As barragens são ou não prédios? O “ziguezaguear” da Autoridade Tributária

O que não está esclarecido é o porquê da não tributação destas barragens em sede de IMI e IMT.

Sobre a sujeição das barragens a IMI, IMT e IS já manifestei a minha opinião. Também manifestei a minha estranheza em relação às alterações legislativas ocorridas nos últimos anos ao artigo 60º do EBF, bem como o timing e a razão de ser de algumas afirmações públicas. Questionei-me também sobre o papel dos “tubarões de águas profundas”, aqueles que, nos meandros administrativos e políticos, movem as suas influências.

Gostaria agora de abordar o entendimento, ou desentendimento que a Autoridade Tributária tem tido na questão das barragens serem ou não prédios para efeitos fiscais, condição necessária à tributação em IMI e IMT.

São requisitos essenciais para que uma determinada realidade seja considerada prédio para efeitos fiscais, (i) o requisito físico – existir uma fração de território incluindo as águas, plantações e edificações nela incorporados ou assentes com carácter de permanência, (ii) o requisito económico – que o bem seja suscetível de gerar utilidade ou rendimentos e (iii) o requisito patrimonial – que o bem pertença ou seja suscetível de pertencer ao património de uma pessoa.

Estão nesta situação a grande maioria dos prédios rústicos e urbanos existentes no país que, pertencendo ao património individual de uma pessoa singular, coletiva ou do Estado (sentido lato), estão sujeitos às regras de sujeição do IMI, se bem que possam estar depois isentos em virtude de uma qualquer norma habilitante.

No que respeita aos bens do domínio público, como não são suscetíveis de apropriação individual, nem objeto de “comércio” – n.º 2 do artigo 202º do Código Civil, eles não dispõem do requisito patrimonial, não sendo por isso considerados prédios. Estão pois fora das normas de sujeição do IMI, quer no que respeita ao pagamento do imposto, quer no que respeita a outras obrigações acessórias como seja a avaliação e inscrição matricial. Caso ocorra a desafetação de bens do domínio público para um património privado (do Estado ou de outra pessoa), eles passam a dispor desse requisito, sendo então considerados prédios para efeitos fiscais.

No que respeita aos bens construídos em domínio público, mas que pertençam a um património privado, eles são considerados prédios para efeitos fiscais porquanto dispõem de requisito patrimonial. A redação do n.º1 do artigo 2º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) é clara quanto a este propósito quando define que também são prédios as construções dotadas de autonomia económica em relação ao terreno onde está implantado, independentemente de este pertencer a outro património distinto ou não tenha natureza patrimonial, leia-se bens do domínio público. Este sempre foi o entendimento da Autoridade Tributária (AT).

A questão que se coloca é saber se, quanto às barragens, existe algum pressuposto que determine em sentido contrário. Vejamos então alguns diplomas conexos com as barragens:

a) O Diário do Governo n.º 164, de 14.07.1954, que concessionou o aproveitamento da energia das águas do rio Douro, determinava que todos os edifícios, obras, máquinas, etc., finda a concessão, devem ser consideradas dependências imobiliárias e entrar na posse do Estado”.

b) O Decreto-Lei n.º 43.335, de 19.11.1960 (eletrificação do País), determinava que, em caso de resgate ou rescisão da concessão, para além da indemnização da concessão, “o concessionário terá direito a receber uma indemnização do Estado correspondente ao valor dessas instalações” e que a declaração de utilidade pública das barragens tinha por objetivo conferir, ao concessionário, um conjunto de direitos, nomeadamente de expropriação de terrenos e edifícios.

c) A Portaria n.º 295/2002, de 19.03, que regula o procedimento de obtenção das licenças necessárias à produção de energia hidroelétrica por pequenas centrais hidroelétricas, determinava genericamente que, extinta a relação jurídica titulada pela concessão deve: (i) operar-se a reversão para o Estado do estabelecimento da concessão e ou dos bens afetos ao aproveitamento, integrando o domínio público ou privado do Estado, conforme o que a lei definir e que a reversão, por caducidade do respetivo contrato, é gratuita, (ii) quando, previamente ao termo do prazo da licença ou concessão, o titular da mesma tenha realizado investimentos, devidamente autorizados e demonstre que estes investimentos não foram ainda recuperados, as entidades poderão optar por reembolsar o titular do valor não recuperado ou prorrogar a licença.

