Dia de Camões, de Portugal (e da Rússia?)

  • Elsa Veloso
  • 14 Junho 2021

A transferência de dados para países terceiros, como é o caso da Rússia, depende da existência de decisões de adequação que garantam a conformidade com o RGPD o que não se verifica in casu.

Portugal acordou no dia 10 de junho com a notícia de que a Câmara Municipal de Lisboa teria enviado os dados pessoais dos promotores de uma manifestação contra a prisão de um opositor de Vladimir Putin, às portas da embaixada da Rússia, no passado mês de janeiro, para a embaixada e um ministério russos.

A justificação adotada pela CML assenta numa prática habitual de transmissão de dados nestes casos, em específico, para organismos públicos e entidades nacionais e internacionais, onde se realizam as manifestações, com base num protocolo supostamente baseado numa lei. Falamos da Lei 406/74, de 29 de agosto, que garante e regulamenta o direito de reunião.

Não resulta desta lei qualquer obrigação de comunicação de dados pessoais para países terceiros visados em qualquer ato de reunião, manifestação ou protesto, seja de que natureza for. O Decreto-Lei de 74 impõe a comunicação, por parte dos três promotores, além da indicação da hora, do local e do objeto da reunião e, quando se trate de manifestações ou desfiles, a indicação do trajeto a seguir, para posterior comunicação aos órgãos de polícia de segurança pública, em nome de questões de segurança e conhecimento dos organizadores, em caso de necessidade da polícia.

Qualquer ato que consubstancie o tratamento de dados (e que abrange a recolha e a sua divulgação) deve estar em linha com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (doravante RGPD), cuja aplicação em cada Estado-Membro é direta e imediata, revogando qualquer ato normativo ou legislativo que seja contrário ao mesmo.

Para que o tratamento em questão seja lícito, é necessário que os dados pessoais tenham sido transmitidos tendo uma base de licitude e os requisitos previstos no RGPD, o que não aconteceu. Por outro lado, a transferência de dados para países terceiros, como é o caso da Rússia, depende da existência de decisões de adequação que garantam a conformidade com o RGPD o que não se verifica in casu.

Por último, a própria política de privacidade da Câmara Municipal de Lisboa no sítio web, não só não enuncia as finalidades em concreto e fundamentos de licitude, tal como exigido nos temos do art.º 13.º do RGPD (Direito de informação aos titulares dos dados), como refere expressamente que não tenciona transferir para países terceiros ao espaço europeu e que, a acontecer, apenas com o consentimento prévio do titular.

O Decreto-Lei em causa não está desatualizado, e nem é obsoleto face à atual realidade porque não obriga à transmissão de dados para as entidades – russas – que estão a ser objeto de contestação.

O Encarregado de Proteção de Dados, nos termos do art.º 39.º do RGPD, tem como funções primordiais informar e aconselhar o responsável pelo tratamento, controlar a conformidade com o regulamento e repartir responsabilidades, e ainda, sensibilizar e formar quem manuseia e trata dados. A prática de divulgação de informação às embaixadas, parece-nos algo demasiado grave e, da maior importância, para que passe incólume aos olhos de quem de direito, com poderes para rever, alterar e revogar políticas e procedimentos, face ao Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados.

Não se pode admitir a ausência da notificação à CNPD num prazo de 72 horas, assim que a CML teve conhecimento da violação dos dados pessoais, conforme o disposto no art.º 33.º do Regulamento. Além dessa adaptação e obrigação legal, todas as pessoas que tratam operacionalmente dados pessoais devem ser sensibilizados e formados no tema para cumprimento dos princípios patentes no Regulamento.

O Regulamento prevê ainda que os titulares dos dados sejam informados da possibilidade de reclamação junto da Comissão Nacional de Proteção de Dados, sendo uma das primeiras ações a tomar na esfera de cada um, alvo da violação de dados (além de uma eventual comunicação junto do Encarregado de Proteção de Dados e da obrigação de notificação pela CML junto da CNPD).

Os vários ilícitos aqui em causa comportam a aplicação de coimas que podem ir até aos vinte milhões de euros. A estrutura do Regulamento assenta numa base de prevenção e mitigação e não numa base puramente remediadora. Devem ser implementas medidas técnicas e organizativas necessárias à mitigação e diminuição do impacto junto dos titulares. Certo é, que a confidencialidade foi fortemente afetada, com consequências junto dos próprios e, até dos seus familiares, de forma incalculável e futuramente imprevisível.

É mais do que ponto assente que, qualquer embaixada alvo de um ato de manifestação ou protesto, poderá ter conhecimento da identidade dos organizadores e participantes, contudo, não exonera o Responsável pelo Tratamento, isto é a CML, de cumprir com as obrigações impostas pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados.

Episódios como estes devem servir de lição, ou pelo menos, aviso, para que todos os envolvidos no tratamento de dados pessoais, seja a que título ou natureza for, estejam em conformidade e em linha com o Regulamento no que tange aos seus princípios em prol da segurança dos titulares.

Cabe agora à CNPD, prosseguir com a investigação, correção e aplicação (se necessário) das respetivas coimas, esperando-se mais do que mão pesada, uma mão exemplar.

  • Elsa Veloso
  • Advogada especialista em Privacidade e Proteção de dados e CEO da DPO Consulting.

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