Os bancos portugueses estão a acelerar a venda de ativos problemáticos. E têm mesmo de o fazer, até porque ainda há mais de 30 mil milhões para “limpar”. É muito trabalho, também para os advogados.
Pedro Cassiano Santos ainda se lembra dos contratos que a Vieira de Almeida redigiu há mais de dez anos em conjunto com as equipas da Lehman Brothers e da Finsolutia. Esses contratos, com vista a aquisição e gestão de tudo o que era carteira de malparado em Portugal, ainda hoje servem de referência nos processos de compra e venda destes ativos tóxicos.
Aquelas minutas datam dos anos de 2005 e 2006, quando o banco de investimento norte-americano “secou” por completo o mercado português de NPL (non performing loans), comprando tudo o que havia para comprar antes de falir em 2008. Mas elas “ainda hoje funcionam como template”, conta o advogado à Advocatus.
O tema do malparado não é novo, como se percebe, mas tem vindo a conhecer um grande dinamismo nos últimos tempos. Com os bancos portugueses em velocidade de cruzeiro para baixarem a sua exposição a ativos que não geram rendimento, como créditos que estão em incumprimento há meses, imóveis como casas, escritórios ou terrenos e até participações sociais que lhes caem nas mãos como “batatas quentes”, uma parte importante deste processo de desinvestimento tem passado pelos advogados.
Só no último ano, o mercado de NPL em Portugal atingiu os oito mil milhões de euros, de acordo com os dados compilados pela Debtwire. Muito? Os bancos italianos venderam mais de 100 mil milhões de euros destes ativos. Os espanhóis mais de 40 mil milhões, por exemplo.
Não se prevê um travão no mercado tão cedo, na medida em que os reguladores europeus continuam a exigir um maior esforço sobretudo a quem está mais exposto a este risco, como é o caso da banca portuguesa. Mais de 30 mil milhões de euros em NPL continuam a figurar nos balanços dos bancos nacionais, correspondendo a mais de 10% do stock de crédito, diz o Banco de Portugal. Isto compara com uma média de 3,6% na Europa.
Transações de NPL por país em 2018
Fonte: Debtwire
E, embora não seja um número oficial, quem está no mercado não ignora a meta de 5% que bancos terão de cumprir nos próximos anos. Há várias vias para a redução desta exposição, tais como a recuperação do crédito. Mas tem sido através das vendas de grandes carteiras de NPL que a banca nacional tem percorrido este “caminho das pedras”. Mas, afinal, como se processa?
A arte de bem vender
Geralmente, é o banco que chega à conclusão de que quer vender ativos problemáticos ou tóxicos que estão no seu balanço a “consumir” capital. Poderá tomar essa decisão com a ajuda da equipa de auditoria (ou até dos reguladores) e nomeia um arranger (normalmente um banco de investimento) para sondar o mercado. Outras vezes, o banco decide-se pela venda após ter sido contactado diretamente pelo investidor, que mostra apetite por estes ativos.
Para já, apenas Caixa Geral de Depósitos e Novo Banco anunciaram que vão vender mais carteiras este ano, mas a tendência de redução do nível de malparado é transversal ao setor. Paulo Macedo, presidente do banco público, revelou que se prepara para vender cerca de 1.000 milhões de euros em malparado ainda no decorrer de 2019. O banco liderado por António Ramalho já está a sondar o mercado para alienar 3.300 milhões destes ativos problemáticos do antigo BES.
Em ambos os casos, identificados os ativos, é preciso começar a preparar aquilo que é designado por data tape, uma espécie de folha de Excel com as informações relevantes e anonimizadas sobre a composição da carteira e que será fornecida aos potenciais investidores, onde se incluem as sociedades de servicers e de recuperação de crédito que vão fazer a gestão mais ativa da carteira.
É neste ponto que os advogados entram no terreno, seja do lado vendedor ou do lado comprador: fazer a due dilligence da carteira, ou seja, uma análise aos elementos que constam no data tape tais como a situação dos devedores (em processo de insolvência, em processo especial de revitalização, execução), a graduação do crédito (se existem créditos privilegiados, direitos de retenção, por exemplo) ou garantias associadas.
Diogo Leónidas Rocha, que ainda no final do ano passado fez parte da equipa da Garrigues que prestou apoio jurídico ao Novo Banco na venda de uma carteira de 8.700 imóveis avaliados em 717 milhões de euros, compara este processo de due dilligence ao trabalho de filigrana, minucioso e paciente nos detalhes, até porque é com base nesta análise que o investidor vai perceber quanto dinheiro poderá recuperar. E quando.
