De truques fiscais a escolhas reais: O debate que falta no Orçamento
A prioridade do próximo Orçamento não deveria ser mais um exercício de retoque fiscal. Portugal precisa de um choque de gestão pública.
O debate sobre o próximo Orçamento do Estado volta a centrar-se quase exclusivamente na fiscalidade e no seu impacto sobre o superavit do OE. Discute-se quem paga mais, quem paga menos, que imposto substitui qual, que dedução aparece ou desaparece. Esta lógica de engenharia fiscal (pequenas trocas, compensações e truques negociados através de milhares de benefícios fiscais negociados por detrás de cortinas bem opacas)tornou-se o centro das discussões políticas, económicas e mediáticas. Mas esta é apenas metade da equação. A outra metade, estrutural, decisiva e sistematicamente evitada, é a forma como o Estado gasta o dinheiro que arrecada e tal nunca é seriamente discutido. Portugal não pode continuar a discutir receitas sem enfrentar, sem tabus, a despesa pública.
A despesa não é um detalhe técnico: é o espelho das prioridades do país. E, no entanto, o escrutínio sobre a forma como o Estado utiliza os recursos é surpreendentemente (ou não) muito reduzido. O foco permanece em ajustar milimetricamente taxas e escalões, enquanto a máquina pública permanece em grande parte opaca, rígida e resistente à mudança. O resultado é um ciclo de aumento de impostos direto ou indireto, mascarado por novas designações e instrumentos, mas raramente acompanhado de uma reflexão séria sobre a sua eficiência, a qualidade do gasto público ou o retorno económico e social.
Sabemos que o Pais apresenta uma despesa pública estruturalmente elevada quando comparado com a sua base produtiva. Não é apenas a dimensão da despesa que importa, mas sobretudo a sua composição. Uma parte significativa é absorvida por despesas correntes (salários, prestações sociais, funcionamento de serviços) sem praticamente qualquer avaliação de resultados em termos do seu mérito social, e que deixam pouca margem para investimento público estratégico (feito à custa de fundos europeus e do PRR). O problema não está em pagar melhores serviços, mas em insistir num modelo que não os entrega, apesar do custo crescente.
A saúde é o exemplo mais paradigmático de como mais despesa não significa melhor serviço. A cada ano, o Orçamento aumenta verbas para o SNS, mas os resultados degradam-se: tempos de espera crescem, urgências colapsam e profissionais abandonam o sistema. Parte do problema reside na ausência de gestão eficiente e na incapacidade de controlar custos estruturais que crescem automaticamente, independentemente do desempenho. Mas há também um tema mais sensível, raramente enfrentado com seriedade política: o peso do desperdício, da má gestão e de práticas opacas, desde compras públicas sem escrutínio até contratualizações que favorecem fornecedores específicos. Relatórios do Tribunal de Contas têm identificado falhas, ineficiências e irregularidades com impacto de centenas de milhões de euros por ano. Antes de pedir mais impostos para financiar a saúde, é essencial garantir que o dinheiro existente não é absorvido por circuitos ineficientes ou zonas cinzentas onde o controlo é frágil.
Um dos efeitos colaterais desta ausência de debate sério sobre a despesa é que apenas um partido, a Iniciativa Liberal, tem hoje a coragem de colocar o foco na necessidade de escrutinar a gestão da despesa pública e assumir que ela tem de ser reduzida. Contudo, mesmo na IL falta ainda uma visão clara e estruturada sobre qual deve ser o papel do Estado e que parte da despesa pública é essencial, reformável ou dispensável. Ao não definirem com precisão a arquitetura, as funções e os limites da máquina pública, deixam por completar o passo decisivo: explicar não apenas que despesa deve ser cortada, mas que Estado deve permanecer. Sem essa visão, corre-se o risco de alimentar a ideia de que existe um “Estado leve” disponível facilmente através de um decreto, quando na verdade a redução sustentável da carga fiscal exige um redesenho profundo do setor público, com rigor, prioridades, timings e escolhas explícitas e não cortes automáticos ou meramente declarativos.
O Estado continua a gastar demasiado em processos redundantes, sobreposições institucionais, estruturas sem avaliação e programas cuja eficácia raramente é medida. Não há qualquer cultura de “value for money”, e aqui falo por experiência própria no período que exerci funções públicas. A modernização administrativa avança devagar e a digitalização, embora real, convive com burocracias anacrónicas que aumentam custos e reduzem a produtividade pública e aniquilam a privada. Sem rever esta arquitetura de despesa, o país permanecerá preso a uma espiral de pressão fiscal e crescimento anémico.
Reformar a despesa pública exige coragem política e consistência técnica. Implica metas plurianuais de eficiência, avaliação independente de programas, simplificação administrativa profunda e mecanismos de responsabilização que premiem resultados e não a mera execução orçamental. Exige também uma mudança cultural: a despesa não pode ser vista como intocável sempre que está associada a setores sensíveis. Pelo contrário, é nesses setores – educação, saúde, administração pública – que maior retorno existe se o dinheiro for bem utilizado e maior prejuízo quando não é.
Num país com recursos escassos, discutir despesa pública não é um exercício ideológico. É uma condição para melhorar serviços, reduzir a carga fiscal e abrir espaço ao investimento privado. Não se trata de cortar por cortar, mas de gastar melhor: eliminar desperdício, reorganizar funções, modernizar processos e investir onde o impacto económico e social seja comprovado.
A prioridade do próximo Orçamento não deveria ser mais um exercício de retoque fiscal. Portugal precisa de um choque de gestão pública. Sem transparência, sem avaliação e sem coragem para enfrentar corporações e interesses instalados, continuaremos a pedir mais aos contribuintes para obter o mesmo … ou pior. É tempo de assumir que não há milagre fiscal possível sem uma transformação profunda da despesa. Ou o Estado se reforma, corta desperdício e redefine prioridades de forma clara, ou estaremos condenados a discutir eternamente de onde virá a próxima receita para alimentar uma máquina que já não entrega o que promete. A escolha é inescapável: ou continuamos na ilusão de que tudo se resolve com novos impostos, ou enfrentamos, finalmente, o debate que há décadas adiamos.
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