Foi um dos maiores danos colaterais da queda do Lehman, mas o colapso do BES não mudou o sistema financeiro, diz Mariana Mortágua. O regulador continua a ser mais cúmplice do que supervisor, acusa.
Onde estava quando o Lehman Brothers faliu? Mariana Mortágua não se lembra. Corria o ano de 2008 quando, a 15 de setembro, esse gigante norte-americano ruiu. Mortágua tinha 22 anos e andava a terminar a licenciatura em Economia no ISCTE. “Tenho pouca memória [desses tempos]”, conta ao ECO a agora deputada. Até porque, diz a bloquista, o impacto da crise que acabara de explodir só daria à costa “mais tarde”, deste lado do oceano.
“A queda do Lehman Brothers foi um marco na falência de um sistema financeiro que, ao longo das décadas a partir dos anos 70 e 80, foi cada vez mais desenvolvendo atividades especulativas e criativas“, sublinha a economista. Não é que a especulação fosse um exclusivo ou uma novidade deste período, reforça, mas desta vez tinha vindo a acontecer num ambiente “completamente liberalizado”, “altamente alavancado” e sem “nenhum tipo de regulação”, o que se revelou uma verdadeira receita para o desastre.
Segundo defende Mariana Mortágua, foi assim que se deu a incubação da crise mundial de 2008, considerada pelos especialistas a pior dos últimos 80 anos. O colapso do Lehman Brothers colocou rapidamente o holofote na fragilidade do sistema financeiro global, levando os Governos a lançar operações de apoio aos seus bancos, o que envolveu muitos milhares de milhões de fundos públicos e abriu caminho à crise das dívidas soberanas na Zona Euro.
O que vimos depois é que pouco ou não aconteceu. Houve muitas regras a mudar, mas no âmago do funcionamento do sistema financeiro nada mudou e, aliás, olhamos hoje para os níveis de alavancagem e vemos que está tudo igual.
Dez anos depois, destruídos milhares de empregos, empresas e sonhos, como se transformou o mundo e que lição brotou desses tempos complicados? “Nada mudou”, sentencia a deputada.
“Houve uma primeira reação relativamente à crise financeira de modo a legitimar o sistema”, reconhece a bloquista, que logo acrescenta: “O que vimos depois é que pouco ou não aconteceu. Houve muitas regras a mudar, mas no âmago do funcionamento do sistema financeiro nada mudou e, aliás, olhamos hoje para os níveis de alavancagem e vemos que está tudo igual“.
E essa sobrevivência dos padrões característicos do início do milénio pode tornar-se num sinónimo da repetição dos tempos negros de recessão, antecipa a economista.
“Queda do BES não teve efeito moral sobre a economia”
Mariana Mortágua chegou à Assembleia da República em plena tempestade. A estreia da economista deu-se em 2013, com a crise como cenário. Só um ano depois, no âmbito do inquérito parlamentar à gestão do Banco Espírito Santo, é que viria, no entanto, a saltar para a ribalta.
“O BES era um grupo que há muito vivia da canibalização de outras empresas”, explica a deputada, salientando que em causa estava o “último dos conglomerados mistos”. “Toda a sua estrutura assentava na circulação de fundos através de esquemas fraudulentos”, lembra.
Mariana Mortágua reconhece que a crise que assolava o resto do mundo fez tremer a banca nacional — já que essas instituições “tinham balanços frágeis”, que exigiam “uma economia em permanente crescimento” — mas sublinha que o BES foi um caso inteiramente “particular”.
O Banco de Portugal, enquanto supervisor, tem sido aquele cuja incompetência tem sido mais visível.
Pior, apesar de barulhenta, a queda desse gigante pintado de verde não serviu para mitigar o tipo de “más práticas” que a motivaram. “A queda do BES não teve um efeito moral sobre a economia”, reforça a bloquista, considerando que a vida dos que sobreviveram segue, enfim, business as usual.
Além disso, acrescenta Mortágua, a regulação sofreu apenas uma “mudança paliativa” que não mudou o coração do negócio, isto é, o objetivo máximo continua a ser o de remunerar os acionistas… custe o que custar.
“O Banco de Portugal, enquanto supervisor, é aquele cuja incompetência tem sido mais visível”, nota ainda a economista. A parlamentar acusa mesmo essa instituição de manter uma cultura de cumplicidade com o setor bancário, e não de supervisão, o que se tem tornado num “problema sistémico”.
