A Crise que já começou
Nuno Oliveira Matos dá um novo olhar sobre demografia e pergunta se conseguiremos construir instituições capazes e resilientes de prosperar num futuro que será mais velho do que o passado.
A União Europeia vive hoje uma transformação estrutural, que é simultaneamente silenciosa e inexorável: a transição demográfica.
Com uma esperança média de vida em constante aumento e taxas de natalidade persistentemente abaixo do nível de reposição, estamos perante uma União Europeia estruturalmente envelhecida e Portugal destaca-se, de forma preocupante, como uma das nações mais velhas do planeta.
O impacto económico e financeiro desta mudança não é uma previsão distante; está a ocorrer agora e exige uma resposta coordenada, estratégica e, sobretudo, corajosa. Apesar disso, continuamos a discutir temas conjunturais (v.g., inflação, política monetária, volatilidade dos mercados, etc.), ignorando que o verdadeiro determinante da solvência futura das empresas de seguros de vida e dos sistemas de pensões é esta mudança demográfica profunda. Hoje, mais do que nunca, a transição demográfica deve ser entendida como um risco sistémico de primeira linha.
A União Europeia envelhece mais depressa do que adapta o seu modelo económico. Em especial, Portugal combina dois fenómenos que se reforçam mutuamente: o declínio demográfico, com perda líquida de população em idade ativa; e a rápida expansão do contingente acima dos 67 anos, que poderá representar quase um terço da população nas próximas décadas. Isto significa que os mecanismos clássicos de financiamento da velhice, públicos e privados, estão sob crescente pressão.
A equação é simples: mais pensionistas, menos contribuintes; ou seja, carreiras contributivas mais curtas e vidas mais longas. Este desalinhamento põe em causa a promessa social de rendimento na reforma e expõe o setor segurador e de fundos de pensões a um risco de longo prazo que ainda não está totalmente incorporado nas práticas de gestão e supervisão.
A questão crítica não é se teremos um problema de sustentabilidade das pensões, mas em que medida já o temos e se estamos a responder com a urgência necessária.
O setor segurador de vida e as sociedades gestoras de fundos de pensões são frequentemente vistos como entidades que acumulam prémios/contribuições e administram reservas/fundos de pensões. Mas, num contexto de transição demográfica, devem ser sobretudo entendidos como guardiões da estabilidade intergeracional e agentes de investimento de longo prazo.
O desafio não é apenas garantir rendimentos futuros aos pensionistas; é assegurar que a economia terá capacidade para os gerar no futuro. Os mercados de capitais europeus, ainda fragmentados e menos profundos do que os norte-americanos ou asiáticos, dificultam a mobilização da poupança para investimento produtivo. Isso limita retornos, aumenta vulnerabilidades e coloca o setor segurador e de fundos de pensões perante um risco que muitos balanços económicos ainda não refletem plenamente: o risco de deficiências estruturais na gestão ativo/passivo, resultante da estagnação económica.
Assim, a União Europeia terá de aceitar uma mudança de paradigma: a poupança europeia deve ser mobilizada para financiar o crescimento europeu. Caso contrário, estar-se-á a pedir ao setor segurador e de fundos de pensões que garanta rendimentos num cenário em que a economia que os tem de suportar não cresce o suficiente para os gerar.
Portugal, com a sua elevada longevidade, passivos com taxas técnicas desajustadas e uma penetração relativamente baixa de produtos de poupança de longo prazo, é quase um laboratório antecipado dos desafios que a União Europeia enfrentará em larga escala.
Para os operadores e supervisores, isto exige uma visão integrada, capacidade de antecipação e uma abordagem orientada para o risco. Não basta avaliar capitais disponíveis; é necessário avaliar a resiliência estratégica dos modelos de negócio num país que envelhece aceleradamente.
A provocação necessária é simples: tratamos a demografia como um risco atuarial, quando ela já é inequivocamente um risco macroprudencial!
A transição demográfica afeta a forma como se projetam fluxos futuros, como se calculam provisões técnicas, como se definem políticas de investimento, como se avalia liquidez estrutural, como se desenham produtos e como se estima o risco de mercado no longo prazo. Ignorar isto é perpetuar uma incompletude analítica que não serve nem o setor financeiro, nem os futuros pensionistas, nem o país.
O debate europeu sobre como reforçar as pensões privadas e assegurar que a poupança de longo prazo financia o crescimento é urgente. A resposta é incómoda, mas clara: não haverá sustentabilidade das pensões sem crescimento económico; e não haverá crescimento económico sem mercados de capitais mais robustos e sem uma mobilização eficiente da poupança europeia.
A União Europeia e, em particular, Portugal, precisam de integrar a transformação demográfica nos modelos de negócio e na supervisão. A calibração da Solvência 2.1 para investimentos de longo prazo visa justamente incentivar a canalização de poupança para a economia real, a par do reforço da literacia financeira dos cidadãos.
Acima de tudo, necessitamos todos, operadores e reguladores/supervisores, de compreender e incorporar a complexidade deste desafio.
A transição demográfica não é o destino, é o contexto. Exige lucidez, antecipação e liderança. A verdadeira questão não é se a União Europeia e Portugal vão envelhecer; é se estamos a construir instituições capazes e suficientemente resilientes de prosperar num futuro que será, inevitavelmente, mais velho do que o passado.
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