• Especial por:
  • Gonçalo Aguiar

Exclusivo O que causou o apagão? A inércia (mas não a que pensam)

Não foram os 71% de produção renovável que causaram o apagão, este fenómeno não foi inédito em Espanha nem em Portugal. Se houve inércia responsável pelo apagão, foi a inércia política e regulatória.

Nos dias que seguiram o apagão de dia 28 de abril, não houve falta de especialistas nas televisões e redes sociais (LinkedIn e X, ex-Twitter) a darem a sua opinião com base na informação que ia chegando. A primeira peça do puzzle seriam oscilações de frequência na rede que aconteceram durante a meia hora anterior ao incidente que ocorreu às 12h33 (hora de Espanha). A rede elétrica que pulsa 50 vezes por segundo (50 Hz), estava com arritmia.

Simultaneamente, outros especialistas apontavam o dedo a “fenómenos atmosféricos raros”, como por exemplo nuvens que causaram uma quebra na produção solar fotovoltaica no sul de Espanha. Outros defendiam a tese da falta de inércia cinética, que faz com que pequenas variações na produção levem a grandes quedas na frequência: uma espécie de bradicardia (coração lento) da rede.

Muito cedo se descartou a possibilidade de ciberataque, apesar da associação SolarPower Europe ter publicado, por coincidência no dia seguinte ao apagão, um estudo que enumera os riscos de cibersegurança de pequenos sistemas solares distribuídos. Nesse mesmo dia, e a propósito do solar distribuído, a Bloomberg noticiou que mais de 10 GW de solar de pequena dimensão, eram totalmente desconhecidos pela Red Eléctrica de España (REE), a entidade que gere a rede de transporte e o sistema elétrico espanhol. Estes estariam “escondidos” atrás dos contadores, correspondendo a cerca de um não negligenciável terço da capacidade solar espanhola conhecida.

Mais tarde, com mais dados, confirmou-se o comunicado oficial do dia do apagão: ocorreram oscilações anormais de tensão na rede, nomeadamente sobretensões (tensões muito elevadas), imediatamente antes do colapso do sistema.

A tensão na rede pode ser imaginada como a pressão na rede de gás. Pressões muito elevadas podem causar ruturas nas canalizações que não estão desenhadas para as suportar. Pressões muito baixas não permitem o gás fluir. O mesmo acontece com a tensão na rede elétrica: muito elevadas ou muito baixas e os equipamentos elétricos podem-se danificar ou deixar de funcionar.

Na semana passada, o governo espanhol publicou um relatório preliminar sobre o apagão, detalhando muitos dos eventos que ocorreram na rede nas horas anteriores ao colapso do sistema, incluindo as manobras realizadas na rede pela REE. Este relatório é muito extenso, um documento de 182 páginas, mas por questões de confidencialidade o governo espanhol foi obrigado a ocultar muita informação (ex: nomes de instalações), havendo secções inteiras marcadas a preto. A REE também publicou um relatório mais sucinto, com 21 páginas. Ambos os documentos focam-se em pontos diferentes da análise de causas, mas no cômputo geral convergem nas conclusões.

Ao contrário do que alguns especialistas afirmaram inicialmente, segundo os dois relatórios, a causa do apagão não foi uma nuvem nem um evento isolado, mas sim um conjunto de falhas distintas em vários elementos da rede. Importa referir que estes dois documentos, bem como toda a restante informação disponível, serão durante os próximos meses analisados por experts independentes e pelo comité da ENTSOE, que produzirá o seu primeiro relatório a 28 de outubro de 2025.

Havendo ainda factos por apurar, em parte por questões de sigilo, e à luz do que se sabe à data de hoje, as causas do apagão dividem-se em três grandes grupos de falhas: técnicas, humanas e políticas.

Condições iniciais

Antes de descrever o que falhou, importa referir as condições em que o sistema ibérico operava no dia do apagão:

  • Minutos anteriores ao apagão, 71% da produção espanhola de eletricidade era oriunda de fontes renováveis sem obrigação de controlo dinâmico de tensão (solar, eólico e resíduos, ver Figura 3). Esta quantidade de produção renovável não é inédita, tendo sido ultrapassada mais vezes durante Abril, mas corresponde certamente a um cenário raro até à data do apagão (ver Figura 4).

