O tempo da justiça: a prescrição
A reflexão neste instituto da prescrição (e em tantos outros) é por isso essencial: e pode (deve) servir, também, para recuperar alguma fé no nosso sistema de justiça.
Costumo acreditar que um processo tem tempos próprios. E, esses tempos, acabam por marcar-se, também, em diversos espaços nem sempre conciliáveis. No espaço de segredo da justiça, no espaço público da justiça, mas, agora, também no espaço público mediatizado da justiça. E entre espaços, tempos e talvez pouca justiça, a verdade é que a expectativa de realização de justiça por parte não só dos intervenientes directos nos processos mas, sobretudo, de um público sedento de justiça (e nem todas as sedes têm um travo de fundamentação legal) acaba por colocar os holofotes naquilo que são os timings de tramitação e decisão dos processos. Daí que a confiança dos cidadãos na sua justiça tenha que estar sempre intimamente relacionada com a percepção que aqueles têm que os instrumentos jurídicos funcionam de forma célere e eficaz. O problema, no entanto, é que entre uma percepção não técnica e uma perceção (avaliação) jurídica do funcionamento do sistema existe um fosso largo que pode dificultar o processo de sedimentação da confiança. Parece fundamental, por isso, acreditar que o equilíbrio intrasistema, assegurado pela qualidade dos instrumentos técnico-jurídicos, tenha que ter um eco de reconhecimento extrasistema, em que, todos, acreditamos que a justiça, em alguns casos falível e possível, enquanto mímica dos seus agentes, assenta, ainda assim, em procedimentos correctos e sustentados que visam diminuir a possível margem de erro humana.
Precisamente por isso, entre escândalos, processos judiciais, e agentes que exponenciam os seus ganhos por aparentes caminhos sinuosos, existe um certo resquício de perda de inocência que sublinha a necessidade de análise das possíveis fragilidades do sistema e ordenamento jurídico, nomeadamente no nicho dos crimes económicos. Um dos institutos que coloca mais desafios, nomeadamente por uma certa dificuldade de compreensão do público comum (e, logo aí, com ramificações de contaminação ao nível das expectativas de prevenção geral) é, precisamente, a possibilidade de prescrição dos ilícitos criminais.
Ora, o problema é que aquela bruma mediática mobiliza e deixa cair com estrondo os suspeitos habituais (branqueamento de capitais; corrupção activa e passiva; corrupção passiva de titular de cargo político; falsificação de documentos; burla; etc.), miscigenando os vários tipos de ilícitos criminais, com características definidoras próprias e dispares, numa amálgama de ruído que dificulta a sua compreensão mas que atesta, pelo menos como eco presente, a culpabilidade automática e imediata dos seus alegados agentes. Agora, se esse é o ponto de partida, a verdade é que o desafio passa precisamente por justificar como, em alguns desses casos, alguns desses crimes podem ir caindo… e, no processo, evitar que a alma da justiça, sedimentada pela confiança dos cidadãos no seu sistema, vá também enfraquecendo.
A prescrição do procedimento criminal traduz-se, como é consabido, numa renúncia por parte do Estado a um direito, ao jus puniendi, condicionado pelo decurso de um certo lapso de tempo. O decurso do tempo caracterizador da prescrição faz com que a intervenção do direito penal, para além de inútil e ineficaz, careça de fundamento (do fundamento legitimador da sua intervenção). Já não existe bem jurídico digno de tutela jurídica. Na prescrição do procedimento criminal, o decurso de certos prazos torna assim impossível o procedimento criminal e, por essa via, a aplicação de uma qualquer sanção.
No entanto, para lá da rítmica definidora do instituto, existem alguns pontos de pressão que, mais do que pontos de chegada, têm que ser pontos de partida reflexivos. Por isso, algumas ideias à laia de food for thought.
A prescrição, prevista no artigo 118.º do Código Penal, compreende um lapso temporal entre 2 e 15 anos, e extingue o apuramento do alegado crime e consequente sanção, mas dependerá, sempre, dos tipos de crime em questão. Crimes como o de branqueamento de capitais (368.º- A do CP), que é punido com pena de prisão até 12 anos, enquadram-se no artigo 118.º n.º 1 alínea a) do CP, prescrevendo ao final de 15 anos. Mas crimes como os de corrupção (veja-se o caso de corrupção passiva de titular de cargo político – artigo 17.º Lei n.º 34/87 de 16 de julho), com molduras inferiores a 10 anos (punido com pena de prisão de 2 a 8 anos), acabam por ter um prazo prescricional de iguais 15 anos (similares, por exemplo ao crime de homicídio), justificados por uma ratio de aparente especial consideração do legislador por este tipo de crimes (atenta até a ambiência supra referida), mas que pode acabar por lançar um desequilíbrio notório, em quadros de concurso de crimes, estabelecendo diferenças de difícil compatibilização. Até porque existe uma gradação daquele tipo de crime, com modalidades menos graves de corrupção, que acabam por ter os mesmos prazos prescricionais. Daí que, se a função eminentemente ressocializadora do nosso sistema afaste uma consideração de uma adopção de não prescrição de certos tipos de crime, parece pelo menos haver a necessidade de harmonização dos prazos prescricionais atentas as novas realidades de combate à criminalidade económica.
Outro dos problemas passa, também, pela própria forma não linear de contabilização do tempo de prescrição, atentas até as várias causas de interrupção e suspensão. No caso, por exemplo, dos casos de corrupção, o início da contabilização parece ocorrer (jurisprudencialmente) a partir da data do pagamento dos subornos ou do acto ou omissão contrário aos deveres do cargo do agente passivo do crime no caso de corrupção passiva antecedente. Aqui sempre existem algumas reticências naquilo que parece ter sido uma adopção questionável de criação ex novo de uma figura de crime de consumação quase continuada em que se retarda o momento de consumação.
Veja-se, também a possibilidade de conexão de processos, com a construção dos denominados megaprocessos, que acaba por aumentar exponencialmente a possibilidade de alguns desses possíveis ilícitos caírem na malha da prescrição, mormente pela já conhecida falta de meios e disponibilidade investigatória. Não seria necessária, também, uma reflexão profunda acerca dos mecanismos de separação e conexão até (ou principalmente) à luz da articulação desejável com os mecanismos de prescrição? É que num espectro de tratamento destes megaprocessos, e na ânsia (vontade) de tudo desejar punir, pode-se correr o concreto risco de tudo deixar prescrever, precisamente por não haver, naquele momento de avaliação prévia de decisão de conexão, a desejável sensibilidade de se considerar os caminhos e meios disponíveis para fazer justiça!
No fundo, e em todas estas questões, estamos no âmbito da reação da justiça penal num limbo metodológico: entre a necessidade da descoberta da verdade e a imposição da não desprotecção do arguido e da não violação da sua esfera de direitos e deveres processuais (muitos, até, com reconhecimento constitucional). Se reconhecemos a muitos daqueles crimes caracteres de especialidade, podemos também reconhecer a exigência de alguns procedimentos de ordem excepcional. A questão passa, e de forma mais premente, em perceber qual o grau de excepcionalidade desses procedimentos e, de forma mais profunda, quais os limites existentes. A reflexão neste instituto da prescrição (e em tantos outros) é por isso essencial: e pode (deve) servir, também, para recuperar alguma fé no nosso sistema de justiça.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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