
Ensino superior barato? Um erro económico e social
O conhecimento pode não ter preço, mas a educação superior tem custos que não podem ser ignorados.
No mês passado, o ministro da Educação disse algo que parece óbvio, mas que muitos preferem ignorar: “reduzirmos as propinas é colocar toda a sociedade a pagar o ensino daqueles que tiveram o privilégio de o frequentar, e isso é regressivo.” A frase gerou polémica, mas toca no centro do problema. O debate sobre propinas não é apenas ideológico — é também económico, social e moral.
Quando frequentei a universidade, na viragem do milénio, pagava 980 euros de propina. Atualizado pela inflação, esse valor corresponderia hoje a cerca de 1.600 euros. Atualmente, a propina anual é de apenas 697 euros (que subirá para 710 euros em 2026/27). Em termos reais, os estudantes de hoje pagam menos de metade do que pagavam há 25 anos. Não faz qualquer sentido falar em gratuitidade ou em reduzir ainda mais: o que existe é já um forte desfasamento para baixo, que fragiliza as universidades e desvaloriza o sistema.
É importante sublinhar que o ensino superior nunca é gratuito. Nem pode ser. Primeiro, o ensino obrigatório termina no 12º ano. Em segundo lugar, cada aluno do ensino superior público custa ao Estado, em média, entre 6.000 e 7.000 euros por ano, dependendo da instituição e do curso. Os salários dos docentes, os laboratórios, os equipamentos, as bibliotecas, as residências e as infraestruturas são despesas permanentes e elevadas. As propinas de cerca de 700 euros cobrem apenas uma pequena fração desse custo total, deixando 90% a cargo dos contribuintes.
E é aqui surge a questão da regressividade. Tornar o ensino superior mais barato para todos, ou mesmo gratuito, significa que trabalhadores com baixos salários, que raramente concluíram estudos superiores, passam a financiar através dos seus impostos a formação de jovens que, em média, terão carreiras mais bem remuneradas. É uma redistribuição ao contrário: da base para o topo. Se o objetivo é justiça social, este é o pior caminho. O papel do Estado deve ser outro: garantir que nenhum estudante talentoso fica de fora por falta de meios. E isso consegue-se com bolsas de estudo dirigidas a quem mais precisa, não com gratuitidade universal.
Defender propinas não é penalizar os estudantes. É reconhecer que o ensino superior é um investimento em capital humano, em empregabilidade e em mobilidade social. Como todo o investimento, deve implicar esforço, compromisso e responsabilidade. Quando o custo direto desaparece, instala-se a ilusão de que o ensino superior é apenas mais uma etapa da escolaridade obrigatória. Isso conduz a más escolhas de curso, percursos eternizados, elevadas taxas de abandono e uma ligação mais fraca ao mercado de trabalho. Além disso, existe o risco da massificação sem qualidade. Num mercado de trabalho funcional, os diplomas sinalizam competências diferenciadoras. Mas quando todos têm licenciatura, esta deixa de distinguir; quando todos têm mestrado, o mestrado passa a ser apenas o mínimo; quando todos têm doutoramento, este perde excecionalidade. O resultado é a sobre-qualificação improdutiva: jovens que acumulam diplomas sem encontrarem empregos compatíveis, nem em responsabilidade nem em remuneração. No fundo, tudo o que vale a pena dá trabalho e custa dinheiro. O ensino superior não pode ser exceção. Algum elitismo é necessário para não o banalizar: ser licenciado deve continuar a significar distinção, mérito e esforço. Tornar o ensino superior mais barato (ou gratuito) não é justiça social — é apenas desvalorização.
Do ponto de vista económico, subsidiar (em demasia) o ensino superior para todos cria vários problemas:
- Efeito de preço relativo: se o preço pago pelo estudante fica artificialmente baixo em relação ao custo real, o ensino superior torna-se “barato demais” face a alternativas como a via técnica ou a entrada imediata no mercado de trabalho, conduzindo a escolhas ineficientes.
- Problema do free rider: quando alguém não paga praticamente nada pelo curso, tende a desperdiçar mais recursos — faltas às aulas, abandono, repetências, percursos eternizados. Todos esses custos recaem sobre a sociedade. Como bem lembrava João César das Neves, “não há almoços grátis”: o que parece gratuito é apenas pago por outros.
- Externalidades vs. benefícios privados: é verdade que a educação superior gera benefícios coletivos (mais inovação, mais produtividade, maior civismo). Mas a maior parte dos ganhos é privada: salários mais altos, menor risco de desemprego, maior mobilidade social. Faz sentido que o custo seja partilhado — parte pelo Estado, parte pelo estudante.
- Sustentabilidade intergeracional: congelar ou eliminar propinas hoje compromete o financiamento futuro. Estamos a transferir encargos para os contribuintes de amanhã, seja através da dívida pública, seja da degradação da qualidade.
- Crowding out orçamental: cada euro gasto a subsidiar propinas de quem pode pagar é um euro que deixa de ser investido em políticas sociais mais eficazes, como pré-escolar gratuito, apoio a famílias pobres, saúde ou residências estudantis. O custo de oportunidade é evidente.
- Equidade horizontal: dois estudantes de origens muito diferentes pagam a mesma propina reduzida. A gratuitidade universal agrava essa injustiça, enquanto um sistema de bolsas seletivas resolve o problema.
- Inflação e erosão do financiamento: desde 2020, as propinas não foram atualizadas. Nesse período, os preços subiram cerca de 20%. O congelamento reduziu o financiamento real das universidades, com consequências óbvias: salários estagnados, dificuldade em atrair e reter talento, laboratórios degradados e erosão da qualidade pedagógica e científica.
Mas claro que é fácil fazer política com promessas de gratuitidade. Soa generoso, mas é financeiramente insustentável e socialmente injusto. Ajuda sobretudo quem já tem mais capital cultural e melhores condições de acesso, enquanto retira recursos a quem mais precisa. O resultado é um sistema que nivela por baixo, sacrifica a qualidade e ilude os cidadãos com soluções que parecem progressistas, mas que na realidade são regressivas. Portugal não precisa de um ensino superior barato; precisa de um ensino superior exigente, justo e sustentável. Isso significa reconhecer os custos reais do sistema, aceitar que os estudantes devem assumir parte deles, e ao mesmo tempo reforçar os mecanismos de apoio social e de mérito. Não significa congelar propinas e fingir que o tempo e a inflação não existem. O verdadeiro papel do Estado não é substituir a responsabilidade individual por uma promessa universalista — mesmo que alguns preferissem assim — mas sim garantir que o mérito e o esforço não são travados por falta de meios.
Assim, um modelo sustentável para o ensino superior deve assentar em quatro pilares:
- propinas moderadas, mas ajustadas à inflação, refletindo parte dos custos reais e dos retornos futuros;
- bolsas reforçadas e bem direcionadas para estudantes carenciados e meritórios;
- valorização das vias técnicas e profissionais, combatendo a obsessão pela massificação universitária;
- exigência académica, para preservar a qualidade e a credibilidade das instituições.
O conhecimento pode não ter preço, mas a educação superior tem custos que não podem ser ignorados. Fingir que o ensino superior pode ser gratuito é um erro económico e social. Ao contrário do que muitos defendem, não é a baixar propinas ou a impedir que elas subam que se garante igualdade de oportunidades, mas sim a reforçar os apoios seletivos. A verdadeira justiça está em equilibrar responsabilidade individual com apoios bem direcionados. O resto é demagogia.
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