Advocacia: Morreu o Profissional Liberal?

  • Daniel Bessa de Melo
  • 2 Novembro 2023

A progressiva comercialização da advocacia, seja ela propositada ou acidental, aparenta ser um dado fáctico, mesmo perante o atrito da lei e o estigma da tradição.

Aos termos caducos que emprega apenas acresce o anacronismo da nossa lei comercial, do longínquo ano de 1888 e, surpreendentemente, ainda em vigor.

O sujeito predileto continua a ser o comerciante, entendido como aquele que faz do comércio profissão. O desfasamento com a realidade económica e social é manifesto, sabido como o agente de maior relevo já não é o comerciante, mas o empresário. Admitindo-o, o Código Civil italiano de 1942 (Codice Civile) elegeu o imprenditore como o sujeito da sua disciplina, submetendo-o às normas acerca do estabelecimento, dos sinais distintivos do comércio e da concorrência. O imprenditore commerciale seria uma categoria mais restrita, que determinaria, por exemplo, o dever de apresentação à insolvência.

As opções anacrónicas do Código Comercial não se esgotam em meros pormenores terminológicos: algo compreensível diante o contexto histórico, parte-se de uma cisão estanque entre o comércio e a atividade do profissional liberal. A razão de ser desta destrinça encontraria eco na natureza das coisas. Os elementos preponderantes da atividade liberal seriam a fama, a capacidade pessoal e a expertise do próprio profissional, o que contrastaria com os valores objetivos do comércio, nos quais a pessoa do empresário desempenharia um papel secundário.

Presumivelmente, a advocacia observaria escrupulosamente estes critérios. O ceticismo em torno da comercialização (vulgarização?) da profissão encontrar-se-ia plasmado no seu Estatuto: a publicidade submete-se a requisitos de objetividade e dignidade; a relação entre o advogado e o cliente funda-se na confiança recíproca; ao advogado é vedado pronunciar-se publicamente sobre questões profissionais pendentes e mesmo relativamente às questões findas o segredo profissional a que se encontra adstrito impede-o de se vangloriar.

Sucede que, como não é de todo infrequente, os dados da experiência prática desfiguram os ditames da lei. Rigorosamente interpretado, o Estatuto da Ordem dos Advogados impediria o advogado de confundir a tribuna com a estação televisiva, de opinar sobre processos pendentes (muitas vezes em desprimor de colegas e magistrados), de expor livremente as transações económicas em que interveio e de urdir relações comerciais, ainda que informais, com entidades jornalísticas e de divulgação de marca. Sabemos como tais delitos são cometidos diariamente, ao ponto de serem quase costumeiros.

Contudo, não nos revemos na legitimidade de censurar tais atos. Os mesmos são sintomáticos da progressiva (e inevitável) comercialização da atividade forense, onde a prática individual se desvanece perante a lógica empresarial que tem vindo paulatinamente a reger as grandes sociedades. Essa comercialização é, por seu turno, uma exigência de um mercado cada vez mais competitivo e internacional.

A haver algum juízo de censura, o mesmo apenas pode ser dirigido a um estatuto deontológico francamente desatualizado e que, fosse ele observado exaustivamente, colocaria o singelo advogado português em situação de desvantagem competitiva perante os colegas estrangeiros. Também aqui a lógica destrutiva do progresso económico não pode deixar incólume um corporativismo novecentista.

Resta, por isso, saber em que medida a caduca noção de comerciante (e de comércio) é verdadeiramente incompatível com a atividade do profissional liberal.

A noção de imprenditore do Direito italiano é suscetível de abranger a obra intelectual. Mas naquilo que tem sido descrito como uma imunidade do profissional, o Codice Civile explicita que as disposições acerca da empresa apenas se aplicam aos profissionais liberais se “o exercício da profissão constituir um elemento de uma atividade organizada sob forma empresarial”; seria o caso do médico que gere uma clínica na qual opera ou do professor que explora um externato onde ensina. Nesta senda, não seria especialmente engenhoso encarar como imprenditore o advogado que administra uma sociedade de advogados. No entanto, esta conclusão não pode ser acolhida à luz da nossa lei, por mais desajustada que seja.

Deixamos, contudo, uns tópicos para reflexão que, como bem se sabe, não se têm de adstringir às imposições da lei.

A progressiva comercialização da advocacia, seja ela propositada ou acidental, aparenta ser um dado fáctico, mesmo perante o atrito da lei e o estigma da tradição. A admissão de sociedades multidisciplinares, que coloca em causa os baluartes da profissão, reflete o avanço natural de um paradigma onde a prática individual, necessariamente generalista, vem sendo sufocada pela necessidade de especialização técnica e tecnológica. Gradualmente a advocacia requer um maior aporte de instrumentos que permitam satisfazer as necessidades do cliente. Os grandes escritórios, por seu turno, agregam os seus profissionais sob uma marca comum por vezes mais apta a atrair clientela do que a habilidade pessoal do profissional, guiando-se por uma estrita lógica de organização empresarial – que o digam os managing partners. Comportam-se, atuam e apresentam-se como verdadeiras empresas, ainda que o Estatuto da Ordem dos Advogados ache tudo isto uma enorme aberração.

Resta saber até quando insistiremos em ignorar estas realidades, em evidente prejuízo dos operadores económicos e em prol da estagnação intelectual e profissional.

  • Daniel Bessa de Melo
  • Associado da Cerejeira Namora, Marinho Falcão

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