Governação Decisiva entre Risco e Dimensão
Helena Chaves Anjos analisou profundamente a revisão do regime de Solvência II prevendo as grandes mudanças em Portugal . Deixa recomendações sobre a palavra mágica: Proporcionalidade.
A recente revisão da Solvência II, concretizada no Solvency II Delegated Regulation (EU) 2025/7206, de 29 de outubro de 2025, reforça a proporcionalidade como princípio operativo de governação, e não apenas interpretativo de regulação. Nos seus pareceres técnicos recentes, a EIOPA sublinha que a aplicação proporcional deve ser “mais previsível, mensurável e ligada ao risco real”. Em paralelo, a Comissão Europeia destaca a importância de aliviar encargos administrativos desproporcionados sobre entidades de menor escala e complexidade.
A Proporcionalidade da Supervisão na Diversidade
Esta revisão de 2025 vem consolidar mais de uma década de evidência empírica e académica, calibrando o quadro prudencial de acordo com riscos estruturais, heterogeneidade das empresas e os objetivos de política pública europeia. O novo regime de proporcionalidade pode ter um impacto direto na forma como o setor segurador português será supervisionado e na necessidade de reorganização dos modelos internos de governação de risco, desde a estrutura de controlo até à articulação entre funções-chave, apetite ao risco e processos de decisão.
Este novo enquadramento regulatório coincide com um momento particularmente sensível para o setor nacional. A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) tem destacado, nos seus relatórios de estabilidade financeira, a heterogeneidade do setor, de acordo com elevada concentração de mercado, coexistindo com um segmento expressivo de operadores de média e pequena dimensão sob sua supervisão, cuja dinâmica de negócio é estruturalmente distinta. O novo regime simplificado, agora introduzido, ao reconhecer esta dualidade, e ao permitir classificar as entidades entre não complexas e complexas, Small and Non-Complex Undertakings (SNCUs) e non-SNCUs surge, portanto, num contexto onde a proporcionalidade não é um mero imperativo regulatório europeu — mas uma necessidade operacional nacional ― comum a várias jurisdições Europeias.
A Análise de Risco Diferenciada
De facto o elemento mais transformador da revisão é, justamente, o novo regime aplicável às SNCUs. A definição assenta em critérios quantitativos (prémios brutos em Não-vida e provisões técnicas em Vida) e qualitativos (modelo de negócio, simplicidade do risco, governação). A lógica é clara: entidades abaixo de determinados limiares quantitativos podem ser elegíveis ao beneficiar de requisitos simplificados, mantendo o essencial da robustez prudencial. Por seu turno outras entidades, de maior porte, mediante solicitação e cumprimento de critérios qualitativos, poderão ver aprovados o perfil de empresas de seguros não complexas. Por fim manter-se-ão as empresas de seguros e grupos complexos, denominadas de non-SNCUs, os quais estarão sujeitos a novas medidas de análise macroprudencial e planos de gestão de liquidez.
A discussão torna-se crítica quando aplicado este enquadramento ao mercado português. As diferentes calibragens possíveis dos limiares — mais altos ou mais baixos — alteram significativamente o número de seguradoras que poderão vir a ser abrangidas. Se o limiar for mais elevado, mais entidades nacionais qualificam; se for mais baixo, o universo pode restringir-se. Testes preliminares de análise financeira, demonstra que Portugal se situa exatamente na fronteira onde ligeiras variações definem impactos muito distintos, pese embora a expressividade elegível.
Do ponto de vista da governação, colocam-se desafios imediatos:
- As entidades elegíveis terão de reconfigurar processos de reporte mais simplificado e funções-chave, garantindo, contudo, que a simplificação não se traduz em fragilidade;
- As entidades não elegíveis terão de reforçar práticas de governação mais robustas, de acordo com a complexidade intrínseca o que irá exigir requisitos tradicionais.
Para a supervisão, o desafio é igualmente imediato, mas simétrico, de forma a assegurar que:
- A simplificação se aplica às entidades que realmente detêm um negócio, governo e riscos relativamente simples;
- A supervisão se centre nas áreas onde a complexidade e risco de impactos sistémicos são maios relevantes.
