O Estado pode cortar serviços mas os CTT não? É a ideologia, estúpido

Se a preocupação da esquerda com as populações e os empregos fosse genuína, teriam na CGD a possibilidade de aplicar o que apregoam sem o obstáculo de se tratar de uma empresa privada.

Costuma dizer-se que o Estado privatiza lucros e nacionaliza prejuízos. A afirmação tem muito de verdade e é sustentada muitos negócios e operações realizados nas últimas décadas. Foi assim com a banca e a factura que sobrou para os contribuintes. Foi assim com muitas parcerias público-privadas, sobretudo na área dos transportes, onde foi também com dinheiro de contribuintes que se garantiram rendas muito generosas a privados enquanto o risco ficou do lado do Estado. E foi, mais uma vez, isso que aconteceu com vários negócios feitos pela Caixa Geral de Depósitos há cerca de uma década por indicação política, que agora se mostram ruinosos “buracos” nas contas do banco do Estado.

Com os CTT, que agora voltam a estar na berlinda, não aconteceu isso. Passou-se mesmo o contrário. A empresa foi privatizada pelo governo PSD/CDS no final de 2013, depois da operação ter sido acordada com a troika pelo governo anterior, do PS, constando do memorando do resgate assinado com os credores — podemos arrumar já por aqui a estafada discussão de claques futebolísticas: um comprometeu o país a fazê-lo e o outro executou.

Os CTT foram vendidos a bom preço numa boa altura. O seu negócio base, a distribuição de correio, ainda resistia mas as prespectivas futuras não eram risonhas e toda a gente o sabia. Graças a essa coisa chamada tecnologia, escrevem-se e enviam-se cada vez menos cartas. Por exemplo, quantos postais de Natal enviávamos e recebíamos há 15 anos e quantos enviámos e recebemos no mês passado? Agora, até as facturas de contas para pagar (água, luz, telecomunicações, gás), os extractos bancários e muitas comunicações do fisco nos chegam cada vez mais por email para conveniência de todos — entidades que as emitem, clientes, contribuintes e ambiente. De todos menos dos CTT, que assim perdem uma parte importante do seu negócio.

Por isso, e certamente porque outras áreas de negócio não se desenvolveram da forma que os accionistas previam, não admira que o preço que os privados pagaram para comprar a empresa seja hoje uma miragem. Cada acção foi então vendida a 5,52 euros e agora está a valer 3,70 euros. Vender em alta é coisa rara nos negócios feitos pelo Estado e que deve preocupar sobretudo os próprios accionistas privados. Eles que resolvam um problema que é deles.

Mas mais à esquerda não se pensa assim. Perante a quebra das contas da empresa e os planos de reestruturação anunciados, o Bloco e Esquerda, o PCP e uma parte do PS não têm dúvidas: a solução está na renacionalização da empresa e a campanha para que isso aconteça está em marcha. Não vou perder tempo a debater como tal poderia ser feito — seria uma venda compulsiva ou voluntária dos privados? a que preço? o Estado lançava uma Oferta Pública de Aquisição, já que a empresa está cotada? — porque a irracionalidade da medida mata essa discussão antes dela se colocar.

Dizem os defensores da nacionalização que ela é necessária para garantir a prestação dos serviços postais a toda a gente. Como assim? Decerto não conhecem a lei e as regras com que os CTT foram vendidos. Ou melhor, conhecem, mas isso não é conveniente para a sua narrativa.

Apesar de privatizados, os CTT exercem uma actividade regulada que os sujeita a obrigações. Trata-se do serviço postal universal, cujo cumprimento e qualidade é verificado pela Anacom, a entidade do Estado reguladora dos serviços de comunicações. É isso que a lei diz. Por exemplo, os CTT estão obrigados a níveis de serviço mínimos e só podem fazer alterações na sua rede de postos com acordo da Anacom e respeitando regras de densidade populacional devidamente justificadas.

Isto foi feito para garantir que, apesar dos novos meios electrónicos, qualquer cidadão que queira enviar ou receber uma carta ou uma encomenda ou utilizar um cheque-postal o possa fazer em boas condições de nível de serviço.

Isto não é, aliás, um exclusivo do serviço de correios. Também o fornecimento de electricidade está sujeito a um serviço mínimo obrigatório, prestado pela EDP em condições fixadas na lei e sujeitas a regulação, para garantir que qualquer cidadão possa contratar energia eléctrica mesmo no local mais recôndito sem estar sujeito a critérios de rentabilidade da empresa fornecedora. E o mesmo se passa com serviços básicos de telecomunicações ou com o fornecimento dos canais de televisão que estão na Televisão Digital Terrestre.

Se os CTT estão a degradar a qualidade do serviço ou a reduzir a sua rede de postos para além do que a lei permite, estamos perante um caso que obriga a uma intervenção da Anacom, que tem poderes para obrigar a empresa.

O Estado mantém, portanto, do seu lado instrumentos legais e regulatórios para garantir aquilo que é verdadeiramente importante: garantir que qualquer cidadão, em qualquer ponto do país, tem acesso a um serviço postal adequado a um preço económico e não sujeito a regras de mercado ou de rentabilidade da operação.

Nada disto tem a ver com o facto de o capital ser público ou privado e é neste âmbito que a intervenção do Estado deve, agora, ser enquadrada. O regulador obriga e o cumprimento dos serviços que constam do contrato de concessão é um problema da empresa e dos seus accionistas.

Pretender resolver questões de regulação com uma nacionalização é não só passar um atestado de incompetência às entidades reguladoras, que devem ser fortes e actuantes e não passivas e comprometidas, como também repetir a velha fórmula de colocar os contribuintes a pagar facturas que são dos privados.

A ilusão que a esquerda que defende a nacionalização tenta vender é esta: estamos muito preocupados com as populações que podem ficar sem um posto dos correios por perto e com os empregos que estão a ser cortados e só conseguiremos evitar isso se a empresa for pública.

Mas basta olhar para o exemplo da Caixa Geral de Depósitos para perceber que não é assim. O banco é inteiramente do Estado e tem tutela política exercida directamente pelo Ministério das Finanças. E tem em curso um processo de reestruturação que implica o encerramento de balcões e a saída de centenas de trabalhadores, como se sabe.

Se a preocupação da esquerda com as populações e os empregos fosse genuína, teriam na Caixa a possibilidade de aplicar o que apregoam sem o obstáculo de se tratar de uma empresa privada. Para tal, bastava usarem o seu poder e influência junto do governo que apoiam.

Mas não o fazem — e, em meu entender, bem –, precisamente porque esta é uma empresa do Estado, em mais um exercício de absoluta falta de coerência. Claro que nada disto tem a ver com o que dizem mas apenas com a velha questão ideológica: tudo o que é público é muito bom e tudo o que é privado é para abater e para ser nacionalizado. Empresas do Estado podem cortar postos de trabalho e encerrar serviços que não há qualquer problema mas as privadas deviam ser proibidas de o fazer sob pena de verem o negócio confiscado. Então e o dinheiro dos contribuintes e os invocados interesses do povo? Esses são descartáveis e estão ao serviço da ideologia, como se vê. Nunca o contrário.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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