Ninguém gosta de ficar à seca

  • Afonso do Ó
  • 18 Junho 2024

O “combate” à desertificação de pouco vale se continuarmos a contaminar as águas, a esgotar os solos e a eliminar a biodiversidade.

No dia 17 de junho comemorou-se o Dia Mundial de Combate à Seca e Desertificação – o dia em que a Convenção homónima das Nações Unidas foi adotada, em 1994.

A desertificação, um processo de degradação ecológica pelo qual o solo fértil se torna árido e perde ou reduz sua produtividade, resulta da utilização abusiva dos recursos naturais, nomeadamente do solo, da água e da biodiversidade. Se a Humanidade tiver a capacidade de se adaptar ao potencial produtivo destes recursos sem os exaurir, estaremos no bom caminho. Caso contrário, será ela a pagar – tendo por preço fomes, doenças e outros graves impactos dessa degradação degenerativa.

O “combate” à desertificação de pouco vale se continuarmos a contaminar as águas, a esgotar os solos e a eliminar a biodiversidade. O equilíbrio das atividades humanas com os recursos naturais que as sustentam ditará o futuro das pessoas, em particular daquelas que vivem nas áreas de maior risco de desertificação – como é o caso de grande parte do nosso território, em particular no Interior e a Sul. Estamos aliás inseridos num dos 4 hotspots mundiais da Convenção (o Mediterrâneo), onde a situação se tem vindo a agravar com particular severidade, devido sobretudo à intensificação dos sistemas de produção agrícolas, que apesar de produzirem mais quantidade em menor espaço, esgotam os solos e a água mais depressa.

Há toda uma cadeia de impactos que resulta da erosão dos solos, e com ela da degradação da vegetação, e com ela da perda de biodiversidade, e com ela da provisão de água, matérias-primas, e outros serviços prestados pelos ecossistemas… é uma bola de neve que urge travar, agravada pelos impactos das alterações climáticas em curso. E reverter.

No território continental português, e em particular nas tais áreas mais afetadas a Sul e no Interior, a escassez de água será porventura o impacto mais visível e sentido pelas pessoas – mas sem mitigar as suas causas, dificilmente evitaremos as consequências.

Nos últimos anos a seca e os seus impactos não têm saído da agenda mediática do país, em particular no Algarve – que de facto, há 13 anos não sabe o que é um ano húmido, alternando anos médios com anos secos. No entanto, a seca é um fenómeno natural de flutuação (neste caso de redução temporária) da precipitação, que é parte integrante do clima Mediterrânico em que estamos inseridos – e que não pode ser confundido (como tantas vezes) com a estação seca que caracteriza os nossos Verões, e que varia entre uma duração média de 2 meses no Alto Minho a 6 meses no litoral sul Algarvio.

Embora seja verdade que as secas se têm agravado devido às alterações climáticas, é sobretudo devido à crescente vulnerabilidade da sociedade que os seus impactos mais se têm feito sentir, devido à contínua expansão dos consumos e sistemas de abastecimento de água para os mais diversos fins, mas sobretudo agrícolas.

É a este desequilíbrio estrutural entre as disponibilidades de água duma região e o seu consumo excessivo que damos o nome de escassez hídrica. Paradoxalmente, ao longo das últimas décadas em que o impacto das alterações climáticas foi claramente reduzindo aquelas disponibilidades, dedicamo-nos em regiões de risco como o Algarve a expandir o regadio intensivo, a urbanização turística, e outros consumos que só vieram agravar a referida escassez.

As medidas de resposta dos diferentes Governos vão-se sucedendo, de forma reativa e pouco estruturada, sem uma visão preventiva de longo prazo, e voltando a apostar em soluções que visam o aumento da oferta de água, secundarizando as soluções de gestão (e restrição) da procura. Enquanto não assumirmos esse imperativo, que politicamente tem um custo que ninguém quer assumir, o risco de a água nos faltar não irá diminuir.

Para fazer face aos impactos das secas e reduzir os riscos de escassez, não podemos continuar a construir barragens, furos e transvases como se a água fosse um recurso infinito – os atuais níveis de precipitação não chegam já para encher as albufeiras existentes, e menos chegarão para encher novas barragens em ribeiras temporárias de regime torrencial e fraca capacidade de armazenamento, como são a Foupana ou Alportel.

Importa por isso apostar em medidas estruturais e a longo prazo que aumentem a resiliência da sociedade: nomeadamente reduzir o desperdício e as perdas nas redes de distribuição, reutilizar as águas residuais, aproveitar as águas pluviais urbanas, diversificar as origens, limitar a procura às disponibilidades em cada sistema de abastecimento, e reduzir a nossa pegada hídrica direta (da água que utilizamos) e de consumo (da água necessária para produzir os bens que consumimos, da alimentação aos têxteis).

Sendo o setor agrícola responsável por mais de 75% da água utilizada em Portugal (cerca de 70% no Algarve), é também fundamental que a legislação e os fundos de desenvolvimento rural contribuam para o combate ao uso insustentável da água. Desde logo, a instalação ou reconversão para culturas mais exigentes em água em regiões de escassez hídrica não deve ser permitida, nem haver incentivos à intensificação dos sistemas agrícolas. Ao invés, devem sim existir mais incentivos à agricultura de precisão, mais medidas de apoio à retenção natural de água nas explorações agrícolas, e uma maior sensibilização e formação dos agricultores para o uso responsável da água.

Combater a desertificação é antes de mais fazer um uso parcimonioso de todos os recursos naturais de que dispomos, e garantir que eles cá ficarão de forma sustentável e funcional depois de nós. Mas no atual estado de coisas, combater a desertificação é também revertê-la, enfrentando a necessidade imperativa de restaurarmos aquilo que degradamos, e que já não recupera sem o nosso empurrão.

  • Afonso do Ó
  • Especialista em Água e Clima da ANP|WWF

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