A era da cidadania fiscal
Os altos níveis de fiscalidade que os cidadãos dos países ocidentais suportam, só se podem manter desde que haja transparência, verdade e uma elevada perceção de justiça do sistema.
O primado da cidadania fiscal é o conceito que melhor define o mundo que emerge da grande crise, iniciada há 10 anos. Mas há um lado bom e um lado perigoso nesta nova era.
As grandes crises representam o fim de um paradigma e a fundação de um novo, tal como, na filosofia de Heráclito, a guerra era o início de um novo equilíbrio, após a falência do anterior.
O lado bom é que o escrutínio dos cidadãos sobre a ação dos governos, e a sua maior participação na definição dos interesses da governação, aumentaram extraordinariamente como resultado da crise.
O legado desta crise é a aprendizagem dramática, pelos cidadãos, de que são sempre eles que pagam os seus efeitos. Em Portugal, isso ficou muito claro com o enorme aumento de impostos e o corte nos ordenados e nas pensões. Foram os que vivem do seu trabalho diário e os pensionistas que pagaram a crise, e continuarão a pagá-la por muitos anos. Esses são os prejudicados pela crise. No entanto, pior que eles, ficaram as suas vítimas: os que perderam o emprego e os que tiveram que emigrar, incluindo os jovens mais qualificados de sempre.
O outro efeito da crise foi o medo que se instalou quanto ao futuro, não só no plano individual, mas o futuro coletivo, o perigo de colapso das finanças públicas, do sistema bancário, de toda a economia, a queda no desconhecido que o espetro do colapso do euro nos insinuou.
E percebemos, todos, que os interesses e o destino individual de cada um de nós estão ligados aos interesses e destino coletivos, da sociedade como um todo.
Esta perceção é hoje muito clara nas democracias ocidentais, onde a carga fiscal atingiu níveis próximos da saturação. Quando a riqueza que um cidadão da classe média produz, anualmente, se destina, na sua maior parte, não para ele e para a sua família, mas para partilhar com a sociedade, os seus interesses sociais passam a ser tão importantes como os seus interesses privados. É por essa razão que a exigência dos cidadãos sobre os governos nunca foi tão alta. E este é um efeito positivo.
Este crescimento do relevo da dimensão social na vida de cada cidadão, aumentando a sua participação nas escolhas sociais e políticas, aumenta a qualidade da democracia. Como propõe George Akerlof, Prémio Nobel da Economia de 2001, as nossas escolhas individuais correspondem sempre a uma necessidade de satisfação moral, determinada pelas categorias e ideais dos grupos sociais em que nos integramos.
O grau de civilização de um país pode medir-se pelo nível de interesse, de participação e de escrutínio, pelos cidadãos, na governação. Porque daí resulta uma maior qualidade das instituições públicas e da ação política, que passam a estar, mais do que nunca, ao serviço dos cidadãos e, portanto, uma maior eficiência do gasto público na geração de riqueza e na justiça social. Este é o legado positivo desta crise.
O legado negativo é o seu lado traumático. Esta crise começou por ser do sistema bancário e das dívidas púbicas e, portanto, do poder económico e político, mas rapidamente se generalizou a todos os cidadãos, irrompendo nas suas vidas. E a plataforma que operou essa transferência, do escasso número de poderosos que provocaram a crise, para a massa dos cidadãos que foram, e estão a ser, chamados, e obrigados, a pagá-la, foi o sistema fiscal.
Os cidadãos constataram que o sistema fiscal, que serve para redistribuir riqueza dos mais ricos para os que menos têm, pode também ser utilizado para fazer o contrário, de forma perversa, transferindo riqueza de quem a produz, com o seu trabalho, para os beneficiários de atos ruinosos de governação das finanças públicas e do sistema bancário. Esses beneficiários são os ganhadores da ruína dos bancos e do descontrolo da despesa do Estado, aqueles que possuem acesso fácil e capacidade de influenciar as decisões do poder político.
O que revolta as pessoas é a perceção de que o sistema fiscal foi, e pode ser, pervertido e utilizado para redistribuir riqueza de quem menos têm para os mais ricos.
É essa revolta que explica os resultados de muitos atos eleitorais recentes. Por enquanto, a sua expressão é apenas eleitoral, mas os eleitores estão a expulsar, para fora do sistema, toda uma classe de partidos e de agentes políticos que continuam a utilizar o sistema fiscal para os fins que não são seus, e a fazê-lo sem transparência ou verdade. E, embora as alternativas não garantam nada de melhor, isso só revela o nível de intolerância dos cidadãos à perversão do sistema.
O sistema fiscal tem que ser a instância de coesão e de integração das sociedades atuais. Já no início do século XX dizia Goldscheid, que o Estado moderno é um Estado Fiscal, e lembrava que a democracia parlamentar nasceu com o domínio, pelo Estado, do direito a controlar a política fiscal. E Schumpeter escreveu, de forma lapidar, que “o espírito de um povo, o seu nível cultural, a sua estrutura social, os factos que originam as suas políticas, tudo isso e mais ainda, está claramente escrito na sua história fiscal”.
Mas a perversão do sistema fiscal pode ser, também, causa de desintegração social, de revolta, de guerra, como o foi no passado. A perceção, pelas populações, de que o sistema está, mesmo que parcialmente, tomado pelos interesses daqueles que possuem mais facilidade de acesso ao poder político, pode ser fatal para a democracia.
Os altos níveis de fiscalidade que os cidadãos dos países ocidentais suportam, só se podem manter desde que haja transparência, verdade e uma elevada perceção de justiça do sistema. Como disse Rawls, os cidadãos aceitam os sacrifícios e as desigualdades, mas apenas até ao ponto em que elas beneficiam os menos favorecidos.
Na doutrina clássica, os impostos entendiam-se como prestações definitivas e unilaterais, sem direito a qualquer contrapartida para os contribuintes. Por isso, o dinheiro dos impostos era entendido como dinheiro público, anónimo, que podia ser gasto sem grande necessidade de prestação de contas ao seu dono.
Mas os impostos, mesmo depois de pagos, continuam a ser dos cidadãos, porque são a sua riqueza partilhada, o seu tesouro comum, o sedimento de um destino coletivo. E é nessa comunhão que se funda a era da cidadania. O que melhor caracteriza uma comunidade, além da sua história e da sua cultura é a comunhão de riqueza realizada pelo sistema fiscal.
As eleições francesas parecem revelar o triunfo deste novo conceito da cidadania fiscal. Por outro lado, as eleições italianas, e o crescimento dos partidos dos extremos, noutros atos eleitorais, parecem apontar para uma vitória da revolta dos cidadãos, provavelmente por falta de representação, na classe política, deste novo paradigma. Os eleitores parecem procurar, e estão disponíveis para eleger, representantes políticos que lhes garantam verdade, transparência e comprometimento com a justiça social.
Em todos os casos, do que se trata, é da rejeição de um modelo opaco, e de uma classe política que se deixou capturar por ele. E da adesão a uma nova classe política que seja inclusiva que postule os cidadãos como a fonte do poder, o alfa e o ómega da governação.
A partilha da verdade entre os governos e os cidadãos é a outra face da partilha, por estes, da sua riqueza com o Estado. O problema é que a inversa também é verdadeira. Terão sucesso os políticos que mais rapidamente o perceberem.
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