Gonçalo Saraiva Matias tem uma paixão por política, é do PSD desde os 18 anos, mas fez a carreira fora do partido. Agora tem a tarefa de demolir o "edifício surdo" da burocracia.
- Retrato é uma rubrica do ECO na qual, durante o mês de agosto, é publicado diariamente o perfil de uma personalidade que se distinguiu no último ano, em Portugal
Gonçalo Saraiva Matias estava no seu escritório na Fundação Francisco Manuel dos Santos, já a preparar-se para sair, quando recebeu um telefonema do primeiro-ministro. “Eu já antecipava do que se tratava, tendo em conta o momento em que aconteceu”, conta ao ECO. “A minha reação foi de primeiro ter um momento de reflexão, de pensamento interior, e depois de decisão, de coragem, de pensar: ‘eu quero fazer isto, eu acho que é o momento para fazer isto, acho que as condições estão reunidas para fazer isto”. O isto é ser ministro Adjunto e da Reforma do Estado.
O homem escolhido por Luís Montenegro para travar a “guerra à burocracia” gosta de política desde criança. “Ainda muito jovem, tinha muito interesse pela política, sempre fui do PSD. Lembro-me que, já adolescente, ouvia num rádio os congressos do PSD, as discussões, aqueles debates entre Marcelo Rebelo de Sousa e Pedro Santana Lopes”, recorda. Filiou-se no partido com “17 ou 18 anos”, mas nunca foi da Juventude Social-Democrata ou trabalhou no partido. “Não fiz propriamente carreira partidária; a vida profissional afastou-me um pouco desse percurso, mas mantive sempre a ligação”, diz.
A paixão pela política vem sobretudo do pai, Armindo Saraiva Matias, advogado e sócio fundador da Saraiva Matias & Associados, sociedade onde chegou a trabalhar. “Fomentou muito em mim o interesse pela parte pública, por falar em público”, assinala o agora ministro. “Lembro-me de com quatro ou cinco anos vestir a toga dele e pôr-me em cima de um sofá a discursar”, contou no podcast Geração 70, do Expresso.
Gonçalo Nuno da Cruz Saraiva Matias, nascido a 1 de setembro de 1979, é filho único e assume que teve uma “infância e uma adolescência claramente privilegiada”. Estudou primeiro no Colégio Manuel Bernardes e fez o secundário nos Maristas, em Lisboa. Ao referido programa diz que os pais tiveram sempre a preocupação de que tivesse contacto com a realidade e conta que ia muitas vezes com a mãe, professora primária, para a escola em Marvila, hoje um bairro trendy, mas então uma das zonas mais pobres da capital.
Continuou os estudos na Universidade Católica Portuguesa, onde completou, em 2002, o curso de Direito e ficou a dar aulas. Anos mais tarde, seria diretor da Católica Global School of Law, entre 2018 e 2022.
Foi com o doutoramento que abraçou uma das áreas que o apaixona, a demografia, e em particular o fenómeno das migrações, tema da tese que defendeu em 2014 e que o levaria nesse mesmo ano à direção do Observatório das Migrações, cargo que exerceu até 2015.
Foi nessa altura que teve uma das experiências que mais o marcaram. “Quando comecei a fazer a investigação para o doutoramento, devia ter aí os meus 27 anos, recebi uma bolsa da Fulbright, para ir para os Estados Unidos, para a Universidade de Georgetown, fazer investigação na área do direito da imigração”, relata. Foi lá que ouviu Barack Obama, antes ainda de ser eleito Presidente dos EUA.
Politicamente, define-se como um “moderado”. Num artigo de opinião para o jornal Público, sobre a vitória de Joe Biden nas eleições nos EUA em novembro de 2020, define os moderados como “os que defendem a dignidade da pessoa humana, os direitos humanos, a democracia, a economia de mercado, a globalização regulada, as migrações, o combate às alterações climáticas, o património comum da humanidade”. “A minha maior desilusão é a radicalização da nossa sociedade”, disse ao podcast Geração 70.
O agora ministro não fez política partidária, mas manteve sempre um pé na política. Admirador confesso do primeiro-ministro Cavaco Silva, que considera ter “melhorado extraordinariamente” o país, viria a receber, em 2008, um convite do antigo líder do PSD para a sua equipa em Belém. “Tinham decorrido cerca de dois anos do mandato, a pessoa que lá estava saiu e eu entrei e estive oito anos com o professor Cavaco Silva como assessor jurídico e depois fiquei também com o professor Marcelo Rebelo de Sousa”, conta. Foi condecorado por ambos. Em 2016, com o Grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e em 2025 a Grã-Cruz da Ordem do Mérito.
O caráter inspirador e agregador do papa Francisco acho que são absolutamente decisivos e inspiram-me muito.
