REPowerEU faz dois anos com “sucesso”, mas muito por fazer. E os preços não ajudam

A União Europeia atingiu vários objetivos do programa REPowerEU, sobretudo no que toca ao gás. Porém, serve sobretudo de pontapé para uma transição energética com ainda muitos desafios.

Em 2022, a guerra voltou à Europa, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Um dos danos colaterais foi a disrupção do sistema energético europeu, que era altamente dependente dos combustíveis fósseis russos. Como relatava a Comissão Europeia, num comunicado de 18 de maio desse ano, estes combustíveis passaram a ser usados como uma “arma política e económica”. O mesmo comunicado anunciava a resposta da Europa a esta situação: o plano REPowerEU, que completa dois anos este sábado.

Hoje, e em comparação com a realidade de 2022, encontra-se uma Europa com um grande salto na capacidade renovável e menos dependente dos combustíveis fósseis russos, em particular o gás. “Até à data, a UE atingiu com sucesso a maioria dos seus objetivos ambiciosos previstos no REPowerEU, e está no bom caminho para atingir os objetivos de médio e longo prazo”, escreve a Comissão Europeia, num resumo partilhado esta semana.

Os atores do setor da Energia, consultados pelo ECO/Capital Verde, concordam com a visão da Comissão Europeia de que os dois anos do REPowerEU foram, sobretudo, anos de sucesso na política energética europeia, mas não se mostram tão otimistas quanto ao médio e longo prazo. Até porque, alertam, o contexto mudou: o fator preço, que criou o sentido de urgência quando estava elevado, desceu a pique este ano.

A redação do programa [REPowerEU] é um sucesso“, considera Pedro Amaral Jorge, presidente da Associação Portuguesa de Energias Renováveis. Para o mesmo, as metas que foram definidas “estão no caminho certo, da descarbonização, da competitividade da economia e segurança energética”, mas, “na implementação concreta, estamos muito aquém do que precisamos“. “A Europa está a mover-se a um ritmo considerável, mas existem desafios e pode ser necessário mais“, reforça João Amaral, CEO da Voltalia em Portugal.

Apesar de fazer um “balanço positivo” e registar “impactos significativos e concretos” do REPowerEU, Nuno Ribeiro da Silva, consultor de Energia, concorda que este programa “é uma história inacabada”. “Acordámos tarde para a dependência energética da Europa, assim como para a descarbonização. Temos de ver os resultados como um processo em curso, em que estamos a correr atras do prejuízo”, remata.

"Acordámos tarde para a dependência energética da Europa, assim como para a descarbonização. Temos de ver os resultados como um processo em curso, em que estamos a correr atras do prejuízo.”

Nuno Ribeiro da Silva

Consultor na área de Energia

A meu ver o ritmo está bom, mas não pode ser perdido ou desacelerado“, entende Alice Khouri, responsável da área Legal na Helexia. A mesma indica que é necessário “acelerar a eletrificação e reduzir as emissões de metano, sem esquecer o reforço na rede, e aumentar consideravelmente a eficiência energética”.

"A meu ver o ritmo está bom, mas não pode ser perdido ou desacelerado.”

Alice Khouri

Responsável da área Legal da Helexia

Na mesma linha, António Vidigal, consultor da área da Energia e ex-CEO da EDP Inovação, refere que na eletricidade “as coisas têm avançado relativamente bem”. “Onde as coisas não têm corrido tão bem, na Europa e em Portugal, tem sido na eletrificação dos consumos, que é uma componente crítica da descarbonização. A descarbonização da nossa sociedade passa necessariamente pela eletrificação dos consumos”, considera.

"A Comissão Europeia já fez o seu papel. Agora há que incentivar a que os Estados Membros façam a transposição o mais rápido possível.”

Pedro Amaral Jorge

Presidente da APREN

Foram três os pilares apontados pela Comissão Europeia para sustentar o REPowerEU: poupança de energia, diversificação do fornecimento, aceleração do investimento em renováveis. Em paralelo, foram aplicadas sanções ao país comandado por Vladimir Putin, que incidiam, entre outros aspetos, sobre as importações de petróleo, carvão e gás de petróleo liquefeito. Para concretizar os desígnios do programa, foram mobilizados até 300 mil milhões de euros a partir de fundos europeus, sendo a principal fonte o Plano de Recuperação e Resiliência, mas também do montante amealhado com o Comércio Europeu de Licenças de Carbono. Conheça, abaixo, a evolução que se registou nestes últimos dois anos.

Menos gás usado, mais em reserva e de mais origens

Uma das principais vitórias, na opinião de Nuno Ribeiro da Silva, foi ter-se mobilizado a Europa, até aí “relativamente morna e distraída” em relação à segurança energética. O REPowerEU permitiu “resultados tangíveis” no que toca à diminuição da dependência dos combustíveis fósseis russos e do consumo de gás. “Foi um resultado bastante impressionante, quando se desconfiava de que fosse possível termos passado com uma certa calmaria os períodos de inverno“, assinala, reconhecendo contudo que as condições meteorológicas ajudaram.

