Para Ricardo Reis, que então dava aulas em Nova Iorque, a queda do Lehman não foi surpresa, excepto talvez o timing: o que se seguiu é que deixou todos surpreendidos. "Essa semana é fascinante".
Onde estava quando o Lehman Brothers colapsou? Entre a Universidade de Columbia e a Fed de Nova Iorque, a dar aulas. O economista Ricardo Reis vivia nos Estados Unidos quando chegou o dia 15 de setembro de 2008, que marcou a década que se seguiria por ser a data da queda do Lehman Brothers, banco centenário que arrastaria consigo mercados financeiros e outras instituições ao longo das semanas, meses e anos que se seguiriam.
Embora alguns considerem que falhanço do Lehman foi uma surpresa, Ricardo Reis recorda que “desde a queda do banco de investimento Bear Sterns, seis meses antes, sabia-se que iam cair outros”. Que seria o Lehman Brothers o seguinte também não era grande mistério: o economista refere que cerca de um mês antes do colapso já era quase certo que este banco de investimento era o elo mais fraco. No entanto, a Reserva Federal dos Estados Unidos (Fed) não acreditava que as consequências desta queda fossem “brutalmente más”. Assim, a grande surpresa foi outra: com dimensões muito acima do esperado, os mercados começaram a ser derrubados em consequência da crise.
Em Nova Iorque, tanto com os seus colegas na Universidade de Columbia como junto da Fed de Nova Iorque, onde dava aulas, Ricardo Reis lembra as conversas perplexas na semana que se seguiu à queda do banco. “Essa semana é fascinante”, afirma. “Lembro-me exatamente dessas discussões”. Isto porque poucos dias após o colapso, era anunciado pelas autoridades que o Lehman Brothers não teria acesso a um bailout e porém a Fed decidiu, nessa mesma semana, resgatar a seguradora AIG. “Nunca nem tinha havido um bailout de uma companhia de seguros”, relembra Ricardo Reis. “Foi um dos maiores bailouts de sempre”.
Uma das questões que deixava Ricardo Reis e os seus colegas fascinados eram os comportamentos “completamente opostos” que partiam tanto da Fed como das autoridades nacionais, “juntamente com uma mudança radical de expectativas em termos de discurso”. Como assim? Passou-se de “ninguém se atrever a dizer que havia algo errado no mercado imobiliário” para um discurso de George W. Bush em que os investidores poderiam, diz Ricardo Reis, depreender um aviso dramático: “Foi literalmente — o mundo vai acabar amanhã”.
O que é que os políticos e reguladores aprenderam com a queda do Lehman? Para Ricardo Reis, é mais importante destacar uma das principais coisas que parece ter ficado por aprender. “A arquitetura da Zona Euro está altamente incompleta, em termos de segurança macrofinanceira. Já se sabia há 20 anos, mas decidiu-se ignorar”, explica. “O que aprendemos com a crise é que não se podem ignorar estes problemas de arquitetura”.
No entanto, na Zona Euro o ímpeto das mudanças está a perder-se. “Fizemos bastantes mudanças, mas agora, por impedimentos políticos, voltamos a escolher ignorar o assunto. Sujeitamo-nos a uma nova crise”, avisa o economista. “Na última cimeira europeia, os temas da reforma da Zona Euro, em termos de organização dos mercados financeiros, da política monetária europeia, que estavam na mesa para esse encontro há mais de um ano, estavam na agenda uma série de questões que, de certa forma, só interessam aos especialistas. Mas na última reunião falou-se zero da Zona Euro“.
O herói da crise da Zona Euro, conclui o economista que atualmente leciona na London School of Economics, no Reino Unido, é o Banco Central Europeu. Os bancos centrais são as instituições mais sensatas e com a visão de mais longo prazo, mais equipados para reagir a estas questões, acrescenta.
O que podia ter sido feito antes? “Muita coisa”
Ricardo Reis aproveita ainda para refletir, com o dom da retrospetiva, sobre o que poderia ter sido feito antes de a crise espoletada pelo colapso do Lehman Brothers se tornar irreversível. E não são poucos os exemplos que dá daquilo que poderia ter prevenido uma expansão tão descontrolada dos problemas macrofinanceiros.