Nova crise no horizonte?
Mariana Mortágua não está apenas certa de que a crise que, simbolicamente, foi desencadeada pela derrocada do Lehman Brothers não fez aprender as lições que deveria ter ensinado; está também confiante na repetição dessa história. Isto porque “as políticas não mudaram o suficiente”.
Exemplo dessa teimosia, adianta a bloquista, tem sido a atitude descomprometida do Executivo de António Costa para com a bolha imobiliária que atualmente Portugal enfrenta, mesmo perante essas lições que deveriam ter ficado da derrocada mundial provocada pela especulação norte-americana. “Não há vontade nenhuma do Governo em controlar essa bolha, porque há crescimento económico e não o queremos travar”, critica a deputada, deixando um aviso: “Mais tarde ou mais cedo, essa bolha terá consequências”.
E quanto à máxima que catalisou todo o entusiasmo tóxico do início do século — “se tem pulsação, nós damos-lhe crédito” — Mariana Mortágua aproveita para reforçar: “É preciso garantir que os fluxos financeiros estão a ser direcionados para atividades produtivas. Até agora não houve muito essa preocupação”.
A 4 de setembro de 2008 (11 dias antes da queda do Lehman Brothers), o mundo, e Portugal não era exceção, estava de olhos postos nas eleições legislativas angolanas. O comício de encerramento de campanha do MPLA, em Luanda, aparecia com grande destaque nas capas dos jornais nacionais, que adiantavam mesmo que o partido de José Eduardo dos Santos deveria garantir a “maioria absoluta”. Na altura, o MPLA acabou por conquistar 81,76% dos votos.
Dez anos depois, José Eduardo dos Santos prepara-se agora para “resolver” a liderança do partido, no congresso extraordinário, que acontecerá esta sexta-feira, dia 7 de setembro. A reunião acontecerá numa altura em que muitos criticam a bicefalia do poder em Angola entre João Lourenço (vice-presidente do partido e chefe de Estado) e José Eduardo dos Santos (presidente do partido e ex-chefe de Estado).
Na política lusitana, os títulos nacionais destacavam o apelo do então Presidente da República, Cavaco Silva, de que se atribuíssem mais verbas à rede diplomática e consular, no âmbito do Orçamento do Estado para 2009.
Na imprensa especializada, sublinhava-se que, dos 21 milhões de euros que o Estado tinha gasto com salários em atraso da responsabilidade de empresas falidas ou em situação económica difícil, só seria possível recuperar 5%. Mais de 3.700 trabalhadores já tinham recorrido ao Fundo de Garantia Salarial em 2008, o que já deixava perceber que nem tudo estava bem.
Cristiano Ronaldo também estava nas primeiras páginas. A então diretora do Manchester City, Amanda Staveley, tinha, por estes dias, como alvo o futebolista português. Isto depois de já ter adquirido o brasileiro Robinho. Staveley acabou por não concretizar o seu desejo.
Uma das primeiras pessoas a reconhecer a iminência da crise financeira foi Michael Burry, criador do hedge fund Scion Capital. Depois de analisar os créditos hipotecários entre 2003 e 2004, Burry previu corretamente que o mercado imobiliário estava prestes a colapsar. Convenceu várias instituições financeiras, incluindo o Goldman Sachs, a criarem produtos que lhe permitiram apostar contra este mercado (os chamados CDF, ou credit default swaps), uma atitude ousada que, antes de as suas previsões se tornarem realidade, resultou na revolta de muitos dos clientes da Scion Capital. Quando se deu o colapso e a crise financeira foi acionada, Burry recolheu uma mais-valia pessoal na ordem dos 100 milhões de dólares. Os clientes da Scion Capital conseguiram uma mais-valia total próxima dos 725 milhões, de acordo com a Vanity Fair. A história serviu de base ao filme The Big Short, lançado em 2015, do realizador Adam McKay.
Foi há 10 anos que o Lehman Brothers colapsou. O dia 15 de setembro marca simbolicamente o início da maior crise financeira dos últimos 80 anos. ‘Onde estava quando o Lehman faliu?’ é uma rubrica diária, de 1 a 15 de setembro, onde empresários, banqueiros, políticos, economistas e advogados dizem ao ECO como viveram a queda do banco e o que aprendemos com a crise.
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