzindo. “E integrar a sustentabilidade na estratégia das empresas é um mecanismo de criação de valor”, sublinha.
O foco é integralmente colocado nos custos, sem que seja feita uma análise aprofundada da relação entre os custos e os benefícios.
Alice Khouri concorda que uma análise de custo-benefício que pudesse suportar “uma alteração regulatória deste porte” não foi apresentada, “e era crucial”. “É uma desregulação em temas relevantes, e perigosa” pelo momento na qual é apresentada, uma vez que a cultura da transparência e quantificação de impacto ainda não existe, e estava a ser impulsionada pelas diretivas.
“A narrativa sobre o relato de sustentabilidade deve evoluir de uma lógica de ‘custo’ para uma narrativa de ‘criação de valor’ – um motor para a estratégia, rentabilidade, crescimento e inovação”, reforça Angela Lucas.
Universo visado cai a pique
A proposta Omnibus prevê que a diretiva de reporte se passe a aplicar apenas a grandes empresas com um balanço superior a 25 milhões de euros e um volume de negócios superior a 50 milhões de euros, e que possuam mais de 1.000 trabalhadores. Isto significa que o número de empresas abrangidas afunda 80%, de cerca de 50.000 para 7.000. As PME cotadas foram “totalmente” excluídas das obrigações, aponta a sociedade Macedo Vitorino. Khouri assinala que, na maioria dos países europeus — como é o caso de Portugal — vão ficar de fora do dever de reportar indicadores ESG 99,9% das empresas.
“Este é um retrocesso considerável. Implica perda de impacto da CSRD, perda de informação para o mercado em geral e representa um recuo significativo na estratégia de sustentabilidade da UE“, considera Madalena Perestrelo. “O que vejo com esta medida não é simplificação, mas sim desregulação”, diz.
Se for aprovado o corte, o âmbito de aplicação da CSRD passa a ser menor do que aquele que é à data de hoje aplicado em Portugal, decorrente do Código das Sociedades Comerciais, sublinha. Este Código obriga ao relato de sustentabilidade empresas de interesse público com mais de 500 trabalhadores. O Omnibus reduz o âmbito para empresas com mais de 1.000 trabalhadores. A consequência é que “haverá empresas portuguesas que hoje estão sujeitas à obrigação de reporte de sustentabilidade e que deixarão de o estar“, remata.
A sócia da SRS Legal Carla Neves Matias aponta ainda outro efeito pernicioso das alterações à diretiva de reporte: “penaliza aqueles que já fizeram o esforço de adaptação”.
A Comissão indicou que serão desenvolvidas e publicadas normas voluntárias que possam ser adotadas pela generalidade das empresas não abrangidas, com base nas normas voluntárias para PME divulgadas em dezembro de 2024 (norma VSME). “A publicação destas normas voluntárias é particularmente importante para garantir que a redução substancial do âmbito de aplicação não leva essas entidades a deixar de desenvolver proativamente as suas práticas de sustentabilidade“, considera Cláudia Coelho.
Contudo, a partner da PwC alerta que ” a inexistência de requisitos de verificação sobre a informação referente às normas voluntárias pode levar à divulgação seletiva de informação e ao risco de greenwashing“.
A publicação das normas voluntárias é particularmente importante para garantir que a redução substancial do âmbito de aplicação não leva essas entidades a deixar de desenvolver proativamente as suas práticas de sustentabilidade.
Para a CIP, o corte de 80% no universo visado “irá proteger as PME de pedidos excessivos de informação” que lhes pode ser requerida no âmbito da cadeia de valor ou por parte de instituições financeiras. Com o Omnibus, as empresas com menos de 1.000 trabalhadores podem não prestar informação, protegendo-se do chamado “efeito cascata”.
“No entanto, o efeito cascata é precisamente o que assegura o impacto efetivo da regulação“, considera Madalena Perestrelo, pelo que “mitigar o efeito cascata equivale a mitigar o impacto”. Angela Lucas reforça que, com a redução do universo de empresas, “será inevitavelmente menor o impacto da diretiva”.
