Planear para apoiar

  • Marta Rosas
  • 3 Novembro 2023

O Direito Civil pode contribuir, em grande medida, para o reforço da posição jurídica de quem carece de maior apoio, dando novo passo em frente.

Organizar os recursos patrimoniais disponíveis e programar o futuro pode revelar-se necessário ou conveniente pelas mais diversas razões, ao longo da vida. Todavia, num cenário de “vulnerabilidade”, a adoção de estratégias de planeamento patrimonial (destinadas a produzir os seus efeitos em vida e/ou após a morte) costuma assumir um grande relevo. Neste contexto, é natural que surja uma preocupação acrescida em garantir a disponibilidade de meios para satisfazer maiores necessidades de apoio que implicam dispêndio (p. ex., adaptação da habitação, meios de transporte, auxílio humano ou técnico, atividades de inclusão, formação, acompanhamento terapêutico, etc.). Os sujeitos jurídicos, atuando no âmbito da autonomia privada, tendem a procurar soluções capazes de concretizar esse apoio, recorrendo à celebração de negócios jurídico-privados (sem descurar, claro está, as ajudas públicas que possam existir).

O primeiro cenário que ocorre é o da pessoa que, porque conheceu certo diagnóstico (p. ex., uma doença degenerativa) ou por mera precaução, deseja determinar antecipadamente as diretrizes da gestão do seu património e acautelar o seu futuro. A autodeterminação e a possibilidade de expressar, a montante, a própria vontade têm sempre primazia. De resto, o nosso sistema jurídico já abriu as portas a um instrumento negocial privado de enorme relevo: o mandato com vista a acompanhamento (art. 156.º do CCivil).

Mas pense-se, também, no entorno da criança ou jovem com deficiência ou que se encontre noutra circunstância que reclame meios de apoio acrescidos. Suponha-se que os seus progenitores (ou outros membros da família) pretendem criar um meio de apoio de natureza patrimonial com efeitos duradouros que permita ao filho/a servir-se dele na prossecução do seu plano de vida, se assim o entender. Estes progenitores – que podem, inclusive, atuar no cumprimento de deveres de cooperação e de assistência legalmente consagrados – gostariam de auxiliar o filho/a no seu projeto de vida independente e integrada em sociedade, sempre com respeito pela sua vontade e preferências. O que podem fazer? De que instrumentos podem lançar mão de forma a erigir um “suporte patrimonial” para o presente e para o futuro?

No sistema português, terão de recorrer a negócios jurídicos de caráter “genérico” e adaptá-los à situação (muito) específica que se tem em vista. É natural, por isso, que essas estratégias negociais nem sempre se revelem “completas” ou isentas de dificuldades na sua concretização. P. ex., a doação com encargo a favor de terceiro não deixa de ser uma liberalidade, não tendo o donatário de cumprir o encargo para lá dos limites do valor da coisa doada; os contratos de renda são soluções limitadas e algo inflexíveis, gerando obrigações de dare sem a componente de administração; a fundação privada pressupõe recursos patrimoniais e humanos raramente disponíveis; a fixação de alimentos pela via contratual está sujeita ao incumprimento de quem os deve prestar; entre nós, as soluções do Direito sucessório não foram ainda ajustadas para tutela do sucessor mais vulnerável e o desejável é que qualquer meio de apoio se inicie o mais cedo possível, sem que se imponha aguardar pela morte dos constituintes; etc.

Importa disponibilizar aos particulares instrumentos negociais privados especificamente pensados, desde a génese, para dar resposta às preocupações descritas, como se tem passado noutros ordenamentos. O Direito Civil pode contribuir, em grande medida, para o reforço da posição jurídica de quem carece de maior apoio, dando novo passo em frente. Em particular, cremos que a consagração da possibilidade de constituir uma massa patrimonial especialmente funcionalizada para o suporte dessas pessoas (como se passou, p. ex., no ordenamento espanhol) permitiria dar resposta às aspirações dos sujeitos jurídicos de forma mais eficiente e global.

  • Marta Rosas
  • Professora auxiliar convidada na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

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