Um grito de revolta contra a cultura workaholic e a precariedade laboral ou uma necessidade de maior equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal?
Não se trata de ‘atirar a toalha ao chão’, de abandonar o emprego, nem mesmo de trabalhar, necessariamente, menos. Apenas fazer estritamente o estabelecido no contrato de trabalho e no horário contratualizado. O quiet quitting (ou despedimento silencioso, na tradução portuguesa) ganhou contornos de fenómeno global e é tudo menos silencioso. Será um grito de revolta contra a cultura workaholic e a precariedade laboral? A forma como as gerações mais novas, a ganhar espaço no mercado de trabalho, exigem um maior equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional? Os especialistas ouvidos pela Pessoas têm uma certeza: é a oportunidade perfeita para rever o modus operandi das organizações.
O psicólogo Nuno Cravo Barata não tem dúvidas de que estamos perante uma mudança de mentalidade sobre a forma como se olha para o trabalho. “Poderemos considerar o quiet quitting uma forma de expressão de uma revolta consciente contra a cultura laboral do trabalhar a qualquer custo e olhando, somente, para a produtividade, em detrimento do bem-estar”, considera. O trabalhador em quiet quitting “procura ter uma visão sobre a necessidade de trabalhar para viver e não viver para trabalhar”.
Falamos de profissionais que cumprem com suas obrigações e deveres, mas que optam por afastar-se do “aprisionamento de viverem para trabalhar”, descreve o psicólogo. Não se trata de abandonar o trabalho, mas de impedir que este interfira em todas as outras esferas da vida do colaborador. Desse ponto de vista, não se trata de uma ‘desistência’, mas de uma exigência do trabalhador. Mas, o que é que ele procura? “No fundo, um equilíbrio entre o profissional, o pessoal e o mental”, responde Mafalda Serralha, people & culture manager da Think Attitude.
“Há que olhar para este fenómeno como uma estratégia de ‘sobrevivência’, dentro da empresa, que poderá ter como base uma insatisfação, que é necessária ser identificada e entendida pela sua liderança”, alerta a gestora de pessoas.
Da “capa de proteção” contra o burnout…
Alguns especialistas falam de uma espécie de “capa de proteção” contra o burnout. “Na perspetiva da produtividade a todo o custo, assistimos a cada vez mais alterações psicoemocionais que potenciam a frustração no trabalho e alterações afetivo-laborais que conduzem, necessariamente, ao burnout. Nesta perspetiva, podemos assumir [o quiet quitting] como uma ‘capa de proteção’ impactante na dinâmica diária de trabalho”, refere o psicólogo da Clínica Dra. Rosa Basto.
Embora admita que já seja visível uma mudança do paradigma, Nuno Cravo Barata considera que continuamos a assistir a uma sociedade demasiado workaholic. “O trabalhar mais horas com privação da esfera pessoal, familiar e social foi sempre, de uma forma geral, o lema do profissional”, considera. Mas as consequências ao nível da saúde mental desse tipo de comportamento são “irreversíveis”.
Há que olhar para este fenómeno como uma estratégia de ‘sobrevivência’, dentro da empresa, que poderá ter como base uma insatisfação, que é necessária ser identificada e entendida pela sua liderança.
Foi em grande parte graças à pandemia da Covid-19, que implicou reestruturações significativas na dinâmica profissional, que a mudança começou. E, para o psicólogo, foi mesmo a introdução do trabalho híbrido que abriu a caixa de Pandora e promoveu fenómenos como o quiet quitting. “A presença de limites por parte do profissional e a possível renegociação de toda a jornada laboral incrementou, por si só, um bem-estar profissional que motiva estratégias de trabalho diferenciadoras, mas com grande efetividade de resposta laboral”, afirma.