No que diz respeito à CSDDD, as obrigações de diligência devida ficam limitadas aos fornecedores diretos, pelo que “a proposta dilui significativamente os requisitos”, analisa a Macedo Vitorino. Também é eliminada a obrigação de cessação de contratos em caso de incumprimento, permitindo apenas a suspensão temporária e medidas corretivas. “Ao limitar a responsabilidade das empresas na cadeia de valor, a revisão da CSDDD pode diminuir a proteção dos direitos humanos e ambientais“, afirma Cláudia Martins.
A Macedo Vitorino aponta ainda que a proposta Omnibus restringe a aplicação obrigatória da Taxonomia apenas a empresas com mais de 450 milhões de euros de volume de negócios líquido, tornando o reporte opcional para as restantes. Além disso, introduz um limiar de materialidade financeira que isenta do reporte atividades que representem menos de 10% do volume de negócios da empresa.
Os prazos relaxam
Na interpretação da PLMJ, as alterações à diretiva de reporte não mexem com a obrigação das grandes empresas (com mais de 500 trabalhadores) publicarem um relatório de sustentabilidade em 2025. No entanto, o Omnibus permite que as empresas da categoria seguinte, ainda consideradas grandes mas menores que o primeiro grupo, apresentem este relatório apenas em 2028, quando antes o prazo era 2026. Para as PME cotadas, a proposta coloca como meta 2029, em vez de 2027.
Este adiamento “pode não ter um impacto material significativo e até pode promover um ajustamento regulatório mais suave“, concede Perestrelo, mas ressalva que esta opção “cria nas empresas dúvidas profundas” sobre se devem, entretanto, preparar-se para o reporte de sustentabilidade, já que não é claro que obrigações, após a revisão, lhes serão aplicáveis.
A CIP descreve o adiamento da CSRD como “um mal necessário”. As empresas que teriam de iniciar o seu reporte em 2026, relativamente a 2025, já investiram tempo e recursos na tarefa que agora poderá deixar de ser obrigatória, reconhece a entidade. Contudo, “qualquer investimento” de sustentabilidade “será benéfico”, já que permitirá às empresas “melhorar e tornarem-se mais resilientes”. Assim sendo, aquelas que iniciaram o processo estão melhor posicionadas no mercado, considera a associação.
Do lado da PwC, Cláudia Coelho considera positivo que as empresas às quais é permitido um adiamento tenham mais tempo para se preparar, para desenvolverem abordagens e estratégias mais robustas e melhorarem a qualidade da informação, criando mais valor para o negócio.
Olhando à CSDDD, o prazo de implementação foi adiado para julho de 2028, ou seja, um ano. Uma decisão que a CIP também acolhe “favoravelmente”. Além disso, a cadência com a qual as empresas deverão rever as medidas de diligência devida relaxam: a revisão será feita a cada cinco anos, em vez de anualmente.
Simplificação e harmonização, há. Mas muito em aberto
O pacote de simplificação da CSRD propõe rever os critérios gerais e descarta desenvolver os critérios setoriais, mantendo-se a avaliação de dupla materialidade — isto é, as empresas devem reportar de acordo com a materialidade financeira (a forma como os fatores ESG afetam as suas contas) mas também segundo a materialidade de impacto (a forma como as suas operações afetam a sociedade ao nível do ESG), explica Angela Lucas.
“Neste aspeto poderá haver simplificação, dependendo da forma como forem revistas as ESRS [Normas Europeias de Relato de Sustentabilidade]“, diz Perestrelo, assumindo que, dependendo das alterações, “essa revisão pode trazer maior clareza e segurança para as empresas”.
No que diz respeito à eliminação dos planos para a adoção de normas de relato setoriais, “pode estar a perder-se uma oportunidade de customizar as normas de forma a fazerem mais sentido face às particularidades de cada setor, o que até poderia facilitar o trabalho das empresas”.
Angela Lucas considera mesmo que “faz falta” a revisão das ESRS, de forma a reduzir significativamente o número de dados obrigatórios e priorizar os dados quantitativos em detrimento das descrições qualitativas. No entanto, no que diz respeito à eliminação dos planos para a adoção de normas de relato setoriais, “pode estar a perder-se uma oportunidade de customizar as normas de forma a fazerem mais sentido face às particularidades de cada setor, o que até poderia facilitar o trabalho das empresas”.
