A simplificação dos contratos-promessa: a consequência oculta do Simplex?

  • Daniel Bessa de Melo
  • 20 Fevereiro 2024

No seu frenesim de liberalização, o legislador abdicou de tomar as devidas cautelas numa matéria tão espinhosa como é o mercado imobiliário. A precipitação do legislador ocasionará uma litigiosidade.

Os contratos-promessa de constituição de direitos sobre edifícios ou suas frações autónomas encontram-se submetidos a requisitos formais apertados.

O art. 410.º, n.º 3, do Código Civil, impõe que o documento escrito que titule a operação contenha o reconhecimento presencial das assinaturas e a certificação da existência da respetiva licença de utilização ou de construção.

O surgimento destas formalidades remonta à década de oitenta. O mercado imobiliário português acusava uma falta de oferta habitacional, criando um ambiente propício às construções clandestinas. No propósito de evitar que os promitentes-compradores, potenciais alvos do oportunismo dos promotores imobiliários, negociassem imóveis clandestinos, o legislador revestiu estes negócios de uma série de formalidades. Embora comprometessem a celeridade das operações económicas, tais procedimentos assegurariam a transparência do mercado imobiliário, resguardando os promitentes-compradores do ascendente económico da contraparte.

Primava a necessidade de tutela do promitente-comprador de habitação própria, identificado como a parte débil da relação contratual. O interesse público em impedir a negociação de imóveis clandestinos realizar-se-ia a posteriori, no momento da celebração da escritura pública. Seria nesse momento que incumbiria ao notário o dever de verificação da licença de utilização ou de construção, uma medida imposta pelo Decreto-Lei n.º 281/99.

Todo este esquema foi radicalmente alterado pelo recente SIMPLEX urbanístico, de forma insuspeita – e, quem sabe, imprevista e acidental.

Num golpe fatal contra procedimentos burocráticos, o Decreto-Lei n.º 281/99 foi revogado, desaparecendo do nosso ordenamento qualquer obrigação de apresentação da licença de utilização ou de construção aquando da celebração da escritura pública. Numa solução igualmente vertiginosa, eliminou-se o alvará de licença de construção e de utilização, o qual passa a ser substituído por um simples recibo de pagamento.

Sucede que, por enquanto, o art. 410.º, n.º 3, do Código Civil, permanece inalterado. O leitor adivinhará a perplexidade gerada pela ação (ou omissão?) do legislador: embora se tenha prescindido da verificação da existência da licença para os contratos definitivos, ela continua a ser imposta para os contratos-promessa.

Resta a tese de que o art. 410.º, n.º 3, do Código Civil, na parte em que exige a referida certificação, foi tacitamente revogado pelo SIMPLEX urbanístico. O argumento a acolher será essencialmente de maioria de razão: carece de sentido instituir um controlo sobre o contrato-promessa e omiti-lo – ou, melhor, eliminá-lo – quanto ao contrato definitivo.

O tempo ditará se esta posição merece o beneplácito da nossa jurisprudência. Um ensinamento clássico, sapiente embora frequentemente ignorado, refere que não se pode legislar à flor da pele. No seu frenesim de liberalização, o legislador abdicou de tomar as devidas cautelas numa matéria tão espinhosa como é o mercado imobiliário. Indubitavelmente, a precipitação do legislador ocasionará uma litigiosidade que poderia – e, aliás, ainda pode – ser evitada.

Não querendo o legislador ocupar o tempo das partes na conservatória, tê-las-á reencaminhado para Tribunal?

  • Daniel Bessa de Melo
  • Associado da Cerejeira Namora, Marinho Falcão

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