Desafiado pelo ECO a dizer qual o político que mais o marcou, prefere responder com um exemplo internacional: “o Papa Francisco, porque é uma figura muito inspiradora, que congregava à sua volta um consenso muito grande sobre a sua ação e sobre o seu pensamento. O seu caráter inspirador e agregador acho que são absolutamente decisivos e inspiram-me muito”, justifica Gonçalo Saraiva Matias, que é católico praticante.
Além da paixão pela politics (política), Gonçalo Saraiva Matias nutre um grande interesse pelo estudo da policy (as políticas públicas), que pôde desenvolver na Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS). Entrou em 2018 como diretor de estudos e em 2022 substituiu Jaime Gama na presidência, cargo que exercia quando recebeu o convite do primeiro-ministro para, aos 45 anos, integrar o XXV Governo Constitucional.

A visão sobre o que é a reforma do Estado
Gonçalo Saraiva Matias aceitou a missão de reformar o Estado, uma tarefa necessária, mas tão vasta e complexa que parece quase impossível de concretizar, menos ainda em quatro anos. O ministro diz que o desafio não o assustou. “Percebi que teria um grande apoio do primeiro-ministro”, diz, estendendo esse sentimento também ao restante Executivo.
Eu acho que há, na sociedade portuguesa, uma ânsia enorme, um desejo enorme, de uma profunda reforma do Estado.
Afirma que tem também o apoio dos portugueses. “Eu acho que há, na sociedade portuguesa, uma ânsia enorme, um desejo enorme, de uma profunda reforma do Estado”, sustenta ao ECO. “Tenho passado as últimas semanas a ouvir muita gente, a conversar com muita gente, a ouvir muitas ideias, e tenho sentido um enorme apoio, transversalmente, nos vários setores, desde o setor público ao setor privado, tenho sentido um grande apoio a esta ideia”.
E que visão tem Gonçalo Saraiva Matias sobre o que deve ser a reforma do Estado? O “princípio fundamental” é “pôr os cidadãos e as empresas no centro da ação do Estado”. “Ou seja, todo o Estado tem de se organizar para facilitar a vida das pessoas, para facilitar a vida das empresas, para garantir que é criada riqueza e que o nosso país se desenvolve”, explica. Esta linha condutora assenta depois em quatro eixos: “simplificação, digitalização, articulação e responsabilização”.
Se nós vamos digitalizar processos antigos, antiquados, mal desenhados, estamos apenas a pôr a tecnologia em cima de algo que não funciona.
O ministro garante que vai “olhar transversalmente para todo o Estado” para “simplificar procedimentos, redesenhar processos”, usando as novas tecnologias, incluindo a inteligência artificial. A estratégia passa primeiro por simplificar e só depois digitalizar. “Se nós vamos digitalizar processos antigos, antiquados, mal desenhados, estamos apenas a pôr a tecnologia em cima de algo que não funciona”, justifica.
Os licenciamentos urbanísticos, os que têm a ver com atividade das pessoas e das empresas, a contratação pública, a justiça administrativa e fiscal, são algumas áreas que aponta como carecendo de intervenção. “O que obriga a simplificar as regras legislativas que hoje criam os mais diversos entraves, mas também garantir que essa legislação pode ser implementada“, sublinha, dando como exemplo o princípio de que as pessoas não têm de entregar mais do que uma vez um documento que já está na posse da Administração Pública, previsto na lei há 14 anos mas nunca efetivado. Para a implementação ser bem-sucedida, é obrigatório haver interoperabilidade entre os diferentes sistemas do Estado, que estes falem entre si, defende.
Se [quatro anos] é suficiente para fazer tudo, não tenho a certeza, mas eu tenho a certeza que se nós fizermos aquilo que temos previsto no Programa de Governo, já teremos daqui a quatro anos um país diferente
Quatro anos parece pouco para travar uma ‘guerra’ contra “um edifício surdo que se montou” e exige “muita paciência e habilidade” para desmontar. Gonçalo Saraiva Matias reconhece que pode ser curto. “Se é suficiente para fazer tudo, não tenho a certeza, mas eu tenho a certeza que se nós fizermos aquilo que temos previsto no Programa de Governo, já teremos daqui a quatro anos um país diferente”, assegura.
Nos próximos anos terá menos tempo para um dos seus hobbys favoritos: viajar, de preferência de avião — “sou um geek da aviação, conheço os vários modelos”. O passatempo principal é a leitura. Está a ler “On Leadership“, do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair.
Como líder, Gonçalo Saraiva Matias diz-se “mobilizador e conciliador dos vários interesses em causa”. “Não é possível reformar contra as pessoas, acho que temos que reformar com as pessoas, e esse é claramente o meu estilo de liderança”. É assim que pretende demolir o “edifício surdo” da burocracia e erguer um Estado reformado, obra que apesar de alguns esforços nas últimas décadas continua por fazer.
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Um ministro moderado e conciliador para romper com o ‘velho’ Estado
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