Como é que a União Europeia vai pagar a bazuca anti-Covid? Vêm aí novas receitas, contribuindo também para que dependa menos das contribuições nacionais, um tema sensível nas discussões políticas.
Não há almoços grátis. Como classificou o Conselho das Finanças Públicas, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é um “um aparente free lunch [almoço grátis] orçamental” uma vez que a maioria dos fundos será entregue a Portugal na forma de subvenções: verbas a fundo perdido que o país não terá de pagar de volta. Mas alguém terá de pagar a dívida europeia que permite entregar o dinheiro da bazuca para combater a crise pandémica. Haverá novas receitas para pagar “a conta”, com o objetivo de diminuir a dependência das contribuições nacionais diretas.
É aí que entram os recursos próprios. Assim se chama na gíria europeia, mas na prática são as receitas do orçamento da União Europeia. No difícil acordo político entre os 27 Estados-membros e o Parlamento Europeu ficou definido que seriam criadas novas receitas nos próximos anos para reembolsar nas próximas décadas a dívida que a Comissão Europeia já começou a contrair nos mercados financeiros para o Mecanismo de Recuperação e Resiliência (que financia os PRR). Sem novas receitas a entrar nos cofres europeus, o Orçamento arrisca-se a encolher 10% no próximo Quadro Financeiro Anual, o qual é negociado de sete em sete anos.
Se não tivermos receita para cobrir esta despesa, o que teremos é um corte efetivamente de 10% no orçamento europeu.
“Até 2027, só se paga juros (0,01% do orçamento europeu). Depois o custo da dívida entre 2027 e até 2058 corresponderá a 15 mil milhões de euros anuais. Se não tivermos receita para cobrir esta despesa, o que teremos é um corte efetivamente de 10% no orçamento“, avisa José Manuel Fernandes, eurodeputado do PSD e relator do Parlamento Europeu para os recursos próprios, numa WebTalk organizada pelo ECO. O social-democrata alerta que, a concretizar-se, tal “afetará todos os Estados-membros, mas em particular Portugal porque estamos excessivamente dependentes dos fundos europeus”. E, a existirem cortes, “será principalmente na política de coesão e na política agrícola comum”.
A inclusão do custo da dívida como uma linha do orçamento europeu, como destaca Margarida Marques, foi essencial para convencer os chamados países frugais a aceitarem a bazuca europeia (o nome oficial é Próxima Geração UE) — o que terá de ser reembolsado são as subvenções (cerca de 340 mil milhões de euros), uma vez que a parte de empréstimos (cerca de 380 mil milhões de euros, se for tudo utilizado) terá de ser paga por cada Estado-membro, consoante o que tiver pedido à Comissão Europeia. “A criação do Next Generation EU ficou ancorado no orçamento da União Europeia. Temos pela primeira vez uma linha orçamental ‘dívida’ exatamente para criar este fundo“, destaca a eurodeputada do PS que também esteve envolvida nas negociações orçamentais da UE.
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Os eurodeputados olham para o lado da receita, mas há também quem olhe para o lado da despesa. É o caso do economista Ricardo Arroja, também presente na WebTalk organizada pelo ECO, que diz ser necessário discutir a distribuição dos recursos. “Só ouvimos o discurso de que o Orçamento é insuficiente e de que há novas prioridades a financiar, mas poucas vezes ouvimos um debate com profundidade sobre a utilização dos recursos atuais“, argumenta o ex-candidato da Iniciativa Liberal às eleições europeias de 2019, dando o exemplo da dimensão dos gastos europeus na Política Agrícola Comum (PAC) ou, por outro lado, da adequação das verbas para a segurança europeia e as fronteiras.
José Reis, economista e professor da Universidade de Coimbra, concorda que é preciso discutir a finalidade destas novas receitas, mas nota como é surpreendente que “um Orçamento equivalente a 1% do PIB comunitário promova todas estas discussões”. Recordando que no passado chegou a discutir que pudesse ser de 3% ou ate 7% do PIB europeu, “a verdade é que continuámos neste quadro em que não é mais do que 1%”. É fruto das “tradicionais dificuldades políticas” da UE, reconhece.
Temos progressivamente conseguido adaptar o orçamento europeu às prioridades políticas da União Europeia.
Os dois eurodeputados defendem a discussão sobre para onde vai o dinheiro foi e está a ser feita. Margarida Marques dá exemplos: o peso da PAC passou de 80% no orçamento europeu para menos de 40% e a política de defesa passou de ter um orçamento “quase nulo para algo mais significativo”. Em contrapartida, as prioridades políticas da UE como a transição climática e a transição digital passaram a ser condicionantes na alocação das verbas, como foi o caso do PRR que tinha de dedicar 35% e 20% das verbas, respetivamente. “Temos progressivamente conseguido adaptar o orçamento às prioridades políticas“, defende a eurodeputada socialista.