No que diz respeito ao gás natural — incluindo o liquefeito –, enquanto em 2021 45% das importações tinham origem russa, estas passaram a pesar apenas 15% no ano passado. A compensar estiveram importações de outras origens, principalmente da Noruega e Estados Unidos, com o total a subir de 39% para 49% em 2023.

Para facilitar a compra de gás a novos fornecedores e a preços competitivos, a UE criou ainda, em abril de 2023, a AggregateEU, uma plataforma para compras conjuntas. Nas cinco rondas de negociação que existiram desde a criação, 43 mil milhões de metros cúbicos de gás já foram adquiridos através desta via. No caso de Portugal, empresas nacionais apresentaram uma procura de 0,04 mil milhões de metros cúbicos e abasteceram-se desta forma, suprindo assim 0,72% das necessidades de abastecimento em 2023.

Mas não bastava diversificar, era preciso reduzir as necessidades. A procura de gás natural caiu em 18% entre agosto de 2022 e março de 2024, poupando 125 mil milhões de metros cúbicos de gás. Na sequência, foi possível atingir o objetivo de ter as reservas europeias preenchidas em 90% em agosto de 2023, dois meses antes da data definida, o 1 de novembro de cada ano. Em 2024, a 1 de abril, as reservas europeias estavam nos 59%, um recorde para o final do inverno e quase o dobro do verificado, em média, entre 2016 e 2020, os 36%.

Tendo em conta as tensões geopolíticas que ainda se vivem, no passado mês de março foi emitida uma recomendação pelo Conselho Europeu para que os Estados-membros mantenham as reduções de consumo pelo menos até março de 2025.

Descer a dependência do gás russo, nesta medida, em apenas dois anos, é só de si muito positivo“, entende o CEO da Engie Hemera, Duarte Sousa, ressalvando, ainda assim, que os preços elevados do gás que se verificaram nos últimos anos, e que agora aliviaram, terão tido um papel relevante na redução do consumo.

"É importante não esquecer que as alterações no fornecimento de combustíveis fósseis pela Rússia, provenientes do conflito com a Ucrânia, incrementaram inicialmente os preços do gás e dos combustíveis, o que também foi um estímulo adicional para a eletrificação e para a diversificação da importação de gás natural liquefeito.”

João Amaral

CEO da Voltalia em Portugal

Em Portugal, foi adotado um Plano para a Poupança de Energia para 2022-2023, complementar às medidas estruturais já adotadas, o qual foi estendido até março de 2024. O consumo de gás em Portugal entre agosto de 2022 e janeiro de 2024 caiu 23%, acima da média europeia e do nível acordado, os 15%. A dependência energética de Portugal perante países terceiros decresceu da ordem dos 70% para os 59% em 2021. No que diz respeito às reservas, o país chegou a abril com estas preenchidas em 86,91%.

EPA/INGO WAGNEREPA/INGO WAGNER

Capacidade solar e eólica de vento em poupa

O REPowerEU coloca a aceleração da produção de energia limpa no centro dos esforços para aumentar a segurança energética e assegurar a descarbonização da economia”, indica a Comissão Europeia, que considera que as expectativas foram superadas. Em outubro de 2023, a União Europeia aumentou até ligeiramente a ambição para 2030: propõe-se a que 45% da energia consumida no Velho Continente seja de fonte renovável.

Entre 2021 e 2023, a capacidade instalada de energia solar aumentou 36% e a expectativa é que some mais 16% em 2024. Só em 2023, foram instalados 56 gigawatts de capacidade solar, que comparam com os 17 gigawatts extra de eólicas instalados no mesmo ano. Ainda assim, do total de 260 GW que estão já instalados, é necessário saltar para os 700 GW até 2030, de forma a cumprir com as metas europeias.

No caso da energia eólica, em 2023 a capacidade totalizava 221 gigawatts, e a contribuição para o mix energético subiu de 14 para 19%. “Os resultados do REPowerEU são notáveis”, comenta a associação do setor WindEurope, num comunicado. Já Portugal instalou cerca de 1,3 GW em 2023, atingindo um total de 18,4 GW de capacidade renovável.

A suportar este crescimento estão alguns pacotes europeus de medidas, como a Estratégia para a Energia Solar da União Europeia, de maio de 2022. Esta, no âmbito de alguns outros diplomas legislativos, introduziu por exemplo a obrigação de novos edifícios estarem preparados para acolherem painéis solares, a promoção de parcerias para desenvolver força de trabalho especializada e a criação de uma aliança que junta desde empresas até à academia, de forma a desenvolver esta indústria na Europa. A falta de mão-de-obra qualificada e mesmo não qualificada para servir a indústria renovável é um dos desafios que ainda se impõem, alerta o CEO da Engie Hemera.