Neste contexto a proporcionalidade não representa um alívio regulamentar, mas sim uma nova arquitetura estruturada da Solvência II, para alinhar o esforço regulatório com o risco real da governação das empresas de seguros ao permitir uma supervisão comparativa, diferenciada e proporcional, com consequências na calibração e estrutura dos modelos e entidades supervisionadas.
Risco estrutural e orientação estratégica
Nesse sentido a proporcionalidade não é um fim em si mesma; é uma resposta ao risco estrutural, decorrente de uma crescente divergência entre entidades de elevada complexidade e operadores de menor escala com níveis degovernação e supervisão diferenciados. Este tema ganha relevância acrescida num contexto de longevidade crescente, onde pressões de rentabilidade da taxas de juro, mercados de capitais voláteis e desafios macroprudenciais de liquidez, se acentuam ao longo de todo o horizonte temporal da atividade seguradora. A necessidade de reforçar a resiliência das seguradoras convive, paradoxalmente, com a necessidade de reduzir complexidade administrativa desnecessária, ajustar mecanismos de avaliação de riscos, otimizar gestão da solvência e libertar capital, para incentivar investimentos de longo prazo.
Aplicado com rigor, o regime proporcional é um instrumento-chave para a supervisão ao:
- Melhorar o alinhamento entre esforço regulatório e risco real das entidades,
- Reforçar a competitividade das seguradoras de menor dimensão e risco,
- Promover uma governação mais funcional, robusta e efetiva, e menos burocrática,
- Libertar capacidade da supervisão para vigilância macroprudencial e sistémica.
Existe, contudo, um desafio para o mercado nacional: assumir a proporcionalidade como uma oportunidade e não como uma exceção. A simplificação exige, assim, mais maturidade, disciplina e método — assente numa governação mais robusta e numa supervisão mais ágil e estratégica.
Na prática, colocam-se duas decisões estratégicas para as empresas de seguros:
- Será mais vantajoso posicionar-se como entidade “não complexa” SNCUs, beneficiando da simplificação de governo e reporting?
- Ou assumir o estatuto de “complexa” non-SNCUs, preservando o modelo de governo e uma maior flexibilidade de investimentos?
A revisão da Solvência II representa, em qualquer dos casos, uma oportunidade de reconfigurar a governação de risco, repensar o modelo de negócio das seguradoras e utilizar o capital regulatório para fins mais produtivos, como investimentos de longo prazo e projetos sustentáveis. O setor nacional pode ter aqui um papel ativo para que a proporcionalidade seja sinónimo de robustez e competitividade, e não de fragilidade adicional diferida a prazo.
Recomendações em Proporcionalidade
Com a aprovação deste novo regime, o setor segurador em Portugal enfrenta um momento decisivo. Três orientações parecem essenciais para a concretização dos resultados esperados:
- Clarificar, desde o início, os critérios de elegibilidade e o racional prudencial associado, ao nível nacional evitando interpretações divergentes ou incentivos inadequados.
- Investir numa supervisão proporcional baseada no risco diferenciado, capaz de redirecionar recursos para áreas de impacto sistémico, sem descurar a disciplina e rigor prudencial dos operadores de menor dimensão.
- Promover a especialização das práticas de governação, independentemente da escala, assegurando que a simplificação não compromete a transparência do reporte, a gestão dos riscos, o controlo e a tomada de decisão.
O setor segurador português tem a oportunidade de se posicionar de forma ativa e estratégica face a esta reforma. A proporcionalidade não é uma redução do exercício de governação ou revisão da prioridade de supervisão — é uma reconfiguração inteligente da arquitetura de supervisão e da governação, perante riscos e desafios estruturais de longo prazo demográficos, macroeconómicos e estruturais que se intensificam. Em conclusão, este não é um momento de crítica à regulação, mas de convocatória para uma supervisão mais eficiente e uma governação mais robusta — à medida do risco, dimensão e desafios do mercado nacional.
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