Despesas – Isto É “Gozar” com Quem (Tele)Trabalha?

  • Ricardo Lourenço da Silva
  • 17 Fevereiro 2022

“Há gato escondido” nas despesas em teletrabalho. A forma de cálculo das despesas é a grande questão e a verdade é que, a este respeito, o legislador não cuidou de dar respostas.

Com a entrada em vigor da Lei n.° 83/2021, de 6 de dezembro, houve significativas alterações ao regime de teletrabalho e, consequentemente, ao Código do Trabalho.

Bom, antes mesmo de avançar, importa dar nota que acompanhamos de perto o entendimento do Senhor Professor João Leal Amado: o diploma não é perfeito, é certo.

Apresenta até talvez, amiúde, soluções em que não foi particularmente ousado e outras em que não sobressai a clareza? Sim, com certeza. Mas, convenhamos, o diploma aperfeiçoa, notoriamente, o quadro jurídico do teletrabalho, uma vez que, de uma forma geral, reforça direitos e deveres dos teletrabalhadores, por vezes até ensaiando soluções com alguma criatividade (v.g. matéria de desconexão).

Dir-se-á, com razão, então qual é o “problema”? É que, como veremos, “há gato escondido” nas despesas em teletrabalho.

É bom notar que o referido diploma legal estipula que o empregador deve compensar integralmente o trabalhador por todas as despesas adicionais que comprovadamente decorram da aquisição ou uso de equipamentos e sistemas informáticos ou telemáticos necessários à realização do teletrabalho, incluindo os acréscimos dos custos da energia e da internet.

As dúvidas começam a surgir quando a legislação laboral determina que o apuramento do valor a pagar ao trabalhador deve ter por base a comparação com as suas despesas homólogas, no mesmo mês do último ano anterior à aplicação desse acordo.

Por outras palavras, a nova norma assenta no princípio que a compensação terá (i) que resultar do acréscimo de custos em teletrabalho e (ii) que ser provada pelos trabalhadores em comparação com o mesmo mês do ano anterior. É isto, essencialmente.

Sucede que, de certa forma, reside aqui uma grande componente subjetiva. A forma de cálculo das despesas é a grande questão e a verdade é que, a este respeito, o legislador não cuidou de dar respostas. Por isso, são vários os problemas “práticos” que importam aqui considerar.

Neste sentido, e para reflexão do leitor, partilhamos algumas notas com as questões, dúvidas e conclusões a que fomos chegando relativamente às despesas em regime de teletrabalho:

  1. Primeira nota: podemos começar pelo período de tempo que serve de base ao cálculo deste acréscimo: a comparação com o mês homólogo do ano anterior. Ora, em janeiro/fevereiro (etc.) de 2021 grande parte dos trabalhadores já se encontrava em teletrabalho. O que significa que o aumento de custos poderá, na verdade, ser residual ou mesmo nulo.
  2. Segunda nota: dois ou mais trabalhadores, de empresas distintas, em teletrabalho. Como é que é possível documentar, monitorizar ou repartir os gastos de energia imputáveis a cada membro do agregado familiar por forma a assegurar que não existam situações de “abuso” no cálculo do acréscimo? Advertimos, desde já, que nos parece estarmos perante uma autêntica diabolica probatio. Além disso, levantam-se questões muito sensíveis ao nível do tratamento de dados pessoais.
  3. Terceira nota: os serviços de Internet encontram-se, por regra, num pacote que integra canais de televisão. O nó górdio aqui radica em algo que já aflorámos: na prática, a impossibilidade de quantificar, por um lado, os dados consumidos no exercício/desempenho das funções; e, por outro lado, aqueles que foram utilizados para fins pessoais.
  4. Quarta nota: no caso de um trabalhador que tenha entrado numa empresa em fevereiro de 2022, a compensação deve ser apurada por comparação com o mês de fevereiro de 2021, período em que o colaborador não estava nessa empresa?
  5. Quinta nota: no caso de um trabalhador estrangeiro que, em fevereiro de 2022, chega a Portugal para começar a laborar por cá nesse mês, a compensação deve ser apurada por comparação com as despesas do mês homologo do país onde se encontrava em fevereiro de 2021? Solução, no mínimo, bastante discutível.
  6. Sexta nota: não menos frequente poderá ser o cenário em que as despesas adicionais que os trabalhadores apresentam à sua empresa, sejam sustentadas numa fatura de eletricidade ou de rede de internet que não esteja em seu nome. Nestes casos, como conseguirá o trabalhador comprovar que é efetivamente uma despesa sua? Como é que opera o direito ao reembolso destes custos acrescidos?

