Os “gansos do Capitólio” e o futuro da CESE

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • 2 Novembro 2020

A CESE há muito perdeu a sua legitimidade e, em bom rigor, o atual contexto pandémico pode vir a ser (mais uma vez) aproveitado com o intuito de suavizar a sua perceção pública e jurisprudencial

A mitologia da CESE

No contexto da mitologia romana, é de todos conhecido o célebre episódio dos gansos do Capitólio.

Segundo a lenda, quando a colina capitolina foi assaltada, em plena madrugada, pelas tropas de Breno, no século IV a.C., os soldados romanos não teriam sido apanhados de surpresa porque os gansos que habitavam nas redondezas fizeram um particular alarido, denunciando assim a aproximação de estranhos.

Trata-se de um episódio que, com as devidas adaptações, bem pode retratar aquela que é a essência da “mitologia” da CESE, tributo vigente no ordenamento jurídico nacional desde o ano de 2014 e cujo caráter “extraordinário” parece renovar-se à medida que o decisor público vai criando, ou muitas vezes ficcionando, contextos extraordinários sucessivos.

Ainda assim, tal como no episódio romano dos “gansos do Capitólio”, também no caso da CESE as tentativas do legislador para, de forma sub-reptícia e recorrente, continuar a justificar a imperiosidade subjacente à imposição deste tributo, são o justo prenúncio de que a CESE há muito perdeu a sua legitimidade e que, em bom rigor, o atual contexto pandémico pode vir a ser (mais uma vez) aproveitado com o intuito de suavizar a perceção pública e jurisprudencial da CESE.

É papel dos vários interlocutores desmistificar esta realidade, não apenas pelo conjunto de equívocos que em si mesma encerra, mas, sobretudo, porque não tem efetiva adesão à realidade.

O OE 2021 e o prévio arrependimento confessional do legislador

São vários os momentos em que a sinonímia da CESE com o episódio dos “gansos do Capitólio” se torna possível.

O primeiro desses momentos ocorreu com o OE 2020 onde, curiosamente, o legislador optou por atribuir uma autorização legislativa ao Governo para alterar o regime da CESE, no decorrer do respetivo ano orçamental, “em função da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional e correspondente redução da necessidade de financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético”.

Tratando-se de uma autorização legislativa sobremaneira completa, torna-se óbvia a sua mensagem: o Governo (bem como a própria Assembleia da República) receou uma nova fonte de litigância alicerçada num vício de inconstitucionalidade orgânica e procurou assentir na aplicação de um regime de autorização legislativa que é, em tudo, semelhante ao aplicável aos impostos.

Sucede que, por esta via, o Governo e a Assembleia da República acabaram por assentir na necessidade de reconduzir a CESE ao regime constitucional dos impostos!

Não se trata de uma matéria menos impressiva já que, se a CESE for uma “contribuição financeira” (como, em algumas decisões relativas aos primeiros anos de vigência, se poderia entender), não haveria qualquer necessidade de recurso a uma autorização legislativa deste teor – como o próprio Tribunal Constitucional clarificou, e de forma cristalina, no Acórdão n.º 539/2015 e em decisões subsequentes.

Apercebendo-se (tarde de mais) desta trágica confissão, a Proposta de OE para 2021 substituiu esta autorização legislativa por uma norma totalmente programática, em cujos termos “[o] Governo avalia a alteração das regras da contribuição extraordinária sobre o setor energético, quer por via da alteração das regras de incidência, quer por via da redução das respetivas taxas, atendendo ao contexto de redução sustentada da dívida tarifária do SEN e da concretização de formas alternativas de financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético, tendo por objetivo estabilizar o quadro legal desta contribuição e reduzir o contencioso em torno da mesma”.