"Se a rápida introdução de energias renováveis não for acompanhada pela eletrificação dos consumos a um ritmo semelhante, vai haver excesso de produção de eletricidade e os preços no mercado grossista irão afundar-se, desaparecendo os incentivos ao investimento.”

António Vidigal

Consultor da área de Energia

No caso da energia eólica, a Comissão lançou, em outubro passado, o Plano de Ação para a Energia Eólica, depois de a presidente Ursula von der Leyen ter alertado para os riscos de perda de competitividade face à China. A Comissão prometeu, neste âmbito, “proteger o mercado interno contra distorções comerciais”, mas também “facilitar o acesso ao financiamento” e “melhorar o desenho dos leilões”.

Por fim, a UE quer acelerar através de um licenciamento mais rápido. A simplificar a logística está a Plataforma de Desenvolvimento de Renováveis da União, lançada neste mês de maio, que reúne a principal informação em relação aos leilões que estão planeados em todo o bloco, “para aumentar a visibilidade e previsibilidade para toda a cadeia de valor”. Foram ainda emitidas recomendações sobre o desenho de novos leilões, sobre acelerar o licenciamento e a criação de áreas de rápida implementação.

Lusa

A ajudar esta missão está também o “Plano de Ação para as Redes”, de dezembro de 2023, sendo as redes essenciais para suportar a expansão. Portugal, avalia a Comissão Europeia no balanço que faz dos dois anos de REPowerEU no país, “é um dos Estados-membros que mais precisa de soluções de flexibilidade e armazenamento”, tendo para já uma capacidade de interconexão de apenas 13,2%.

Eficiência com passos relevantes

Tal como no caso do gás, também nas restantes fontes energéticas, além de se procurar mais capacidade, procurou-se poupança. O consumo final de energia em 2022 caiu para 940 milhões de toneladas de petróleo equivalente, ou seja 2,8%, comparando com 2021, os últimos dados disponibilizados pelo gabinete de estatística europeu, o Eurostat.

A Diretiva de Eficiência Energética foi revista em setembro de 2023, apontando uma renovada ambição: os países do bloco deverão assegurar uma redução adicional de 11,7% no consumo de energia até 2030. Mais recentemente, no passado mês de abril, foi revista a Diretiva sobre o Desempenho Energético dos Edifícios, o enquadramento leal para descarbonizar os edifícios até 2050. Para facilitar o avanço, foi criada em 2023 a Coligação Europeia de Financiamento para a Eficiência Energética, que quer mobilizar investimentos privados para esta área.

"É preciso perceber que com os preços elevados o sentido de urgência de poupança foi muito maior.”

Duarte Sousa

CEO Engie Hemera

À luz da meta de redução de 12% até 2030, estes 2,8% “parecem extraordinários”, mas “é preciso perceber que com os preços elevados o sentido de urgência de poupança foi muito maior“, alerta Duarte Sousa, indicando que é difícil prever, no novo contexto de preços mais baixos, qual será a evolução. A Comissão Europeia reconhece que “esforços adicionais serão necessários de forma a estar no caminho certo para atingir os objetivos de eficiência energética”, em particular a transposição de legislação.

Preços aliviaram e podem afetar os planos

A Comissão Europeia conclui, da análise que faz da redução da procura de gás e da gestão das reservas, que “ambas as medidas contribuíram para estabilizar os preços da energia, beneficiando a competitividade da economia europeia”, já que os preços do gás e eletricidade “estão ainda acima de níveis pré-crise, mas caíram substancialmente em comparação com os picos de 2022”.

“É importante não esquecer que as alterações no fornecimento de combustíveis fósseis pela Rússia, provenientes do conflito com a Ucrânia, incrementaram inicialmente os preços do gás e dos combustíveis, o que também foi um estímulo adicional para a eletrificação e para a diversificação da importação de gás natural liquefeito”, observa João Amaral. A mais recente quebra “pode atrasar também o desenvolvimento de projetos, a implementação do que é necessário”, completa Duarte Sousa.

Nota: Se está a aceder através das apps, carregue aqui para abrir o gráfico.

“Se a rápida introdução de energias renováveis não for acompanhada pela eletrificação dos consumos a um ritmo semelhante, vai haver excesso de produção de eletricidade e os preços no mercado grossista irão afundar-se, desaparecendo os incentivos ao investimento”, alerta António Vidigal. Dessa forma, parece-lhe clara a necessidade de aumentar, na Europa, as interligações internacionais e as fontes de flexibilidade: baterias, hídricas com bombagem e eventualmente produção de hidrogénio verde.

A Comissão Europeia já fez o seu papel. Agora há que incentivar a que os Estados Membros façam a transposição o mais rápido possível, e com isso regulamentos nacionais, por forma a que o desígnio de chegarmos às metas que comprometemos”, conclui Pedro Amaral Jorge.

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