Alice Khouri alerta que, apesar da declaração de intenções, não foram apresentadas as bases e orientações dessa simplificação, “essencial para que se compreenda o que de facto será exigido no reporte”.
“Na prática, os diplomas abrangidos pela suposta simplificação não ficam mais entrelaçados, exceto pela aproximação do grupo de empresas que fica sujeito” às diretivas, afirma Khouri. Antes, a CSRD abrangia todo o tecido empresarial, ainda que de forma gradual e em diferentes horizontes temporais, e a CSDDD cingia-se às grandes empresas. Agora, a harmonização está no facto de se aplicarem ambas apenas às grandes empresas.
Na prática, os diplomas abrangidos pela suposta simplificação não ficam mais entrelaçados, exceto pela aproximação do grupo de empresas que fica sujeito.
Outra simplificação introduzida com o Omnibus foi eliminar a exigência de o reporte estar sujeito a uma garantia de fiabilidade razoável, a partir de 2028. Agora, é pedida unicamente uma garantia de fiabilidade limitada.
A exigência de uma garantia de fiabilidade limitada em vez de uma garantia de fiabilidade razoável é “positivo” na medida em que não implica “um aumento futuro de custos para as empresas abrangidas”, elogia a CIP. A advogada da PLMJ vê a decisão como “criticável”, eliminando-se desde já a hipótese de evolução para uma garantia de fiabilidade razoável numa fase mais madura de aplicação da lei.
No âmbito da CSDDD, a CIP considera que “muitas disposições permanecem de harmonização mínima”, e defende que deverão ser feitos maiores esforços para colmatar esta situação. Também acusa falta de clareza quanto à eliminação da obrigação de colocar em prática o plano de transição e eventual substituição por ações de implementação.
Já no que diz respeito à Taxonomia, na sequência da simplificação dos requisitos de reporte, existe “uma redução significativa da complexidade das tabelas de divulgação”, para cerca de dois terços, por parte de empresas não financeiras, assinala a SRS Legal. Os pontos de dados a reportar caem em quase 70%, diz a Macedo Vitorino.
Para as instituições financeiras, continua a mesma sociedade de advogados, serão simplificados os principais indicadores de desempenho, nomeadamente o cálculo do “Green Asset Ratio” (GAR). Também se reduz a complexidade dos critérios técnicos de avaliação da Taxonomia, simplificando a aplicação do princípio de “Do No Significant Harm” (DNSH).
Sanções ao critério de cada Estado membro
Ao contrário da CSDDD, que tinha estabelecido o valor mínimo para cálculo das sanções, a CSRD não entra neste detalhe, remetendo o tema ao esforço legislativo nacional, assinala Alice Khouri.
No âmbito da CSRD, cada Estado-Membro da UE tem o poder de definir, na transposição da diretiva, as sanções aplicáveis por incumprimento. Estas sanções, explica Angela Lucas, podem ser pecuniárias, mas também podem ser definidas sanções acessórias como a apresentação ou correção dos relatórios, determinar que seja dada publicidade à sanção, ou vedar o acesso da empresa à contratação pública.
Olhando àquilo que já está previsto no Código Comercial das Empresas em Portugal ao dia de hoje, a falta de cumprimento no relato de sustentabilidade sujeita as empresas às sanções aplicáveis quando há incumprimento de obrigações de transparência ou a divulgação de informações falsas, incompletas ou enganadores, indica Madalena Perestrelo. Adicionalmente, poderá haver responsabilidade civil da empresa e/ou dos administradores, no caso de serem provocados danos a terceiros.
Retornando à CSDDD, a Comissão Europeia quer eliminar a coima mínima de 5% do volume de negócios global com o Omnibus. “Esta alteração poderá ter um efeito pernicioso, uma vez que poderá levar à definição de coimas pelo valor mínimo, como forma de atração de empresas para a respetiva jurisdição“, alerta a Macedo Vitorino. Também cai a exigência de um regime uniforme de responsabilidade civil, o que pode criar as mesmas distorções.
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Do alívio à desregulação: os efeitos da revisão das regras ESG
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