O direito à litigância climática
Cerca de dois terços dos processos relacionados com o clima foram instaurados desde 2015: até maio de 2023, foram instaurados 1.557 processos.
Este verão vivemos fenómenos climatéricos extremos: temperaturas escaldantes na Europa, tempestades na Eslovénia e em Itália, incêndios florestais sem antecedentes no Havai e Canadá e inundações na China. A cada nova estação somos lembrados da nossa interdependência com a natureza, enquanto continuamos a escrever a nossa história nas páginas imprevisíveis do clima.
Mark Carney falou-nos em setembro de 2015 sobre os impactos das alterações climáticas no “Breaking the tragedy of the horizon – climate change and financial stability“. O documento da FED de março de 2021 e Agenda climática do BCE de 2022 sinalizam a crescente relevância das questões climáticas para a estabilidade financeira global e mostram às empresas, às instituições financeiras e aos reguladores que o impacto das alterações climáticas transcende fronteiras e abordagens convencionais, e molda – ou deve moldar — as estratégias económicas e financeiras.
Vivemos numa nova era da responsabilidade ambiental. A litigância climática e ambiental emergiu como um poderoso instrumento na ordem mundial contemporânea, influenciando a maneira como governos, empresas e indivíduos abordam as preocupações relacionadas à sustentabilidade e às mudanças climáticas. Nos tribunais nacionais e internacionais assistimos a uma vaga de casos sustentados na alegação da legislação de responsabilidade civil, alegando violações das leis de due diligence corporativa e greenwashing dirigidos a empresas multinacionais, governos e instituições financeiras e até bancos centrais e é de registar o crescimento do recurso ao financiamento de litígios por terceiros.
Os litígios visaram primeiro os Estados, mas hoje há um crescimento de processos contra empresas, estando especialmente expostos os setores dos combustíveis fósseis e da energia.
No próximo dia 27 de setembro, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, vai ouvir formalmente seis jovens portugueses que apresentaram uma ação judicial sem precedentes, relacionada ao clima, direcionada a um conjunto de 32 países europeus. Como explica o Tribunal, alegam que os incêndios florestais que ocorrem em Portugal todos os anos desde 2017 são um resultado direto do aquecimento global.
O relatório 2023 Global Trends in Climate Change Litigation Policy Report do Grantham Institute – publicado a 29 de junho de 2023 – indica que cerca de dois terços dos processos relacionados com o clima foram instaurados desde 2015: entre 1986 e 2014, foram instaurados cerca de 800 processos, mas entre 2015 e maio de 2023, foram instaurados cerca de 1 557 processos, tendo 46% sido contra um conjunto cada vez mais diversificado de intervenientes do setor privado, sendo que que os casos de “perdas e danos” estão a tornar-se cada vez mais prevalecentes nos casos de poluidor-pagador, em que as “grandes empresas de carbono” estão a ser processadas com base nas emissões de gases com efeito de estufa. Igualmente, os processos contra greenwashing” – aumentaram acentuadamente nos últimos dois anos: desde 2015, foram instaurados 81 processos contra empresas em todo o mundo, 53 dos quais foram instaurados em 2021 e 2022. No mesmo sentido, o Global Climate Litigation Report: 2023 Status Review da UNEP e da Universidade de Columba refere que os processos climáticos em tribunal duplicaram em cinco anos abrangendo já 65 jurisdições diferentes. A Network for Greening the Financial System aponta os litígios climáticos como uma fonte emergente de risco para o setor financeiro visto que são relevantes para a supervisão microprudencial e para a monitorização da estabilidade financeira nos seus novos relatórios na perspetiva de um supervisor.
Um dos primeiros casos de referência foi o caso Urgenda, nos Países Baixos, em 2019. O Supremo Tribunal dos Países Baixos ordenou ao governo para reduzir as suas emissões de gases de efeito estufa. Recordo o processo contra o banco central belga interposto pela ClientEarth alegando que o programa de compra obrigações de empresas para ajudar a impulsionar a economia da Zona Euro estaria a promover “a crise climática”. O Tribunal de Montana, decidiu este agosto que o Estado de Montana tem a obrigação constitucional de proteger os seus habitantes das alterações climáticas e o conselho de Administração da Shell foi processado pela ClientEarth por não estar a gerir de forma adequada os riscos relativos às alterações climáticas, sendo esta ação apoiada por fundos de pensões do Reino Unido, Suécia, França, Bélgica e Dinamarca.
A sigla ESG – em inglês, Environmental, Social and Governance – que corresponde a fatores de natureza ambiental, social e de governo das sociedades, entrou-nos porta adentro marcando uma nova agenda corporativa e de governação nas opções de investimento e de financiamento, nas políticas públicas, marketing e comunicação, no modelo regulatório e nas relações bilaterais e multilaterais dos países. Cerca de 40% do capital a nível mundial está a ser investido baseado em algum critério de sustentabilidade e os litígios relativos a decisões de investimento no contexto das alterações climáticas estão a aumentar.
A crise climática e a litigância climática são desafios que definirão o nosso tempo, e a escolha de como enfrentá-los moldará o nosso futuro.
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