Olhem para nós a dar já lições de credibilidade

Antes de criticar as agências de rating temos de decidir em que ficamos: a nossa dívida é sustentável sem mudanças de "secretaria" ou é preciso um favor externo para não prejudicar os investidores?

Presidente da República e primeiro-ministro andam há meses numa competição para ver qual dos dois é o mais optimista e faz a declaração mais hiperbólica sobre o momento económico português. A competição aqueceu nas últimas semanas, entusiasmados com a aceleração do PIB no primeiro trimestre e com o aperto feito para a redução do défice público, que está a levar à saída do país do Procedimento por Défice Excessivo.

Como consequência, não entendem como é que as principais agências de rating não reparam no óbvio e não retiram já Portugal da classificação de “investimento especulativo”, que na gíria chamamos “lixo”.

Marcelo Rebelo de Sousa espera “que as agências de rating percebam que esta situação ‘não é um fogo de vista’ passageiro, que reconheçam a realidade e revejam as suas posições.” (https://eco.pt/2017/05/24/marcelo-espera-que-agencias-de-rating-revejam-avaliacao-sobre-portugal/).

António Costa afirma que “é manifesto que a avaliação de hoje de Portugal é muito diferente da situação que era em 2011” — o que é verdade — e que as agências de rating “têm que mudar os seus ratings se querem manter-se credíveis” — o que só pode ser lido como uma tentativa de fazer humor.

Eu concordo que a credibilidade das agências de rating não é o que era e foi muito abalada na última década. Mas isso aconteceu precisamente pelos motivos contrários aos agora invocados pelo primeiro-ministro: não foi por excessivo rigor ou pessimismo, foi antes por excesso de optimismo. As agências de rating foram lentíssimas a reagir à avaliação do impacto da crise financeira de 2008 no sistema bancário global e a perceber que países estavam com políticas orçamentais suicidas que, mais tarde ou mais cedo, os levariam ao tapete, como foi o caso da Grécia e de Portugal.

Aliás, podemos mesmo recuar até 2011, como sugere António Costa, para revisitar brevemente a história dos ratings atribuídos à dívida pública portuguesa. O pedido de resgate português foi feito a 6 de Abril de 2011 e, duas semanas antes, ainda as agências colocavam o país no confortável patamar dos “A”, que é como quem diz: fiquem descansados que este devedor é seguro. E a passagem para os níveis de “lixo” – aqui sim, já é um aviso de não garantia de pagamento de todas as responsabilidades – só aconteceu algumas semanas depois de José Sócrates ter feito o anúncio da ajuda externa.

O que está mal então quando se comparam os ratings de 2017 com os 2011? Parece-me óbvio que foi a falta de avaliação atempada e útil para os investidores da nossa iminente bancarrota há seis anos e não um excesso de rigor nas notas atribuídas agora.

Aliás, com o cadastro que vamos acumulando, só por piada se pode invocar a credibilidade da política orçamental portuguesa e o nosso desempenho económico para tentar diminuir a credibilidade do que quer que seja.

E é anedótico que o próprio governo tenha dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida portuguesa, que peça estudos sobre o assunto e se refira regularmente à necessidade de “um quadro europeu” para resolver o problema para depois criticar as agências de rating por questionarem a nossa capacidade de pagar as responsabilidades nas condições actuais.

Em que é que ficamos? A nossa dívida é afinal sustentável sem mudanças de “secretaria” ou é preciso um favor externo que evite que os investidores sejam prejudicados?

Estas declarações políticas leves, sem sustentação real e apenas a reflectirem a espuma dos dias indiciam que não temos muito a noção do ponto exacto em que nos encontramos.

É obvio que a trajectória hoje é a inversa da que se verificava em 2010 e 2011, graças ao pesado programa de austeridade porque passámos e ao aperto orçamental que mantemos – e bem.

Mas disto tudo que temos hoje, o que é estrutural e sustentável e o que depende da contenção permanente? Que mudanças ocorreram entretanto na estrutura do Estado e do orçamento que nos permitam olhar para a frente com a garantia de que não volta a haver desequilíbrios? Que capacidade competitiva tem hoje a economia portuguesa que não tinha? Que argumentos novos temos para atrair investimento? Houve um salto de produtividade? Os contextos fiscal e burocrático são hoje melhores?

O “fogo de vista” negado pelo Presidente da República – que é uma versão popular e entendível do “economês” “falta de sustentabilidade” – requer muito mais do que boas intenções, a tentação de fazer uma gestão de expectativas a puxar para o optimismo e meia dúzia de bons indicadores económicos.

A questão que as agências de rating avaliam é a sustentabilidade da dívida pública e a capacidade dos devedores a pagarem nas condições acordadas. E voltámos esta semana a ser recordados de como ainda estamos no início de um caminho que vai ser longo: a dívida do Estado voltou a bater um recorde máximo.

As classificações de rating atribuídas a Portugal das três maiores agências dizem isto (tomo a descrição da Fitch mas elas são semelhantes): “Elevada vulnerabilidade a um risco de não pagamento, particularmente em caso de mudanças adversas nas condições económicas e empresariais a prazo; contudo, verificam-se factores de flexibilidade financeira e de negócios que suportam o serviço dos compromissos financeiros”.

Não me parece que esta descrição esteja deslocada da situação actual portuguesa. Basta pensar no impacto de uma futura retirada das facilidades do Banco Central Europeu ou de um acontecimento que possa afectar a excelente evolução do turismo, que sustenta uma boa parte da retoma, para percebermos o carácter fragil do que já conseguimos.

Claro que todos gostaríamos que o país tivesse um rating melhor, até porque isso se reflecte no nível de juros que pagamos. Mas é sobretudo decisivo que essa melhor avaliação seja a tradução de mudanças de fundo na economia e no Estado e não o resultado de dietas draconianas de emergência para salvar um paciente moribundo, como tem acontecido.

PS. A Justiça em Portugal começa, finalmente, a parecer “cega”, como se lhe pede. A investigação criminal pode chegar a todos, como a constituição de António Mexia como arguido parece confirmar, depois de todos os processos nos últimos anos. É deixá-la fazer o seu trabalho e esperar que este não volte a ser um daqueles casos em que entre os suspeitos só há corruptores e não corrompidos.

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