Os bons cantores sabem sempre quando desafinam

  • Mário Ceitil
  • 30 Março 2020

A gestão de competências na era da hiperespecialização fragmentada.

Nos meios académicos e empresariais há já quem anuncie a “morte das competências” como um dos indícios de um mundo que caminha a passos (muito) largos para uma fragmentação das profissões em unidades de conhecimentos hiperespecializados mas dispersos por diversas fontes e localizações, tornando rapidamente obsoletas as práticas de gestão de recursos humanos ainda baseadas nos conhecidos “modelos de competências”.

De facto, se por aquela designação entendermos a definição de portefólios de competências indexados a grupos ou famílias profissionais e/ou funcionais e organizados segundo modelos que estabelecem regras mais ou menos rígidas de precedências de carreiras e de critérios de promoções e progressões salariais, a flexibilidade que as organizações hoje exigem na gestão das pessoas já não permite a sustentação de práticas assentes seja em critérios consuetudinários, como a antiguidade na “carreira”, seja com base em processos de regulação e/ou de credenciação que, embora suportados em reconhecimentos e certificações por organismos devidamente reconhecidos e credenciados, coartam drasticamente a valorização das dinâmicas específicas dos comportamentos das pessoas quando positiva e intencionalmente orientados para contributos de excelência.

Ora, é justamente no contraponto entre as orientações mais processuais em gestão de competências e as que se centram mais nas dinâmicas dos comportamentos, que encontramos talvez o sentido mais expressivo da diferença entre o que é “gerir por competências”, expressão que se adequa às práticas assentes em processos que valorizam a estabilidade das indexações mais ou menos rígidas entre portefólios de competências e grupos funcionais, e “gerir as competências”, onde a atenção se foca mais nas relações de adequabilidade entre as competências, entendidas como comportamentos ou ações, e os contextos específicos onde elas são requeridas, exercidas e validades, independentemente da sua indexação a enquadramentos estruturais específicos.

No mundo da hiperespecialização digital fragmentada e dispersa onde, como referem Richard e Daniel Susskind, “máquinas cada vez mais capazes de desempenhar tarefas humanas” tornam o conhecimento “disponível a toda a gente “ e suscetível de ser “mobilizado por um ou dois botões de computador”, a lógica que designámos anteriormente por “gestão por competências” poderá vir a ser totalmente pulverizada pelo facto de as profissões deixarem de ser concebidas como categorizações formais de agregados humanos mais ou menos homogéneos, com um corpo de conhecimentos especializados comuns, e passarem à categoria de práticas profissionais feitas por pessoas individuais, ou em pequenos grupos, num futuro em que “o avanço tecnológico está a tornar obsoleta a especialização humana” e em que “as profissões desaparecerão do centro das nossas vidas”.

Mas o mesmo não acontecerá, seguramente, no que diz respeito ao impacto e à importância das “competências” entendidas como modalidades de ação que uma determinada pessoa ou grupo, atualizam como resposta a um conjunto de desafios que se apresentam dentro de um contexto determinado.

Aqui, e ao contrário do cenário anterior, a fragmentação dos espaços e dos contextos profissionais irá suscitar a necessidade, ou mesmo a imperatividade, de cada pessoa desenvolver e atualizar um conjunto mais ou menos vasto de competências para fazer face e responder com sucesso a desafios de complexidade e imprevisibilidade crescentes. E como a imprevisibilidade é, por definição… imprevisível, não podemos ter a segurança de definir com precisão quais são, ou quais podem vir a ser as competências requeridas para o exercício de funções, profissões ou missões que ou mudam com enorme rapidez ou que nem sequer são ainda conhecidas.

É, aliás, a consciência desta imprevisibilidade que, em larga medida, justifica a recomendação constante dos relatórios das últimas três reuniões anuais do Fórum Económico Mundial, onde aparecem assinaladas várias competências consideradas críticas para responder aos desafios de uma nova ordem económica e social cada vez mais caótica, desordenada, volátil e incerta. Em tais contextos, já amplamente categorizados pelo acrónimo “VUCA”, já não podemos socorrer-nos da velha ferramenta da “análise do trabalho” que constituiu a base das práticas da chamada “gestão integrada de recursos humanos” herdadas da Segunda Revolução Industrial, e que tem permitido a milhões de trabalhadores fruírem esse sentimento equívoco de “segurança ontológica” por estarem a “cumprir as suas funções” e, por isso, “a mais não poderem ser obrigados”.

Sem haver, hoje, essa “muleta” dos descritivos funcionais que instituiu a normatividade funcional na base dos “requisitos mínimos” como valor absoluto e legitimou a sua defesa sem rebuços de má consciência, os profissionais de hoje são, pelo contrário, desafiados a serem eles próprios a estruturarem o sentido, o significado e mesmo a substância do seu trabalho, rompendo definitivamente os estigmas da alienação da “era industrial” e “fazendo retornar o sentido do trabalho ao próprio trabalhador”.

Num contexto socioeconómico radicalmente diverso, em que a anteriormente glorificada “áurea mediocridade” se transformou na prática dominante daqueles que não aspiram a mais do que ser apenas “suficientemente bons para não serem despedidos”, o desafio hoje está justamente nos antípodas deste tipo de práticas e, sobretudo, deste tipo de paradigmas; o verdadeiro desafio do profissional de hoje já não é, de facto, o de “cumprir a sua função”, mas o de gerar um valor acrescentado, ou seja, dar um contributo específico e concreto para que a sua performance profissional resulte em benefícios significativamente melhores para o conjunto dos stakeholders envolvidos no contexto mais amplo onde atuam.

Este novo cometimento exigirá não só um novo “mindset”, mas também um novo “skillset”; uma nova “caixa de ferramentas constituída por competências de uma complexidade cognitiva acrescida, sobretudo as do domínio das “softskills”, como aquelas que figuram no portfólio de Davos.

A atualização deste novo tipo de competências, como “pensamento crítico”, “pensamento complexo”, “flexibilidade cognitiva” e “inteligência emocional”, entre outras, permite aos profissionais de hoje, e apetrechará os de amanhã, não só com capacidades acrescidas de adaptação às ocorrências imediatas, mas sobretudo para estarem preparados para o imprevisto, para serem capazes de darem sentido ao desconexo e decidir com coragem, lucidez e integridade, perante adversidades e armadilhas crescentes.

Por isso, o profissional com competências, e as competências profissionais, não são, de todo, “uma espécie em vias de extensão”. Além do mais, como a competência é o “azeite” que, num vaso, permanece sempre “à tona da água”, quaisquer que sejam as voltas que se lhe der, o “profissional com competências” terá também uma muito maior acuidade crítica e a “self awareness” para, nas circunstâncias mais atípicas, poder sempre encontrar uma solução mais eficaz, para orientar a sua “bússola” para o “true north” da performance de excelência.

Afinal, e remetendo para a frase que encima este texto, “os bons cantores sabem quando desafinam”.

*Mário Ceitil é presidente da APG.

  • Mário Ceitil

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