  • Apesar da REE no seu relatório indicar que a rede encontrava-se numa configuração estável às 12h00 (hora de Espanha), desde o início da manhã (9h00) que se observavam oscilações de tensão para além dos valores nominais (ver Figura 2 e Figura 5). Episódios de sobretensões com bastante relevância já tinham ocorrido na rede nos dias 16, 22 e 24 de abril, e a sua frequência têm aumentado de forma significativa desde 2021.

  • Metade da capacidade de produção convencional preparada para fazer regulação dinâmica de tensão estava inoperacional, a maioria em manutenções programadas. Estas são normais durante o período da primavera, que é caracterizado por baixos consumos.
  • Às 12h30 (hora de Espanha), apenas 11 geradores estavam a realizar regulação dinâmica de tensão na Espanha (8 centrais a gás, 4 nucleares e 1 a carvão), com predominância a norte do território. Este era o número de centrais térmicas acopladas ao sistema mais baixo desde o início do ano. No mês seguinte ao apagão a REE despachou em média 24 geradores para esse efeito.

Falhas técnicas:

  • Oscilações de frequência (como mostrado na Figura 1) não são invulgares na rede elétrica europeia. São causadas quando sistemas de controlo automáticos espalhados pelo continente “lutam” uns contra os outros. No entanto, as oscilações reportadas às 12:03 e 12:19 apresentavam uma pegada distinta das já conhecidas no sistema europeu.

Ambos os relatórios apontaram que um parque solar fotovoltaico na zona de Badajoz exibia um comportamento anómalo, sendo a alegada razão pelo aparecimento destas oscilações. Várias notícias apontam para o parque de 400 MW Núñez de Balboa da Iberdrola.

Existem procedimentos para amortecer estas oscilações, como por exemplo, ligar linhas de muito alta tensão em anel (ou malha, ver Figura 6), permitindo maior fluidez de fluxos de potência.

 

Foi o que a REE fez: Ligaram 10 linhas de muito alta tensão para amortecer as oscilações. Sabendo que as oscilações são características de um sistema elétrico europeu conectado, a REE decide também reduzir as exportações programadas para França.

O problema é que ligar linhas adicionais, tal como reduzir as exportações, têm um efeito secundário de aumentar a tensão do sistema e de o tornar mais inflexível ao controlo de tensão, ou seja, é preciso mais esforço de regulação para obter os mesmos resultados.

  • Ambos os relatórios referem, mas sem mostrar evidências ou explicação detalhada, que cerca de 22% dos produtores de energias renováveis não cumprem os requisitos de regulação de tensão estática, especialmente quando produzem muito abaixo (em média 11%) da sua capacidade máxima. Ironicamente isto é o contrário do que seria de esperar num dia de muito sol como o dia do apagão, em que em média as centrais solares produziam 67% da sua capacidade.

A REE opera a rede com a espectativa que estes produtores tenham uma determinada resposta às sobretensões que, segundo a REE, alegadamente não se verificou na totalidade. Isto poderá ter exacerbado o problema das tensões altas.

  • Os dois relatórios também descrevem que quase totalidade dos produtores convencionais (não renováveis), que estavam responsáveis por fazer regulação de tensão dinâmica (os 11 mencionados anteriormente), também não cumpririam com as obrigações regulamentares. Uma vez mais os dois relatórios não apresentaram nenhuma evidência ou justificação que suporte esta tese.
  • Perante a escalada da tensão, algumas instalações de produção de energia renovável desconectaram-se automaticamente pela atuação das suas proteções de sobretensão. Estas instalações localizam-se predominantemente a sul do território espanhol, precisamente onde escasseava controlo dinâmico de tensão (ver Figura 7). As proteções de sobretensão existem para proteger os equipamentos dessas instalações, e acionam automaticamente após a tensão passar um certo valor que está regulamentado. O problema é que várias instalações se desligaram após observado um valor de tensão abaixo do requisito do regulamento. Também se observaram instalações a desligarem-se muito rapidamente, e não após 1 hora, como está regulamentado. Cada instalação que saiu da rede significa menos capacidade da rede regular a tensão, exacerbando o problema e aumentando ainda mais a tensão, fazendo com que outras instalações se desconectem por atuação das respetivas proteções. A subida da tensão torna-se assim autossustentada: uma reação em cadeia.