Antecipando dificuldades e procurando evitar conflitos, algumas empresas decidiram, antes, atribuir um valor mensal fixo para compensar os trabalhadores pelo acréscimo de despesas em regime de teletrabalho. Um parêntesis aqui: existem também empresas a evitar esta opção porquanto o trabalhador só terá direito a receber as despesas que consiga apresentar prova do acréscimo – logo, estariam a pagar um “subsídio” mensal que, em bom rigor, até poderia não ser devido, uma vez que não existiu, naquele mês em específico, um acréscimo de despesas por comparação com o mês homólogo.

De todo o modo, salvo melhor opinião, entendemos que o valor mensal fixo pode, ainda assim, ser a solução que melhor se ajusta à realidade das empresas e aos interesses dos trabalhadores.

Contudo, a verdade é que mesmo esta solução parece enfrentar dificuldades.

É que, perante a letra da lei, entendemos discutível se, de facto, por um lado, é concedida margem às partes para a negociação do referido valor fixo de compensação; bem como ainda, por outro lado, em alternativa, se será (ou não) admissível às empresas decidir/impor unilateralmente os montantes justos e adequados a compensar um potencial acréscimo de despesas mensais.

Ou seja, e por outras palavras, se a lei realmente confere margem para determinar(em) um valor fixo que, em certos casos, pode ser superior e noutros inferior ao que resultaria do pagamento efetivo do acréscimo de despesas em regime de teletrabalho.

Mais, suscitam-nos ainda dúvidas que, num cenário em que a empresa decide unilateralmente o montante (ou ainda no caso em que até existe o acordo das partes para o pagamento fixo e mensal de um valor), isso signifique que o trabalhador “feche” definitivamente as portas a uma ação judicial com vista a reclamar a diferença entre o valor mensal atribuído/pago e aquele que entende que é efetivamente o acréscimo mensal de despesas que incorre em regime de teletrabalho (exigindo-se aqui, naturalmente, prova concreta, precisa e especifica que quantifique a medida do acréscimo de custos).

Prosseguindo, a lei determina que o valor pago pelo empregador para compensar o acréscimo de despesas deve ser considerado, para efeitos fiscais, um custo para o empregador e, por isso, não constitui rendimento para o trabalhador.

Neste sentido, cumpre perceber como é que a empresa pode enquadrar fiscalmente esta compensação fixa e mensal? É que, perante um pagamento com esta tipologia, reconhecemos que não nos choca se a Autoridade Tributária, na perspetiva da empresa, desconsiderar este valor como custo e, consequentemente, o venha a considerar, antes, rendimento do trabalhador (com efeitos na incidência fiscal, naturalmente).

Aqui chegados forçoso se torna epilogar: cada cavadela, sua minhoca!

Com o teletrabalho a assumir um papel de destaque no “novo normal”, assume maior preponderância o vazio legal em que vivem os empregadores e os trabalhadores.

Se reconhecemos que densificar a regulação desta realidade constituiu um desafio manifestamente complexo, a verdade é que entendemos que não é razoável admitir a manutenção do atual cenário de incerteza, o qual dificulta o tão desejado ambiente de paz e coesão social, potencia litigância e, além disso, desencoraja as empresas de adotarem medidas para compensar, de forma justa, os trabalhadores pelo acréscimo de despesas profissionais por eles suportadas.

Se os mais recentes desenvolvimentos legislativos representam uma clara declaração de intenções, pede-se ao Governo que desenvolva uma célere e, acima de tudo, clara resposta que preencha estas lacunas, criando legislação complementar ou emitindo esclarecimentos cristalinos que defendam os interesses dos empregadores e dos trabalhadores.

Até lá, voltamos a apelar à “lei do bom senso”! Bom senso que vale, é importante frisar, para ambas as partes.

  • Ricardo Lourenço da Silva
  • Advogado sénior da Antas da Cunha Ecija

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