“Advogados e servicers dos potenciais interessados realizam uma auditoria o mais extensa possível aos ativos. Basicamente, os investidores definem um algoritmo que lhes permite melhor avaliar o portefólio, tendo em conta diversos fatores como o custo de recuperação, potencial de recuperação, o tempo de recuperação expectável do crédito. Sem dúvida, tempo aqui é dinheiro”, diz.
Tiago Correia Moreira, associado da Vieira de Almeida, lembra que os bancos começam a apresentar teasers cada vez mais sofisticados, isto é, convites para atrair potenciais investidores que contêm cada vez mais informação, como tendências do mercado, que valorizam a própria carteira. “É como colocar uma carteira numa montra: se eu for um banco, vou quer torná-la mais atrativa”, completa Pedro Cassiano Santos.
Como no vinho do Porto, malparado vintage vale mais
Se o malparado é aquilo que Pedro Cassiano Santos chama de “maçãs podres do cesto”, há ativos tóxicos que são mais valiosos do que outros. Por exemplo, um crédito em incumprimento cujo ano de originação é mais antigo tem mais valor do que um mais recente porque é maior a incidência de default nos primeiros anos do que quando um devedor já pagou uma boa parte do empréstimo.
No mercado, esse malparado chama-se vintage e é o fruto mais apetecido dos investidores. “É como o vinho do Porto, também aqui o vintage é importante”, diz o sócio da Vieira de Almeida.
De alguma forma, a composição do tal cesto de malparado ajuda a determinar quanto tempo um processo deste tipo pode durar. Ainda assim, é geralmente o tipo de venda que mais influência tem nos timings: uma operação direta é geralmente mais curta porque envolve menos intervenientes; havendo uma titularização da carteira para venda ao público, demora-se mais tempo a concluir uma transação porque a emissão precisa um rating atribuído a uma agência e tem de haver contactos regulares com a CMVM por causa do prospeto que dá luz verde à operação.
Maiores negócios de malparado em Portugal em 2018
Cada venda pode, assim, demorar tanto uma semana como um ano ou mais a ficar fechada, sendo cada passo acompanhado pelas equipas jurídicas, independentemente da duração do processo.
Numa operação mais complexa podem chegar a trabalhar em conjunto três dezenas de juristas, somando os que estão do lado do vendedor, comprador (investidor e servicer), arranger e agência de rating. E são várias as equipas chamadas a intervir: mercado financeiro, contencioso, imobiliário, fiscal, privacidade.
Embora o mercado português venha a registar volumes nunca vistos, na Garrigues e na Vieira de Almeida isso não se traduziu num reforço dos quadros, mas antes em maior cooperação entre os vários departamentos.
Comprar de olhos fechados
Do lado vendedor, são os advogados que redigem as cartas de confidencialidade e elaboram o programa do concurso, isto é, todo o calendário programático da operação: quando é suposto o banco receber as ofertas non bidding com preço indicativo, quando se passa a uma fase de negociação com uma short list de dois ou três concorrentes e quando se entra na fase de exclusividade e a data para receber a bidding offer. Caberá ao lado vendedor negociar.
Quando se está na fase da proposta firme, já deve estar em cima da mesa o contrato de compra e venda (SPA, sale and purchase agreement) da carteira que oficializa a cedência desses ativos a outra parte por determinado preço. E aí chegamos, finalmente, ao chamado closing.
Diogo Leónidas Rocha conta que esta última etapa “requer uma intervenção mais intensa” da parte dos advogados. É aqui que são discutidos todos os detalhes da operação de cedência dos ativos, como substituição das partes nos processos judiciais em curso, as representações e garantias, entre outros aspetos. E ninguém quer deixar uma ponta solta.
A evolução verificada no ecossistema, nos últimos anos, faz com que essa “ponta solta” não exista, dando garantias de qualidade tanto a quem vende como a quem compra. “Temos um mercado vivo e sofisticado e que está a par das tendências e sabe quais são os problemas. Consegue ligar com o investidor que vem de Nova Iorque e que só quer saber quanto é que tem de investir, não quer estar preocupado com a negociação do SPA”, remata Tiago Correia Moreira.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Nas mãos dos advogados, malparado transforma-se em filigrana
{{ noCommentsLabel }}