  • A REE reporta no seu relatório um aumento súbito do consumo de cerca de 800 MW a nível nacional durante esta fase. Suspeita-se que este aumento tenha origem em consumidores com sistemas de autoconsumo, cujos equipamentos fotovoltaicos se desligaram, uma vez mais, devido a sobretensão. Este aumento de consumo, não só fez reduzir ainda mais as exportações para França, contribuindo uma vez mais para o aumento da tensão, mas também revela um problema muito maior. A REE não dispõe de suficiente observabilidade sobre pequenas instalações de autoconsumo, que todas juntas podem ter um grande impacto na rede. A própria REE no seu relatório admite isso ao propor como medida corretiva aumentar essa observabilidade. Isto também confirma a notícia da Bloomberg, referida no início deste artigo, que revelou os 10 GW de solar “escondidos”.

Todas estas falhas de produtores renováveis resultaram num acumular de défice de produção em relação ao consumo, o que faz a frequência da rede começar a descer abaixo dos níveis operacionais. Note-se que estando a rede malhada (em anel) era impossível circunscrever o problema a uma região apenas, toda a Espanha sentia os problemas de sobretensão. Quando a frequência desce abaixo dos 48.8 Hz, ativam-se automaticamente proteções que desligam consumo para restabelecer o equilíbrio entre o consumo e a produção. E claro que – o leitor já deve estar a adivinhar – desligar consumo faz aumentar as tensões na rede. O sistema está agora irrecuperavelmente a segundos do apagão.

Falhas humanas:

  • Às 14:43 do dia anterior ao apagão, a REE tinha considerado necessário programar uma central a gás na zona do sul de Espanha para regular tensão durante todo o dia do apagão. Mais tarde pelas 19h47 desse dia, essa central reportou uma avaria, ficando indisponível nos próximos 3 dias. Face a este imprevisto a REE decide não reprogramar outra unidade no sul de Espanha para todo o dia 28, deixando-a em reserva apenas até às 9h. A REE argumenta que não observou razões para colocar esta unidade ao serviço o dia 28 todo, pois não havia consumo que justificasse e as tensões estavam estáveis até as 9h00 desse dia. Os experts da INESTEC e Compass Lexecon, num relatório publicado esta semana, discordam desta tese e pedem mais clarificações.
  • Minutos antes do apagão (antes de se observar a escalada final de tensão), a REE ao perceber que precisava de mais geração convencional para amortecer as oscilações, requisita à central que tinha estado em reserva até às 9h00, para se religar à rede. No entanto esta demoraria 1 hora e meia a fazê-lo. Importa perceber porque é que a REE não optou por despachar centrais hidroelétricas que conseguem entrar na rede em apenas alguns minutos.
  • É fácil apontar o dedo aos operadores da rede. Mas há que considerar que, em incidentes desta natureza, os operadores são confrontados com um volume massivo de informação e alarmes, e têm de ser capazes de tomar decisões em minutos apenas, com base na sua experiência, apesar de nunca ter ocorrido um apagão destas dimensões. Operar a rede é em tudo semelhante à medicina, por vezes perante sintomas muito idênticos, está-se a lidar com patologias bastante distintas.

Será necessário aguardar a análise independente da ENTSOE para avaliar se houve falhas humanas anteriores ao apagão, para poder corrigir os procedimentos operacionais.