Desde logo, recua até ao ano 2000. “Podíamos ter reagido mais rapidamente à expansão do crédito”, e ter implementado medidas que limitassem a concessão de crédito, para controlar este crescimento, em especial na subida de preços do imobiliário.
Além disso, acrescenta, os bancos de investimento comportavam-se como bancos tradicionais, o que os deixava expostos a uma grande acumulação de risco. Em que sentido? O economista troca por miúdos. No sistema financeiro, um banco é uma instituição que faz investimentos de médio e longo prazo com financiamento de curto prazo — no caso de um banco tradicional, a instituição dá empréstimos à habitação, por exemplo, e financia-se com depósitos à ordem. Existe um risco, porque se os credores pretenderem levantar todo o dinheiro o banco colapsaria, mas existem medidas para prevenir esse risco.
"Podíamos muito mais cedo ter afirmado, com convicção, que não haveria bailouts, para não haver um choque tão grande. ”
No entanto, “uma mudança que surgiu desde o ano 2000 é que uma série de novos bancos”, que apelida de shadow banks, fossem bancos de investimento ou fundos de investimento, estavam a fazer empréstimos de longo prazo enquanto se financiavam com “overnight loans”, ou seja, créditos concedidos que deveriam ter retorno rápido mas que tinham também um grande risco de não serem cumpridos. “Hoje em dia tínhamos regulado de forma completamente diferente o sistema financeiro”, afirma.
Finalmente, hoje em dia existe uma perceção “muito melhor das interligações entre os diferentes pontos do sistema financeiro e a forma como o risco num setor se propaga e amplifica o choque”, acrescenta. “Na altura não sabíamos da importância destes pontos de risco. Hoje em dia medimos essas ligações muito afincadamente”.
A a 6 de setembro de 2008 (9 dias antes da queda do Lehman Brothers), o mundo era abalado por uma tragédia no Haiti após a passagem de quatro tempestades que tinham deixado a nação caribenha devastada. Na lusofonia, o Público olhava para Angola, onde se realizavam eleições que a enviada da União Europeia descreveu como um “desastre” — tanto a UNITA como a FNLA pediam mesmo a repetição destas eleições.
Por cá, o foco era outro. Na primeira página do Diário de Notícias, uma pequena chamada ressalvava a utilização do termo PIGS, que se tornaria de uso habitual, pelo Financial Times para falar de Portugal, Itália, Grécia e Espanha, os países mediterrânicos cujas economias apresentavam já na altura algumas das maiores fragilidades. Entre os temas habituais de setembro, como por exemplo o do regresso às aulas que valia manchete no Correio da Manhã, este jornal ocupava-se ainda do caso de Madeline McCann, a jovem britânica que desaparecera mais do que um ano antes, a 3 de maio de 2007.
O Lehman Brothers foi um dos dez bancos que, em 2003, se viram envolvidos num caso de litigância com a SEC, a homóloga norte-americana da CMVM. As empresas foram acusadas pelas autoridades de influenciarem as avaliações dos analistas — por um lado, ao prometerem cobertura de research favorável em troca de oportunidades de subscrição e, por outro, ao associarem o salário dos analistas às receitas do banco com o negócio do investimento. Os bancos acusados chegaram a acordos com a SEC e outros reguladores que resultaram em coimas num total de 1,4 mil milhões de dólares. Concretamente, este escândalo custou ao Lehman Brothers uma multa de 80 milhões de dólares. As autoridades obrigaram ainda as instituições financeiras a levarem a cabo reformas estruturais sólidas, como a separação completa entre os departamentos de research e de investimento.
Foi há 10 anos que o Lehman Brothers colapsou. O dia 15 de setembro marca simbolicamente o início da maior crise financeira dos últimos 80 anos. ‘Onde estava quando o Lehman faliu?’ é uma rubrica diária, de 1 a 15 de setembro, onde empresários, banqueiros, políticos, economistas e advogados dizem ao ECO como viveram a queda do banco e o que aprendemos com a crise.
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Lição (des)aprendida com o Lehman? “Problemas de arquitetura do euro estão a ser ignorados”, alerta Ricardo Reis
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