Ainda não é desta que a literacia financeira entra na escola

A nova estratégia de educação para a cidadania comprova que a literacia financeira continua a viver do “faz de conta”, com currículos brandos e promessas vãs. Mas ainda há esperança. Basta querer.

Se há coisa que não falta em Portugal são estratégias nacionais vendidas recorrentemente com ‘pompa e circunstância’. Temos estratégias para tudo: para o digital, para a sustentabilidade, para o envelhecimento ativo e, claro está, para a educação da cidadania.

A mais recente Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC) e as respetivas Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento, agora em consulta pública, apresentam-se como uma evolução da anterior estratégia de 2017, mas quando se olha para o capítulo da literacia financeira, o que se vê é mais do mesmo: boas intenções, palavras bonitas e uma abordagem que continua a pecar por ingénua numa altura em que os resultados do último PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) nos mostram uma realidade incómoda.

Portugal desceu 11 pontos na literacia financeira dos jovens de 15 anos entre 2018 e 2022, caindo do 7.º para o 9.º lugar num ranking internacional calculado pela OCDE. Enquanto isto, países como Dinamarca, Finlândia e Estónia continuam no topo da tabela da literacia financeira, graças à implementação consistente e estruturada de programas de educação financeira, bem antes de Portugal sequer reconhecer esta urgência.

O documento das Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento promete muito e entrega pouco. No ensino secundário, o clímax pedagógico é “formular a simulação de reclamações junto das entidades competentes”.

A nova proposta de aprendizagens essenciais para Cidadania e Desenvolvimento no âmbito da literacia financeira revela uma abordagem que, embora mais estruturada que a anterior, continua a ser demasiado superficial para os desafios do século XXI. Senão vejamos:

  • No 1.º ciclo, os alunos aprendem a “compreender a importância da poupança” e a “diferenciar entre contrair e conceder empréstimos”. Simpático, mas insuficiente. Enquanto isso, na Dinamarca, crianças da mesma idade já trabalham com conceitos de orçamento familiar por jogos digitais interativos e simulações práticas.
  • Nos 2.º e 3.º ciclos, a proposta passa por garantir que os alunos possam “elaborar um orçamento pessoal ou familiar” e “compreender formas de aplicação da poupança”. Mais uma vez, estamos aqui a falar de conceitos básicos que países como a Finlândia integram transversalmente no currículo desde o ensino primário, com resultados práticos medidos anualmente.
  • No ensino secundário, finalmente, chegamos às “simulações de reclamações” e à “elaboração de modelos de negócio sustentáveis”. Demasiado tarde. Quando os finlandeses chegam a esta idade, já gerem orçamentos reais, fazem investimentos simulados e compreendem os mecanismos de funcionamento dos mercados financeiros.

O documento das Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento promete muito e entrega pouco. Para os mais novos, a meta é “compreender a importância da poupança e os seus objetivos” e “diferenciar entre contrair empréstimos e conceder empréstimos”.

Para os alunos do 2.º e 3.º ciclos, o ambicioso plano é “elaborar um orçamento pessoal ou familiar” e “compreender formas de aplicação e de remuneração da poupança”. No ensino secundário, o clímax pedagógico é “formular a simulação de reclamações junto das entidades competentes”.

São metas que sabem a pouco, particularmente quando comparado com o que é feito e praticado em alguns dos países com verdadeiras políticas de promoção da literacia financeiras junto dos jovens.

A solução não passa por mais uma estratégia no papel nem pela tentativa de reinventar a roda. Passa por olhar para o que funciona nos países com maiores índices de literacia financeira, adaptar essas práticas à realidade nacional e implementá-las com seriedade.

Na Finlândia, por exemplo, que lidera o ranking de literacia financeira da OCDE com 73% da população com literacia financeira adequada, as crianças começam desde cedo a aprender sobre investimentos, mercados financeiros e planeamento de reforma. A educação financeira não é uma disciplina isolada nem um tema “transversal” perdido algures no meio da cidadania, mas parte integrante do currículo de matemática, ciências sociais e economia doméstica, com objetivos claros e avaliação específica.

Na Dinamarca, a educação financeira está integrada transversalmente no currículo desde o ensino básico, com simulações reais de mercados e análise de produtos financeiros complexos, numa pareceria entre o Ministério da Educação e o banco central. Os alunos não se limitam a “compreender” conceitos, mas praticam-nos por plataformas digitais que simulam operações bancárias reais, gestão de cartões de débito e planeamento de poupanças, por exemplo.

Na Estónia, líder do ranking PISA 2022 em literacia financeira, a educação financeira está integrada no currículo nacional como disciplina obrigatória, com professores especificamente formados e materiais pedagógicos desenvolvidos em parceria com instituições financeiras, mas sob supervisão estatal rigorosa.

Ironicamente, enquanto o Ministério da Educação desenha currículos minimalistas de literacia financeira, há escolas portuguesas a fazer um trabalho de excelência nesta matéria. É o caso do projeto “5 Rs p’ra Poupar” do Agrupamento de Escolas Martim de Freitas junto de alunos do 1.º Ciclo e dos vários programas de literacia financeira desenvolvidos pelo Agrupamento de Escolas General Serpa Pinto – Cinfães, como o programa “#cinfã[email protected]” junto de cerca de 300 alunos do 3.º ciclo do ensino básico, que têm merecido consecutivas premiações do concurso “Todos Contam”. Mas estes são casos isolados, ilhas de excelência num oceano de mediocridade curricular no plano da educação financeira.

