Arrivederci euro

O fim do euro acontecerá mesmo, e será o resultado de um qualquer incêndio de efeitos incontroláveis. O 'Não' no referendo italiano poderá ser o princípio do fim da moeda única.

A vitória do “Não” em Itália no passado fim de semana, numa deliberação popular sobre reformas constitucionais que na prática se transformou numa moção de censura ao governo de Renzi, poderá em retrospectiva vir a revelar-se como o princípio do fim. O princípio do fim do euro.

É importante recordar que a Itália é um país fundador do que é hoje a União Europeia. Foi em Roma (1957) que se celebrou o tratado constitutivo da outrora Comunidade Económica Europeia. E é lá que dentro de poucos meses se celebrará (?) o sexagésimo aniversário de uma Europa que renasceu das cinzas depois da 2ª Grande Guerra Mundial. Mas o clima é tudo menos de festa.

A demissão de Renzi na sequência do “Não” de domingo, e a crescente polarização da opinião pública em Itália (e também noutros países europeus), trazem consigo a ameaça de uma ruptura no seio da Europa. A começar no periclitante sector bancário italiano cuja dimensão, segundo dados citados esta semana no Financial Times, é superior a 4 triliões de euros (na escala anglo-saxónica). Ou seja, 40% do PIB da zona euro.

Num sistema bancário de reservas fraccionárias caracterizado por reservas mínimas obrigatórias nulas ou pouco diferentes de zero, um colapso bancário é sempre um bom ponto de partida para uma crise de dimensões sísmicas. No caso italiano, há ainda outras fortíssimas agravantes: para além do crédito malparado, estimado em 350 mil milhões de euros, existe ainda um fardo gigantesco de dívida bancária vendida pelos bancos transalpinos aos seus clientes de retalho: cerca de 170 mil milhões de euros (10% do PIB italiano). O pântano bancário, e político, é tal que dá até vontade de perguntar a Renzi: fez de propósito para ir embora?

A eventual resolução do Monte dei Paschi di Siena provavelmente determinaria, ao abrigo das regras de resolução bancária da União Europeia, ao “bail-in” dos obrigacionistas de retalho expostos a este banco. Só neste banco reside assim uma comunidade de potenciais lesados que se arriscam a perder dois mil milhões de euros através de instrumentos de dívida subordinada.

Deste modo, um efeito de dominó que por absurdo dizimasse os demais, e os 170 mil milhões de euros detidos pelo universo global de clientes de retalho com dívida bancária, repito 10% do PIB italiano, faria dos “nossos” lesados do BES (600 milhões de euros, ou 0,4% do PIB português), permitam-me a comparação, uma brincadeira de crianças.

Naturalmente, será apenas uma questão de tempo até que as regras de resolução bancária da União Europeia sejam jogadas ao lixo, porque ninguém em Itália quererá ficar com as mãos sujas de sangue ou até de ser tingido por sangue. Porém, à medida que for desabando o edifício institucional da zona euro, seja pela revogação das regras sobre ajudas de Estado ou pela modificação sistemática das regras de (in)disciplina orçamental (que esta Comissão Europeia, autocaracterizando-se de eminentemente política, vai ensaiando), a fragmentação nacional daí resultante inviabilizará a coesão social sem a qual nenhuma mutualização europeia de dívidas nacionais será a prazo sustentável ou sequer politicamente tragável.

É certo que a teoria do fim do euro não é nova, e que aqueles que a têm preconizado continuam sentados à espera. Eventualmente estão até descredibilizados de tanto repetirem uma previsão que tarda em cumprir-se. Neste particular, os economistas norte-americanos que de crise em crise a têm anunciado são frequentemente acusados de menosprezarem a vontade política em redor do projecto europeu. Mas a vontade política expressa pela Comissão Europeia, ou até nos parlamentos nacionais, radica em última instância na sua legitimidade popular. E esta, os sinais são evidentes, está a esvair-se.

O fim do euro, estou eu hoje persuadido, acontecerá mesmo, e será o resultado de um qualquer incêndio de efeitos incontroláveis. Arrisco dizer que estará mais próximo do que seria de supor. E, portanto, no caso dos bancos italianos, os principais candidatos a incendiários, para além das regras de ajudas de Estado jogadas para o lixo, é de esperar uma intervenção do Banco Central Europeu.

Esta intervenção, ou prevenção, de Draghi e companhia procurará evitar o dominó na zona euro, tanto nos periféricos como nos países tidos como mais fortes (mas onde a dimensão da banca não é menor), porque, não o esqueçamos, sem o euro não há BCE (nem os seus belíssimos cargos e empregos). No final, as coisas são mesmo assim: simples e comezinhas.

Mas a intervenção do BCE, hoje liderado, curiosamente, por dois ex-responsáveis de dois dos piores sistemas bancários da Europa – senão mesmo os piores –, agravará indelevelmente os défices monetários que países como a Itália ou Portugal, através dos seus bancos centrais nacionais, vão acumulando face aos seus congéneres na zona euro. Porquê? Porque sem a convergência da produtividade económica entre países tão díspares, e note-se que é contra isso que a opinião pública na Europa (também) se vai rebelando, a política monetária do BCE não será mais do que uma esplêndida fuga para a frente. Reina uma falsa serenidade no ar.

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