… à reação à precariedade
Outra forma de olhar para o quiet quitting passa por identificar o fenómeno como uma reação dos trabalhadores à precariedade laboral. “Perante a sua insatisfação inerente às condições de trabalho, as pessoas não sentem qualquer envolvimento com a empresa e, portanto, cumprem aquilo que apenas está previsto”, sintetiza Mafalda Serralha.
Esta é a visão da socióloga Ana Paula Marques, que fala de um “contexto de precarização da vida, no geral”. “Sentimos uma exaustão até digital, que transfere para o contexto de trabalho com mais ênfase, porque ainda é o espaço onde nos confrontamos com a disciplina, um tempo em que estamos obrigados, de alguma forma. Não é só lazer ou prazer ou satisfação, mas é obrigação e disciplina. O trabalho tem esta ambivalência e, portanto, suscita em nós consequências muito diferenciadas para enfrentar estas mudanças muito rápidas”, comenta. O quiet quitting “prova, mais uma vez, que é importante pensar a relação de trabalho nas dinâmicas mais complexas das próprias transformações da sociedade”.
Olhando para os profissionais na casa dos 30 anos, a docente e investigadora da Universidade do Minho considera que, por força das transformações da economia e do próprio mercado de trabalho, esta geração é ainda herdeira de uma cultura de presentismo e de disponibilidade total para a empresa, no sentido de construir carreira. “É herdeira de um modelo de trabalho ainda transmitido, se calhar, pelos seus pais, e que tem muito a ver com uma sociedade fordista, uma sociedade de vínculos permanentes, estáveis, com perspetiva de construir uma carreira.” Mas, ainda que mostre maior inclinação para a vida profissional, é uma geração “um pouco entalada”. Porquê? “Porque é herdeira desse ideal, mas está há muito tempo no mercado de trabalho em contratos precários e em situação de incapacidade de construir essa carreira”, sustenta. Por mais que se disponibilizem e que trabalhem de forma intensa, muitos não conseguem ter um contrato efetivo numa empresa, nem um emprego correspondente à sua formação. “E estamos a falar de uma geração qualificada, que pode representar aqui uma parte significativa de constantes quebras de vínculos e descontinuidades de trabalho”, alerta a investigadora.
O trabalhar mais horas com privação da esfera pessoal, familiar e social foi sempre, de uma forma geral, o lema do profissional. Mas as consequências ao nível da saúde mental desse tipo de comportamento são irreversíveis.
A geração dos 20 anos, que tem ingressado no mercado de trabalho, pode estar à beira de uma situação de quiet quitting, fruto das poucas (ou nenhumas) perspetivas de carreira: salários ‘mileuristas’, cultura do ‘presencialismo’, horas extraordinários, que na prática, resultam num rendimento insuficiente para ambicionar um futuro independente da família. Segundo dados divulgados pelo Eurostat, o desemprego jovem em Portugal situa-se nos 15,9%, um valor que ultrapassa a média (13%) registada na União Europeia (UE). Entre as regiões, é a Madeira que tem a taxa mais elevada (21,1%), seguindo-se o Algarve (19,4%) e os Açores (17,2%). Na Área Metropolitana de Lisboa, a taxa é de 16,1%, enquanto nas restantes regiões do país ronda os 15%.
“A crise da Covid-19 e as medidas que lhe estão associadas tiveram um impacto desproporcional nos mais jovens no que toca ao desemprego”, lê-se no relatório divulgado pelo Eurostat, que diz respeito a 2021. De facto, durante o período de pandemia, todos os países da UE verificaram uma quebra na taxa de emprego dos mais jovens, a camada mais fortemente impactada pela Covid-19 no que toca ao emprego. Portugal ficou entre os países que maiores quebras sofreram em comparação com o período pré-pandemia, tanto no terceiro trimestre de 2020, como no mesmo trimestre de 2021.