Como a UE quer ficar menos dependente das contribuições nacionais
A cada sete anos, o filme repete-se: infindáveis discussões sobre como financiar e distribuir um orçamento comum que corresponde a 1% do PIB da União Europeia. O tema dos recursos próprios é dos mais sensíveis, tanto que a retificação da peça legal chamada de “decisão de recursos próprios” por cada Estado-membro demorou meses. Ilustrativo da dificuldade política do tema é que estas receitas “não eram alteradas desde 1988″, assinala José Manuel Fernandes.
Atualmente existem quatro principais fontes de receitas da UE, de acordo com a informação da Comissão Europeia: parte dos direitos aduaneiros (que aumentaram de 20% para 25%), parte da receita do IVA (0,3% do total) cobrado pelos Estados-membros, a taxa sobre os plásticos (0,8 euros por quilograma de plástico não reciclado) introduzida recentemente e, claro, as contribuições diretas que chegam do orçamento nacional, as quais dependem da riqueza de cada país. Como estas receitas não chegam para o orçamento normal mais o pagamento da dívida, os eurodeputados obrigaram o Conselho a aprovar um calendário para a introdução de novas receitas, mas o “comboio legislativo” é lento e longo como demonstra este guia interativo do Parlamento Europeu.
A caminho, para já, estão três novas fontes de receitas, segundo a proposta avançada pelo executivo comunitário no final de 2021: parte da receita da taxa mínima de IRC que faz parte da reforma internacional ao nível da OCDE da tributação dos lucros das empresas; o mecanismo fronteiriço de ajuste do carbono e o comércio de licenças de carbono (alargamento ao setor marítimo, por exemplo). Se implementadas em 2023, como pretende a Comissão Europeia, as novas receitas, “em velocidade de cruzeiro”, irão gerar até 17 mil milhões de euros por ano, em média, entre 2026 e 2040. Há incertezas sobre estes números, admite-se em Bruxelas, mas a concretizar-se chega para reembolsar a dívida da bazuca.
Afastada, para já, parece estar a hipótese de uma taxa sobre o digital: “Haverá muita dificuldade em criar a taxa mínima de IRC mais a taxa digital. Tenho a convicção de que os EUA deram acordo à taxa mínima com a condição de que a seguir não vinha uma taxa sobre o digital“, explica Margarida Marques. Uma hipótese ainda em cima da mesa é a taxa sobre as transações financeira, já falada desde a crise financeira de 2008 e que só faz sentido a nível europeu dado que a nível nacional seria de difícil aplicação, nota José Reis.
Independente do que vier a ser acordado entre as instituições europeias e os Estados-membros, há uma tendência a formar-se: as novas fontes de receitas pretendem criar menor dependência das contribuições dos países. “Não queremos estar excessivamente dependentes dos orçamentos nacionais”, afirma José Manuel Fernandes, referindo que as contribuições nacionais em conjunto com a parcela do IVA correspondem a mais de 80% das receitas do orçamento europeu.
Essa dependência complica as negociações uma vez que “cada ministro das Finanças quer o seu dinheiro de volta”. “Não há perceção de que todos são beneficiários do orçamento da UE e aqueles que se queixam mais são os que mais beneficiam, nomeadamente os frugais, do mercado interno“, nota. É aqui que entram os chamados “rebates”, que são descontos ou acertos feitos aos principais contribuintes líquidos para o orçamento — nos próximos sete anos, a Dinamarca, Alemanha, Holanda, Áustria e Suécia irão receber de volta parte das contribuições que fizeram.
Uma opinião corroborada por Margarida Marques que argumenta que aumentar as receitas alternativas “permite que não se passe a vida a discutir se a contribuição nacional é 1%, 1,14%, 1,17% e, antes pelo contrário, passarmos a discutir as prioridades políticas da União Europeia”. Em vista, para o futuro, está a possibilidade de a bazuca se transformar num mecanismo de estabilização para a moeda única, um dos pilares da União Económica e Monetária que vários economistas dizem faltar.
No final do seu mandato como presidente do Eurogrupo, também Mário Centeno defendia a existência de novas receitas com uma “ligação clara” às prioridades estratégia da UE. “Se os novos recursos forem acordados, isto pode reverter a dependência perniciosa das contribuições nacionais para financiar o orçamento da UE“, argumentava o então ministro das Finanças e atual governador do Banco de Portugal.
