O processo arbitral na face escondida da lua

  • André Almeida Martins
  • 9 Julho 2021

A escolha da via arbitral pode ser a forma de evitar um conhecimento público generalizado da existência do conflito, que pode ser relevante para uma ou ambas as partes, evitando danos reputacionais.

A arbitragem voluntária tem vindo a afirmar-se como um meio alternativo de resolução de litígios com um crescimento significativo na prática contenciosa nacional, ocupando também, consequentemente e de forma progressiva, um lugar próprio no ensino do direito processual. Entre outros fatores, este relativo sucesso encontra fundamento em determinadas características que são identificadas como vantagens em comparação com a jurisdição estadual, entre as quais se podem destacar a celeridade, a possibilidade de as partes escolherem os árbitros (podendo assegurar uma decisão por especialistas), a flexibilidade processual que permite moldar as regras processuais ao caso concreto e, ainda, a confidencialidade do processo e da sentença arbitral.

Em relação à última característica referida, pode dizer-se que o carácter confidencial da arbitragem voluntária se justifica por diversos motivos. Sem prejuízo do respeito pelas exigências constitucionais impostas a qualquer meio jurisdicional de composição de litígios, a justiça arbitral pretende ser precisamente uma justiça privada, mais reservada e discreta do que a estadual, com a potencialidade de aplanar ou pelo menos não agravar a tensão existente entre os litigantes. Além disso, esta tradicional reserva da arbitragem permite evitar ou limitar a divulgação de documentos confidenciais ou estratégicos, essenciais para a sustentação da ação ou da defesa, mas que as partes têm muitas vezes relutância ou dificuldade em tornar públicos num processo judicial. Por fim, a escolha da via arbitral pode ser a forma de evitar um conhecimento público generalizado da existência do conflito, que pode ser relevante para uma ou ambas as partes, evitando danos reputacionais associados.

Sucede que, pelo menos no âmbito específico da arbitragem comercial, a confidencialidade normalmente associada ao processo e à sentença tem implicado uma restrição significativa na publicação e difusão das decisões processuais e sentenças arbitrais. De facto, não obstante o disposto nos números 5 e 6 do artigo 30.º da Lei da Arbitragem Voluntária ‒ de que decorre uma permissão de publicação de sentenças e outras decisões do tribunal arbitral, expurgadas de elementos de identificação das partes ‒ basta percorrer os sites dos principais centros de arbitragem nacionais, para verificar a ausência de uma publicação atualizada e recorrente de decisões processuais e sentenças arbitrais (com a exceção, pelo menos no campo das decisões processuais, do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa).

Se a isto juntarmos a circunstância de a jurisprudência estadual que decide eventuais impugnações da sentença arbitral não ter – e bem – oportunidade de se debruçar em detalhe sobre a prática processual que decorre durante o processo arbitral, temos uma combinação de fatores que leva a que, nas palavras do destacado arbitralista Sébastien Besson, a prática arbitral se situe “na face escondida da lua”.

Este estado de coisas, servindo unicamente os interesses legítimos e imediatos das partes, não beneficia a arbitragem como instituto, o desenvolvimento do seu estudo enquanto ciência jurídica e o reforço da sua legitimação e credibilização públicas. Não está em causa o afastamento do carácter confidencial da arbitragem, mas a sua compatibilização, em toda a extensão possível, com a publicidade de decisões interlocutórias do processo arbitral e sentenças arbitrais, para que estas possam ser conhecidas, divulgadas e analisadas, para lá dos limites e dos intervenientes do processo em que foram proferidas.

À semelhança do que de alguma forma sucedeu em certos domínios da arbitragem internacional, esse será um contributo inestimável para o avanço da arbitragem em Portugal. Do ponto de vista da investigação dogmática e da doutrina, disponibilizam-se elementos de estudo fundamentais para o aprofundamento e sustentação teórica das diversas matérias. Por outro lado, fomenta-se a formação de uma jurisprudência arbitral, que pode ganhar um corpo consolidado, coerente, de consulta livre e com alguma força persuasiva em matérias substantivas e processuais. E, por fim, promove-se a transparência da arbitragem, contribuindo para afastar alguma desconfiança ou mesmo suspeição associadas a este meio de resolução de litígios, credibilizando-o publicamente e, assim, contribuindo para um alargamento dos seus utilizadores.

Havendo já enquadramento normativo para o efeito (além da LAV, também em sede dos regulamentos das instituições arbitrais), cabe a centros de arbitragem comerciais, árbitros e advogados envolvidos no processo arbitral um esforço conjunto que combina, por um lado, a criação e manutenção de estruturas e repositórios para publicação das decisões arbitrais (inclusive de arbitragens ad hoc) e, por outro lado, de sensibilização das partes para esta necessidade, demonstrando-lhes que a publicidade das decisões, expurgada de elementos de identificação, não põe em causa os seus legítimos interesses.

  • André Almeida Martins
  • Docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

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