Extremos que não deveriam tocar-se
Resta-nos esperar pelo que falta de campanha eleitoral, com a clara sensação de que os estragos estão feitos e de que os grandes estadistas, felizmente, não eram feitos destas fibras permeáveis.
A indefinição das palavras de Jean-Luc Mélenchon transformou-se no tema quente da primeira semana da campanha eleitoral para a segunda-volta das presidenciais francesas. O candidato da “França Insubmissa”, que obteve mais de 19% dos votos na primeira-volta, recusou assumir o seu apoio a Emmanuel Macron no confronto com a candidata de extrema-direita, Marine Le Pen, na segunda-volta de dia 7 de Maio.
A recusa do líder da Frente de Esquerda expôs de forma clara a crise que atravessa a clivagem ideológica tradicional entre esquerda e direita, colocando, indirectamente, em pé de igualdade a defesa do liberalismo económico e a defesa de um modelo totalitário. Se me parece evidente que Mélenchon e a sua coligação não são Le Pen e a Frente Nacional, a não assunção automática de uma posição contra a extrema-direita, mesmo que envolta numa justificação de coerência, mais não faz do que normalizar o que não deve ser normalizado. Neste contexto, sobressaem duas perguntas fundamentais:
- Caso tivesse sido Jean-Marie Le Pen o candidato da FN, a posição de Mélenchon teria sido idêntica ou teria, como há 15 anos, apoiado automaticamente o respectivo adversário? Caso a posição fosse diferente, isso significa que Marine Le Pen e a FN já não são corpos estranhos ao sistema e que começaram a ser aceites pelo mesmo.
- Caso Mélenchon tivesse passado à segunda-volta contra Le Pen, o que estaria a militância da Frente de Esquerda a bradar perante eventuais indefinições de Fillon e Macron em apoiá-lo contra Le Pen? É bem provável que, nesse caso, o discurso do anti-fascismo estivesse a ser utilizado em doses massivas.
O grande erro de Mélenchon passa por não ter compreendido que há algo de mais elevado em jogo nestas eleições. A sua proposta de referendo interno para definir a posição perante a segunda-volta, mesmo que venha a resultar no apoio a Macron, causou danos sérios aos sistemas político e partidário franceses, reforçando durante alguns dias a candidatura de Le Pen, que aproveitou para pôr em evidência os pontos comuns no programas dos dois candidatos. A velha desculpa da necessidade de auscultar militantes e simpatizantes cai por terra quando uma das duas candidaturas em causa é anti-semita, não critica abertamente o colaboracionismo entre a França de Vichy e o nazismo e põe em causa a veracidade do Holocausto.
Jean-Luc Mélenchon não percebeu ou não quis perceber que nesta eleição está em jogo a Liberdade, a República e a Democracia (não incluo a Europa, porque acredito que se possa ser anti-europeista e democrata). Depois de defendidos e consolidados estes valores, chegarão as eleições legislativas, tempo para definir os caminhos a seguir dentro do quadro democrático; mais ou menos Estado na economia; mais ou menos Europa; mais ou menos iniciativa privada. Porém, esse será o tempo das legislativas. Até lá, valores mais altos se levantam.
Resta-nos esperar pelo que falta de campanha eleitoral, com a clara sensação de que os estragos estão feitos e de que os grandes estadistas, felizmente, não eram feitos destas fibras permeáveis. Como escreveu Winston Churchill a propósito de Adolf Hitler, que considerava com a encarnação do mal absoluto: “Se Hitler tivesse invadido o inferno, eu faria, pelo menos, uma menção favorável ao diabo na Câmara dos Comuns”. Calculo que isto não diga muito a Mélenchon. No fundo, Churchill, apesar de conservador, também era um perigoso liberal.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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