  • As proteções de sobretensão dos produtores estarem parametrizadas abaixo dos valores regulamentares pode ser intencional, correspondendo a uma estratégia para reduzir o risco de danos em equipamentos. Este tipo de comportamento em teoria de jogos é caracterizado por “desertor”: quando um agente privilegia maximizar o seu ganho individual em detrimento do coletivo. No entanto, este incumprimento dos regulamentos com bastante incidência aparenta ser um sintoma de um problema sistémico, e não uma causa.
  • A falta de cumprimento na regulação dinâmica de tensão pelos produtores convencionais poderá também ser intencional, pois este serviço nem sempre é remunerado e implica redução de receitas de venda de energia, mas com o mesmo desgaste dos equipamentos.
  • O relatório do governo espanhol expõe que muitos dos operadores de parques solares, que compraram a gestão dos ativos sem nunca terem participado na sua conceção, têm pouco conhecimento técnico profundo na gestão das suas redes e infraestruturas privadas. Isto torna o incumprimento com regulamentos mais provável.
  • Perante todas estas falhas, a REE, que tem acesso a todos os dados e a responsabilidade de garantir o cumprimento das regras, não detetou previamente os problemas generalizados que existem na rede espanhola e nos produtores.

Importa, portanto, perceber porque é que a REE não tem interesse em corrigir as falhas de cumprimento das normas por parte dos agentes ligados à rede.

Falhas políticas:

  • A REE aponta que estão por aprovar desde 2021 a atualização dos procedimentos de operação relativos aos serviços de controlo de tensão. Estes procedimentos adotam diretivas europeias e garantem que todos os produtores que tenham a capacidade de controlar a tensão em tempo real sejam obrigados a fazê-lo. Esta proposta de regulamento prevê também penalizações para eventuais incumprimentos. A aprovação deste regulamento é obviamente um problema político, pois corresponde a uma “mudança de regras a meio do jogo”, o que pode afetar a rentabilidade de alguns agentes. A aprovação de regulamentos, não só nesta área, é sempre um risco político que nem todos os governos estão dispostos a correr.
  • A pressão política para o cumprimento das metas de eletrificação e descarbonização, sem acautelar as necessidades técnicas da rede neste novo paradigma, não pode ser escamoteada. Todos os especialistas em redes elétricas há mais de uma década que têm alertado para este ponto.

Espanha e Portugal estão muito atrasados na integração de soluções tecnológicas que permitam dar mais estabilidade à rede, nomeadamente baterias (que podem entrar em segundos e não horas), compensadores síncronos e sistemas estabilizadores baseados em eletrónica de potência. Um sistema com grande integração de renováveis necessita destes equipamentos que já estão disponíveis comercialmente. Há que aprender com os exemplos da Califórnia e Austrália do Sul, com grande integração de renováveis, que já dispõem de capacidade instalada de baterias perto dos 20% da capacidade total, ao contrário de 0.05% na Espanha e 0% em Portugal.

O problema político centra-se na decisão a quem imputar o custo de instalação destes equipamentos, quando não são viáveis apenas nos mercados já existentes. Urge, portanto, criar novos mercados de serviços que incentivam geração convencional e não convencional (renovável) a participar na estabilidade do sistema e que penalizam “desertores”. Assim será possível alocar os recursos técnicos necessários de forma mais economicamente eficiente.

Conclusão

Perante as causas apontadas, é possível concluir que, contrariando alguns especialistas, não foram os 71% de produção renovável que causaram o apagão, pois este fenómeno não foi inédito no mês de abril e já é recorrente em Portugal há vários meses. Com níveis altos de produção renovável, cabe à REE, que é responsável pelo desenvolvimento e gestão da rede, garantir que há suficiente capacidade mobilizada de regulação de tensão.

Também não se pode culpar uma nuvem, nem a falta de inércia cinética na rede. Ambos os relatórios da REE e do governo espanhol descartam essas teorias. De facto, antes de se verificarem desconexões de produção por sobretensão, a rede dispunha de inércia suficiente e superior ao mínimo recomendado pela ENTSOE. Insistir em causas anedóticas é escamotear todos os outros problemas que existem na rede, e desviar as atenções de onde é preciso realmente corrigir e acelerar.

Se houve inércia responsável pelo apagão, foi a inércia política e regulatória.

  • Gonçalo Aguiar
  • Engenheiro Eletrotécnico

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