d) A Lei n.º 58/2005 de 29.12 (Lei da Água) estabelece que são “infraestruturas hidráulicas públicas aquelas cuja titularidade pertença a pessoas coletivas públicas ou a sociedade por elas dominadas” e que são “infraestruturas hidráulicas privadas” aquelas cuja titularidade pertença a entidades privadas”.

e) O Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31.05 (regime de utilização dos recursos hídricos), determina: (i) com o termo da concessão revertem gratuitamente para o Estado os bens e meios que lhe estão afetos, bem como as obras executadas e as instalações construídas; (ii) com a revogação dos títulos de utilização, o detentor do título que tenha realizado investimentos em instalações fixas deve ser ressarcido do valor do investimento, na parte ainda não amortizada e (iii) no termo do prazo fixado, quando o titular da concessão tenha realizado investimentos adicionais aos inicialmente previstos no contrato de concessão, devidamente autorizados pela autoridade competente e se demonstre que os mesmos ainda não foram recuperados, a autoridade pode optar por reembolsar o valor não recuperado ou, prorrogar a concessão.

Podemos pois concluir, inequivocamente, que numa barragem: (i) coexistem bens do domínio público e bens privados pertença do concessionário, (ii) que esses bens privados são, nomeadamente, instalações, construções e edificações ou seja, prédios, (iii) concluída a concessão os bens privados são incorporados, a título gratuito, no património privado do Estado ou no domínio público, conforme o que a lei determinar e (iv) no caso de resgate ou rescisão antecipada da concessão, o concessionário deverá ser indemnizado pelas obras e construções por si realizadas.

Com base nestas conclusões, a unidade da AT responsável pela gestão do imposto, elaborou, em 01.12.2015, uma informação* (1ª) na qual reconhecida que as construções e as edificações referentes às barragens e às centrais electroprodutoras que se mantivessem na titularidade das empresas concessionárias eram prédios para efeitos fiscais, devendo por isso ser avaliados e inscritos na matriz. Esta informação teve despacho concordante da Diretora Geral da AT em 22.12.2015 e desencadeou o processo de avaliação das barragens que estivessem nessa situação.

Esta informação mais não fez que corroborar o entendimento vertido no Ofício Circulado 5194.9/91, de 28.11, ou seja: (i) Estão excluídos da tributação os bens incluídos no cadastro nos bens do domínio público do Estado, (ii) deverão inscrever-se nas matrizes prediais os bens incluídos no património da empresa, comerciáveis nos termos do direito privado, nomeadamente os edifícios afetos à administração e serviços administrativos,….e, em geral, todos os edifícios e construções não expressamente reconhecidos como coisas públicas”.

Porém, em 05.05.2016, os serviços jurídicos da AT elaboram uma outra informação* (2ª) a pôr em causa as conclusões da primeira informação, argumentando que a alínea d) do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15.10, declara que todas as barragens de utilidade pública são classificadas como bens do domínio público. Assim, independentemente das construções e edificações estarem ainda na titularidade das empresas concessionárias, eram de opinião que as barragens eram bens do domínio público e que, por isso, se devia ouvir a APA.

Sobre esta esta questão: (a) o artigo 84º da Constituição da República Portuguesa elenca, em concreto, os bens pertencentes ao domínio público, deles não constando as barragens de utilidade pública, e remete para a lei aqueles que devem também ser integrados nesse domínio e (b) o Decreto-Lei n.º 477/80, que cria o inventário geral do património do Estado, classifica como: (i) bens do domínio público, as barragens de utilidade pública e (ii) bens do domínio privado, os bens do Estado não afetos a fins de utilidade pública.

No entanto, o decreto-lei estipula muito mais do que isso. Justifica a existência do inventário com a necessidade: (i) de serem identificados os bens de que o Estado é titular, (ii) fazer uma ideia do valor desses bens e confrontá-los com a dívida pública, (iii) apreciar a gestão dos negócios públicos e verificar em que medida as dívidas contraídas fizeram enriquecer o património do país, (iv) proceder ao cálculo correto do Produto Interno Bruto.