Entre os jovens portugueses empregados, 35,5% recebiam o salário mínimo nacional, em 2020, segundo o Observatório do Emprego Jovem. Em 2007, essa percentagem era de cerca de 18%. E, contrariando a tendência geral, que mostra que o peso dos contratos sem termo tem vindo a subir no geral da população empregada por conta de outrem, nos jovens entre os 16 e os 24 anos há cada vez mais contratados a prazo. O aumento tem sido constante: 51,2% no primeiro trimestre de 2021, para 54,2% nos primeiros três meses de 2022, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE). Os contratados a prazo recebem em média menos 20% de salário líquido mensal.
Perante a precariedade – comum a outras geografias – um inquérito levado a cabo pela Robert Walters, com cerca de 450 respostas de vários países europeus, incluindo Portugal, conclui que quase metade dos jovens com menos de 30 anos pretendem fazer “o mínimo” para a sua função, caso os salários e o potencial de progressão de carreira permaneçam estáticos. Um comportamento que, embora não seja novo, pode ser perigoso. “Sempre houve indivíduos menos motivados no local de trabalho. No entanto, a verdadeira preocupação aqui é que, ao contrário daqueles poucos trabalhadores que tendem a ser conscientemente menos produtivos no trabalho, ‘desistir em silêncio’ é, muitas vezes, um ato subconsciente gerado por frustrações no trabalho”, explica Toby Fowlston, CEO da Robert Walters.
Além disso – e talvez seja esta a principal diferença entre esta geração e a que ronda os 30 anos – estes jovens não prescindem do seu bem-estar e saúde mental. “Atravessamos uma mudança que, creio, tem muito a ver com valores e com um conjunto de transformações mais subjetivas que estão a acontecer, que incluem, por exemplo, a ideia da felicidade e do bem-estar; a necessidade de trabalhar, mas também de participar em atividades lúdicas, como o desporto; a possibilidade reduzir a jornada de trabalho e ter tempo disponível para fazer aquilo que bem lhe apetece, com todo o direito”, comenta Ana Paula Marques.
Estes valores, considera a socióloga, mobilizam, sobretudo, a população mais jovem. “Querem poder conciliar o trabalho com outras atividades, têm projeções e até reivindicações de cuidados naquilo que se chama a responsabilidade social da empresa ou cultura organizacional. Valores de bem-estar, de prioridades na vida e até outras causas que mobilizam através das redes sociais, como a sustentabilidade, as questões climáticas e, agora, também a guerra”. E continua: “Há uma geração menos disponível a prescindir destes valores.”
Ignorar ou agir perante a insatisfação?
A braços com uma espécie de greve de zelo, os empregadores têm duas hipóteses: ignorar o fenómeno – e assumir os riscos – ou procurar entender os motivos para desenhar soluções. A primeira é a mais perigosa. “As empresas estão já há alguns anos a lidar com um fenómeno muito difícil, que é justamente reter o talento deste segmento da população”, alerta Ana Paula Marques.
Atravessamos uma mudança que creio que tem muito a ver com valores e com um conjunto de transformações mais subjetivas que estão a acontecer, que incluem a ideia da felicidade e do bem-estar; a necessidade de trabalhar, mas também de participar em atividades lúdicas; a possibilidade reduzir a jornada de trabalho e ter tempo disponível para fazer aquilo que bem lhe apetece, com todo o direito. Eles [jovens na casa dos 20 anos] querem poder conciliar o trabalho com outras atividades.
E perante o fenómeno, esta poderá ser a oportunidade para rever processos e olhar para o funcionamento interno da organização. “O quiet quitting poderá ser uma excelente ferramenta de gestão interna para repensar uma organização mais adaptada e adequada”, defende Mafalda Serralha, da Think Attitude. O cenário, na sua opinião, é esperançoso. “Uma gestão mais humanizada, proporcionar um equilíbrio pessoal e profissional aos seus trabalhadores, privilegiar e investir na saúde mental, proporcionar boas condições de trabalho e flexibilidade começa a ser uma preocupação e uma estratégia das organizações.”
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Quiet quitting. A oportunidade perfeita para olhar para dentro (e mudar) a organização
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