São iniciativas como estas que mostram que o problema não está nos professores ou nas escolas, mas sim na falta de visão estratégica de quem deveria liderar este processo. Algo que fica bem espelhado em três grandes problemas que apresenta a ENEC, e que a torna inadequada para os desafios atuais:

  • Dispersão temática. A literacia financeira compete por atenção com sete outras dimensões da cidadania, desde os direitos humanos ao pluralismo cultural. Esta abordagem de “tudo a todos” resulta numa superficialidade que não serve ninguém. Os países com melhores resultados focam-se na literacia financeira como competência específica, com carga horária própria.
  • Ausência de obrigatoriedade real. Embora a literacia financeira esteja no grupo de dimensões “obrigatórias em todos os anos”, a verdade é que cada escola decide como e quando a implementa. Esta flexibilidade, vendida como “autonomia”, traduz-se na prática em desigualdades gritantes entre escolas e regiões.
  • Falta de formação específica dos professores. A estratégia pressupõe que qualquer professor possa lecionar literacia financeira, mas a realidade é que a maioria não tem formação adequada na área. Países como a Alemanha e os Países Baixos investem muito na formação de professores especializados.

Um país que não educa financeiramente os seus jovens condena-se a ter adultos endividados, famílias financeiramente vulneráveis e uma economia menos competitiva. Não é ideologia, são factos. E “contra factos não há argumentos”.

Se queremos verdadeiramente preparar os jovens para a realidade financeira dos nossos dias, precisamos de uma abordagem mais ambiciosa, mais pragmática que procure fazer de facto a diferença. Isso não significa fazer uma revolução, mas ser mais objetivo e prático:

  1. Disciplina autónoma obrigatória: A literacia financeira deve ser uma disciplina específica no 3.º ciclo e secundário, não um tema transversal perdido na cidadania. Além disso, deve ter um programa próprio, professores formados e avaliação específica.
  2. Integração curricular precoce: No 1.º e 2.º ciclos, deveria integrar-se a educação financeira nas disciplinas de matemática e estudo do meio, com objetivos concretos e mensuráveis. Seguir o modelo nórdico de “matemática aplicada” às finanças pessoais, é um bom ponto de partida.
  3. Parcerias estruturadas: Estabelecer protocolos entre o Ministério da Educação, Banco de Portugal e supervisores financeiros para desenvolvimento de materiais pedagógicos, formação de professores e avaliação de resultados. Sem conflitos de interesse, mas com conhecimento especializado.
  4. Plataforma digital nacional: Desenvolver uma plataforma digital de simulação financeira, à semelhança do que fazem os dinamarqueses, onde os alunos possam praticar gestão orçamental, investimentos e planeamento financeiro em ambiente controlado. E nem aqui é preciso grandes invenções. É só seguir os princípios usados na plataforma “Escola Virtual” na disponibilização de conteúdos, testes e premiação pelos resultados obtidos.
  5. Avaliação regular e comparativa: Implementar testes nacionais de literacia financeira, não para ranking de escolas, mas para aferir a eficácia do programa e identificar necessidades de melhoria. Este passo é essencial para averiguar o efeito da aplicação de qualquer programa.

Os números não mentem: 85% dos jovens portugueses atingem o nível básico de literacia financeira, mas apenas 7% são “top performers, ficando abaixo da média de 11% da OCDE. Esta lacuna não é apenas estatística. Traduz-se em decisões financeiras menos informadas, maior vulnerabilidade ao endividamento e menor capacidade de planeamento financeiro a longo prazo.

Paralelamente, 86% dos jovens portugueses consideram que gerem bem o seu dinheiro — é a percentagem mais alta da OCDE. Esta desconexão entre confiança e competência real é um cocktail perigoso que resulta numa geração de adultos sobreconfiantes, mas mal preparados.

A solução não passa por mais uma estratégia no papel nem pela tentativa de reinventar a roda. Passa por olhar para o que funciona nos países com maiores índices de literacia financeira, adaptar essas práticas à realidade portuguesa e implementá-las com seriedade e recursos adequados. Caso contrário, continuaremos a formar jovens que sabem muito sobre cidadania em abstrato, mas pouco sobre como gerir a sua carteira no concreto.

A matemática é simples: um país que não educa financeiramente os seus jovens condena-se a ter adultos endividados, famílias financeiramente vulneráveis e uma economia menos competitiva. Não é ideologia, são factos. E como diz o dito popular, “contra factos não há argumentos”.

O período de consulta pública da “Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC)” e as respetivas “Aprendizagens Essenciais de Cidadania e Desenvolvimento” decorre até 5 de agosto. Há ainda tempo para dizer basta a esta mediocridade institucionalizada e exigir um programa de literacia financeira à altura dos desafios que os nossos jovens vão enfrentar. A questão é: teremos coragem para o fazer?

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