Espantosamente, ou não, estes elementos essenciais do decreto-lei foram ignorados na apreciação do mérito da decisão constante da segunda informação. Como anteriormente foi visto, as construções e as edificações referentes às barragens são bens privados, pertença do concessionário e mantêm esse estatuto até ao momento em que for dado por finda a concessão. Só após esse momento e nunca antes, é que os bens passam para o património do Estado, sendo então classificados como bens do domínio público ou do domínio privado do Estado.

O Estado não pode arrogar a titularidade de um bem que pertence a outro, nem confrontar o seu valor com a dívida pública quando, com eles nada despendeu e muito menos ajuizar as dívidas contraídas com o enriquecimento do património do País se não contraiu dívida e os bens ainda não integram o seu património? Em última instância questiono-me como é que um determinado bem pode pertencer, na íntegra e em simultâneo, a dois patrimónios distintos, um público e outro privado? Na minha modesta opinião não pode. Não é o facto de as barragens serem consideradas de utilidade pública que as transformam em bens do domínio público. É a sua passagem para a esfera jurídica e económica do Estado que as transformam em bens públicos.

Ouvida a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) esta limitou-se a confirmar aquilo que é o texto da lei e informou dispor de informação que permita identificar as barragens de utilidade pública*. No entanto, sobre o que era relevante nada foi questionado e nada foi dito, ou seja, saber se os bens privados do concessionário, antes do término da concessão, estão ou não, na posse do Estado?

Esta factualidade leva-me a questionar: (a) se os bens não são da EDP como é que eles constam do seu balanço**? (b) os revisores oficiais de contas que certificam as contas da EDP criaram alguma “reserva” em relação a esta realidade que tem um peso enorme no ativo da empresa? (c) será que o património do Estado está bem classificado e valorizado?

Se algo está errado, o que está errado?

Em resultado das reuniões estabelecidas com a APA, os serviços jurídicos da AT elaboraram, em 11.11.2016, uma nova informação* (3ª) a propor que “deveriam ser sustidos quaisquer procedimentos tributários em curso de inspeção, de avaliação, de tributação ou execução relativos a bens a que seja aplicável o entendimento ora manifestado pela APA”. Por despacho da Diretora da AT, de 18.11.2016, esta informação foi remetida aos serviços para procedimento e dado a conhecer ao Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

Surpreendentemente, este último despacho não só não manifesta qualquer concordância com o proposto, como não revoga o despacho anterior ***. Se o não revogou, ele encontra-se em vigor. E se assim é, as construções e edificações que se encontram na titularidade das empresas concessionárias são prédios para efeitos fiscais. A verdade porém é que os processos de avaliação das barragens de utilidade pública foram revistos e as liquidações do IMI anuladas, com manifesto prejuízo para o orçamento dos municípios. Prejuízo que se estende ao IMT que deveria ser cobrado e não foi.

Não é o facto da decisão de um tribunal arbitral ter dado razão à EDP em relação às liquidações de IMI de 2012 e 2013 e tendo como pressuposto a inexistência de prédio face ao disposto a alínea d) do artigo 4º do Decreto-Lei n.º 477/80, no qual a AT foi pouco diligente na defesa dos interesses do Estado, que tal facto possa determinar a revisão oficiosa de todos os procedimentos empreendidos, até porque não estamos na presença de decisões de um tribunal superior.

Pelo exposto sou de opinião que a avaliação destas barragens deveria ter prosseguido e serem sujeitas a tributação até ao momento em que fossem, efetivamente, integrados no domínio público ou no património privado do Estado, o que não ocorreria tão cedo em virtude da renovação das concessões verificada em 2007.

Está agora esclarecida a contradição entre as declarações do Ministro do Ambiente e do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais quando, na discussão sobre esta polémica, o 1º afirmou que se tratam de bens do domínio público (informação da APA) e o 2º que são bens de interesse público (informação da AT).

O que não está esclarecido é o porquê da não tributação destas barragens em sede de IMI e IMT?

* Documentos enviados pelo Governo à AR e disponibilizados publicamente.

**A titularidade privada da EDP sobre as barragens, na parte edificada, consta expressamente em duas cláusulas dos contratos de concessão e das respetivas adendas, celebradas entre o Estado e as concessionárias, que a APA assinou.

*** Na comissão de inquérito, questionada a DG da AT informou que o não revogou.

  • Colunista convidado. Antigo subdirector geral da Autoridade Tributária

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