É caso para dizer que a confissão operada no OE 2020 (e agora claramente corrigida na Proposta de OE 2021) é suficientemente elucidativa sobre a real natureza da CESE: está em causa uma “contribuição especial de terceira geração”, semelhante às que muitos ordenamentos jurídicos congéneres já conhecem e tratam em paralelo aos impostos, justificando-se também, entre nós uma abordagem consonante (mesmo que tal não levasse a juízos de inconstitucionalidade).

Trata-se de matéria que o Tribunal Constitucional, com a independência analítica que, apesar de tudo, lhe vem sendo característica, mais tarde ou mais cedo será chamado a aferir.

(Finalmente!) a amortização da dívida tarifária do SEN

Muito recentemente, a ERSE veio aludir ao efetivo contributo da receita da CESE para a redução da dívida tarifária do SEN.

Afinal, como pessoalmente sempre procurámos defender – excetuando o ano de 2014, que procurou acudir à situação de emergência de todos conhecida – comprova-se que a CESE não é (nem nunca poderia ser) uma contribuição financeira, ancorada numa (onírica) equivalência de grupo que, em última análise, a aproximaria mais de uma taxa do que propriamente de um imposto.

Ta significaria, atente-se bem, considerar que a CESE está mais próxima de uma mera taxa de licença do que de um imposto energético!

Este aspeto é crucial para o futuro da CESE: a sua configuração como contribuição financeira – compreensível para o momento inaugural do respetivo regime e em que o universo de sujeitos passivos era, apesar de tudo, muito mais modesto – revela-se agora totalmente ultrapassada.

Prova disso mesmo está nos dados da ERSE e, bem assim, no entendimento do Governo, que mais não fazem senão assentir na ideia segundo a qual, subjacente à CESE está um propósito internalizador ou de reequilíbrio estrutural – que atinge com especial gravidade as entidades do setor das energias renováveis, num momento em que o seu contributo para a transição energética e descarbonização da atividade económica nacional é mais do que um dado adquirido.

Mas internalizador de quê (?) – poderá perguntar-se.

Justamente dos (putativos) sobrecustos gerados para o SEN através da vigência, de entre outros, de regimes de remuneração garantida pelos quais os respetivos promotores pagaram um preço elevado (muito elevado) e que, inclusive, foram a condição primordial para o desenvolvimento e proliferação das energias de base intermitente em território nacional – as mesmas que atualmente permitem um mix energético cada vez mais livre de CO2.

Prova disso mesmo é o facto de a ERSE aludir, como uma das componentes mais relevantes para o financiamento do SEN, ao “pagamento dos produtores eólicos ao SEN como contrapartida da adesão a regimes remuneratórios alternativos para um período adicional além do inicial”.

É caso para dizer que o decisor público dá com uma mão e tira com a outra: recebe proveitos avultados pela extensão dos regimes remuneratórios aplicáveis a setores como o das energias renováveis para, em momento subsequente, reclamar o pagamento da CESE aos respetivos promotores com base na vigência desses mesmos regimes remuneratórios…

O futuro da CESE

Tudo o que se referiu demonstra, e de forma sucinta, uma aparente sinonímia entre a lenda dos “gansos do Capitólio” e aquela que é a própria mitologia da CESE.

Nesse sentido, tal como sucedeu em relação aos soldados romanos, também os diversos intervenientes e stakeholders do setor energético têm mais do que um sinal de alerta, para aquele que poderá vir a ser o futuro da CESE.

Só uma argumentação de teor alternativo, que procure, através do confronto leal, aberto e fundamentado, discernir a verdadeira natureza da CESE e o seu alcance (in)constitucional poderá permitir a abertura de um novo capítulo nesta (ainda) muito recente história.

Até porque, noutros temas e em face de nítidas alterações de regime – como claramente vem sucedendo ao nível do regime da CESE – o Tribunal Constitucional já demonstrou ter a abertura e capacidade disruptiva de oferecer respostas que o próprio decisor público não equacionava.

  • Filipe de Vasconcelos Fernandes
  • Assistente na Faculdade de Direito de Lisboa e counsel na Vieira de Almeida

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