A democracia foi suspensa para mais de 130 mil. E pelo Parlamento
Muitos eleitores em confinamento obrigatório estão proibidos de votar. São poucos? São os suficientes para eleger seis deputados por Lisboa.
É sempre mais fácil lançar slogans vistosos para mascarar as dificuldades do que encontrar uma forma digna e eficaz de as ultrapassar.
Os meses que já levamos de pandemia têm sido ricos nessa criatividade. Mas, como se vai vendo, somos muito melhores a fazer embrulhos e a enfeitá-los com laçarotes do que a cuidar do seu conteúdo. O que se está a passar com o processo eleitoral em curso é sintomático disso mesmo e não ficamos nada bem na fotografia.
“A democracia não está suspensa” é uma óptima frase que tem sido utilizada para quase tudo nos últimos dez meses. É evidente que não está nem pode ser suspensa. Era o que mais faltava.
É certo que nos têm sido retirados transitoriamente direitos básicos de uma democracia liberal como direitos de reunião, de circulação, de comércio ou de frequência de locais de culto. Mas toda a gente entende o motivo dessas medidas excepcionais e uma larga maioria da população concorda com elas e cumpre-as. Não é por isso que deixámos pontualmente de ser uma democracia ou recuámos meio século no tempo.
Da mesma forma, o eventual adiamento das eleições presidenciais pelos mesmos motivos sanitários não teria representado o cancelamento ou o adiamento da democracia. Desde Fevereiro do ano passado contam-se já 75 países que adiaram actos eleitorais por causa da pandemia. Muitos são democracias consolidadas a quem não damos lições na matéria.
Mas, mais uma vez, é mais fácil usar o slogan de ocasião do que pensar, decidir, planear e executar atempadamente o que deve ser feito. Isso devia ter ocorrido há muitos meses e nunca há duas ou três semanas quando Tino de Rans, num debate televisivo, defendeu que as eleições deviam ter sido adiadas e embaraçou notoriamente o “establishment” que ou nunca tinha pensado nessa possibilidade ou então até pensou mas não a estudou. Mas o tempo desse debate já passou e este Domingo lá vamos a votos eleger o Presidente da República.
Na verdade, quase 200 mil eleitores já votaram no Domingo passado. Muitos terão pensado que dessa forma poderiam cumprir o seu dever cívico com menos filas e evitando tanta proximidade com outras pessoas. Enganaram-se. Mesmo sabendo antecipadamente quantas pessoas estavam inscritas e onde o fariam, a administração eleitoral não conseguiu organizar-se para transformar esse dia na melhor campanha de apelo ao voto que podia fazer para este domingo: rápido, com poucas filas e com uma real sensação de segurança.
Só mesmo o ministro Eduardo Cabrita – sim, ainda é ministro – é que ficou satisfeitíssimo depois de ter esperado duas horas para votar e, no final, sem se rir, conseguiu dizer isto: “Eu vejo entusiasmo naqueles quase 250 mil portugueses que se registaram para o voto antecipado, que manifestam uma alegria do voto semelhante à alegria do voto nas primeiras eleições democráticas”. Num país que esperou meio século para ter as tais primeiras eleições democráticas a comparação está próxima do insulto.
Mas o pior está para acontecer. Este domingo há largos milhares de eleitores que estão impedidos de votar pela lei e pelas autoridades. São todos aqueles que estão obrigados ao confinamento obrigatório pelas autoridades por estarem infectados ou em isolamento profiláctico.
Sim, o Parlamento debruçou-se sobre o assunto em Outubro e alterou a legislação para encontrar uma forma para permitisse que estes eleitores pudessem exercer o seu direito de voto. Mas mesmo a essa distância de tempo em relação ao dia das eleições não conseguiu encontrar uma logística que impedisse o que se vai passar.
O processo que foi decidido impede de votar todos aqueles que entram em confinamento obrigatório nos últimos 10 dias anteriores ao dia da eleição. Porquê? Porque o prazo que foi decidido para se inscreverem para o voto antecipado terminou no dia 14 e essa era a única forma de poderem exercer o seu direito.
Pelos números médios destes dias só os novos infectados diários rondam os 13 mil. Portanto, são pelo menos 130 mil os eleitores que ficam afastados de participar na eleição. A estes somam-se os que estão em isolamento profilático também sujeitos a confinamento obrigatório, sobre os quais não há dados públicos.
São poucos? São muitos? 130 mil eleitores são, por exemplo, todos os recenseados em cada um dos distritos de Évora, Beja ou Bragança. São os suficientes, por exemplo, para eleger seis deputados por Lisboa.
Que não se tenha conseguido encontrar ao longo dos últimos meses uma logística que permitisse o voto destes eleitores é, no mínimo, uma enorme negligência e desinteresse pelo direito individual mais importante e simbólico de uma democracia: o voto. Que isso tenha partido do Parlamento é lamentável.
Mais do que apregoar que a democracia não está suspensa para justificar a manutenção de todos os rituais de que não querem abdicar mesmo que os proíbam aos cidadãos nesta época de excepção, teriam prestado um melhor serviço se tivessem cuidado do exercício mais elementar: o voto universal.
Porque, queiramos ou não, a democracia está suspensa para dezenas de milhares de eleitores. E haveria forma de o evitar.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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A democracia foi suspensa para mais de 130 mil. E pelo Parlamento
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