A Comunidade mudou de nome para União e, paradoxalmente, surge cada vez menos unida.

O meu último artigo recebeu um comentário de quem se ofendeu por tê-lo interpretado como sendo uma apologia da covid. Vamos lá esclarecer. A minha síndrome de Pollyanna permite-me encontrar aspectos positivos na situação que estamos a viver, mas não é tão desmedida que torne a pandemia numa coisa boa. Nem reunindo todo o meu optimismo, partilhei da previsão da Ministra da Agricultura quanto aos putativos benefícios para as exportações agroalimentares portuguesas gerados pela epidemia na China.

Os Números da Crise, área que a Pordata lançou há uns dias, não são animadores. Os indicadores de confiança, dos consumidores e das empresas dos vários sectores, estão em níveis de quando tínhamos a troika por cá. Em termos homólogos, o número de novos desempregados inscritos no IEFP aumentou 34%, em Março. Mais de metade das empresas reduziu pessoal. E mais de três quartos estão a sofrer uma diminuição no volume de negócios. Portanto, o meu optimismo também não dá para achar que a economia portuguesa possa crescer 1% em 2020, como previu um dos dez economistas que o Expresso entrevistou para a edição de 21 de Março.

Segundo o World Economic Outlook do FMI, o “Grande Confinamento” vai provocar uma diminuição de 8% do PIB português. No cenário base do Banco de Portugal, a redução é de 3,7%, que é mais ou menos o cenário optimista do NECEP da Universidade Católica, para quem uma contracção do produto de 10% constitui o cenário central. Já as Previsões de Primavera da Comissão Europeia colocam Portugal com uma queda de 6,8%.

Eu, à semelhança do que o Governo fará no Programa de Estabilidade, não arrisco um número. Nem uma letra para descrever a recuperação. Há uma anedota em que um astrólogo diz a um economista: “A Astrologia é mais científica que a Economia. Eu acerto em metade das minhas previsões; as suas não chegam a isso”; e responde o economista: “Isso é por causa dos choques externos. As estrelas não têm dessas coisas”. Ora, o choque provocado pelo SARS-CoV-2 tem tantos elementos que desconhecemos que estar a dar um número para a dimensão da crise é quase digno de oráculo. E eu não tenho dons de vidência.

Aliás, falhei redondamente na minha presciência de que esta seria uma ocasião para vermos a União Europeia a fazer jus ao nome e a comportar-se de modo unido e solidário. Elevado optimismo, lá está. Que me passou imediatamente com a sugestão do ministro das Finanças dos Países Baixos de que Espanha fosse investigada por não ter margem orçamental para lidar com os efeitos da pandemia.

Não há muito para investigar. Nenhum país está orçamentalmente preparado para fazer face a esta situação. Nem é desejável que esteja. De cada vez que um Estado apresenta um excedente orçamental, está a cobrar impostos acima dos que necessita para fazer face às despesas que tem. Tal justifica-se nos períodos de expansão económica, para que, nas fases baixas do ciclo, se possa incorrer em défices sem ameaçar a sustentabilidade das finanças públicas. Mas a ideia é que, no conjunto do ciclo económico, o saldo orçamental esteja equilibrado.

Ora, uma epidemia que pára grande parte da actividade económica não é algo que faça parte da normal flutuação da economia. Nas contas que o Eurostat divulgou a semana passada, o PIB da área do Euro teve uma queda 3,8% neste primeiro trimestre de 2020, face ao anterior. Em termos anuais, a Comissão Europeia espera que o tombo seja de 7,7%. Convém lembrar que, segundo o Pacto de Estabilidade e Crescimento, basta uma variação anual negativa de 2% para que se esteja em recessão económica grave. Nas projecções económicas que o BCE antecipou, um decréscimo do PIB de 5% é o cenário simpático; no severo, a quebra chega aos 12%. Ter, à cautela, um saldo orçamental preparado para enfrentar um impacto desta magnitude seria só andar a extorquir a economia.

Eu posso concordar com Wopke Hoekstra que Portugal não é um exemplo de responsabilidade orçamental. Aliás, isso nem é bem matéria de opinião, é mais uma questão de factos, patente na base de dados macroeconómicos da Comissão Europeia, a AMECO. Nos dezassete anos entre 1995 e 2011, só por duas vezes o nosso défice orçamental não excedeu os 3% do PIB que Maastricht estabeleceu como limite. Com vacas gordas ou magras, o nosso estado normal tem sido o de défice excessivo. Em 2010, a nossa dívida pública tornou-se maior que o nosso PIB; ficámos tão endividados que, a 6 de Abril de 2011, tivemos de pedir (pela terceira vez desde 1974) para ser resgatados.

Mas, desde então, implementámos um programa de consolidação orçamental. Podemos discutir as estratégias de austeridade que, com essa ou outra designação, foram seguidas. Mas o facto é que passámos o défice de 11,4% do PIB em 2010 a um excedente de 0,2% em 2019 e que temos, desde 2012, um saldo primário estrutural positivo – e superior ao dos Países Baixos, já agora.

Portanto, o discurso do governante holandês não é só de reconhecida falta de compaixão. É de quem quer castigar duas vezes o mesmo crime. Ou, talvez, de quem quer apenas castigar. O problema é que esta tem sido a tendência dos últimos anos. Dívidas soberanas, refugiados, um vírus: tudo tem sido pretexto para alimentar diferenças, para aumentar divisões; para deixar bem claro que, na adversidade, é cada um por si. Ironicamente, a Europa que conseguiu formar uma comunidade a partir de Estados vencidos e vencedores, de ocupantes e ocupados, não se consegue entender quando uma pandemia, surgida do outro lado do mundo, a atinge. A Comunidade mudou de nome para União e, paradoxalmente, surge cada vez menos unida.

Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.

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