Porém, para Ricardo Arroja, antes de se criar novos recursos próprios, “devem ser exploradas fontes de financiamento que já são permitidas, mas não estão maximizadas como os leilões de direitos de emissão de CO2 (dióxido de carbono)”. O economista argumenta que esta fonte de receita “está muito aquém do seu potencial porque há um conjunto enorme de indústrias que não estão nesse regime” e que “o mesmo se aplica à cobrança do IVA digital ao nível da UE”.
São impostos europeus ou não?
A discussão é acesa entre políticos e cidadãos quando se fala em impostos. Se se juntar que são “europeus”, o debate sobe de tom entre federalistas e quem defende a soberania nacional. O tema não ficou à margem da WebTalk promovida pelo ECO. Oficialmente, a Comissão Europeia rejeita que esteja a propor “impostos europeus”, argumentando que as propostas passam por instrumentos de mercados, cujo efeito “secundário” é a criação de receitas para os Estados-membros, as quais são, em parte, alocados ao orçamento europeu. Para o executivo comunitário a proposta garante a “soberania fiscal” dos Estados-membros.
“Não temos impostos europeus”, defende José Manuel Fernandes, detalhando o processo legal e político que as novas fontes de receitas têm de percorrer até se tornarem numa realidade. É preciso uma proposta da Comissão Europeia, o acordo dos 27 Estados-membros no Conselho, o “sim” do Parlamento Europeu e a aprovação da legislação em cada país que, dependendo do enquadramento legal, pode obrigar a votação no Parlamento nacional ou até a aprovação com uma maioria de 2/3. Quem cobra os impostos são as autoridades nacionais que, posteriormente, transferem para os cofres europeus.
O eurodeputado considera que o orçamento europeu “tem um enorme valor acrescentado” dado que “93% das verbas são para investimentos” — as despesas de funcionamento de todas as instituições europeias correspondem a “menos de 7%” do orçamento anual, notou. Acresce que a dimensão do orçamento é de “apenas” 1% do PIB da UE, o que compara com 20% do orçamento federal norte-americano (o eurodeputado disse logo de seguida que “é diferente”, isto é, não é comparável a UE e os EUA).
Há um equívoco que é assumir que a UE funciona como uma entidade federada, sendo que na melhor das hipóteses é uma confederação de países soberanos.
É aqui que Ricardo Arroja entra ao ataque, afirmando que o orçamento norte-americano e o europeu “são completamente diferentes”. Apesar de reconhecer que “tecnicamente” não são impostos europeus porque são “aplicados ao nível local” e depois reencaminhados para Bruxelas, o economista questiona a legitimidade política deste processo. Há um “equívoco que é assumir que a UE funciona como uma entidade federada, sendo que na melhor das hipóteses é uma confederação de países soberanos”, argumenta, assumindo a posição de que “não deve haver capacidade de taxar a partir de Bruxelas”.
Também é possível argumentar que estas receitas ao irem para o orçamento europeu deixam de estar no orçamento nacional (outra questão é saber se sem uma iniciativa europeia a receita sequer existiria, como é o caso da IRC mínimo). Outra pergunta ainda é saber quem, no final de contas, pagará cada uma destas taxas ou impostos que serão pagas pelas empresas: tal dependerá da capacidade que terão em transmitir esses custos ao consumidor final (os contribuintes europeus), nomeadamente da concorrência do setor em causa.
“A não ser que os novos recursos venham numa fonte [de receita] em que os Estados-membros sozinhos não iriam conseguir impor-se, como é o caso do mecanismo fronteiriço de ajuste do carbono, então as novas receitas apenas mudam a distribuição das contribuições nacionais total para o orçamento europeu, mas continuam a representar um fardo financeiro para as economias e orçamentos nacionais“, argumentavam especialistas do think tank Bruegel numa análise detalhada deste tema.
Olhando para o futuro, a vontade política para avançar neste campo dependerá também da avaliação feita à bazuca, a qual para alguns foi uma espécie de momento “Hamiltoniano” da Zona Euro (Alexander Hamilton, então secretário do Tesouro dos EUA assume a dívida de 13 Estados, ajudando à unificação dos EUA). “Será fundamental para o futuro deste mecanismo o sucesso na execução das verbas e no seu reembolso“, destaca Margarida Marques. Para evitar um novo braço de ferro entre Norte e Sul, “frugais” e “endividados”, será preciso tornar popular o Próxima Geração UE como acontece em políticas como o Erasmus.
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Sem novas receitas, Orçamento europeu arrisca corte de 10% no futuro
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