
Portugal dos pequenitos: O Porto paroquial
Esta é, talvez, a mais trágica ironia: numa cidade que deu nome ao país, o seu futuro continua a ser travado pela pequenez das suas políticas.
Com uma população residente a rondar os 232 mil habitantes (INE, 2021), o Porto é hoje uma cidade com importância económica e cultural muito acima do seu peso demográfico. Integra o segundo maior aglomerado urbano do país — a Área Metropolitana do Porto (AMP), com cerca de 1,7 milhões de habitantes — e é motor de uma região Norte que representa mais de 39% das exportações nacionais. Ainda assim, a cidade continua enredada em lógicas paroquiais, entravada por divisões administrativas anacrónicas que não permitem abordar assuntos tão relevantes como a temática da mobilidade na cidade ou a sua expansão urbana – Avenida Nun´Alvares.
Do ponto de vista económico, o Porto é uma cidade em transição. A terciarização é evidente, com forte crescimento no turismo, na restauração, na habitação de curta duração e na economia do conhecimento, impulsionada por universidades, centros de investigação e startups tecnológicas. O município tem sabido atrair investimento em reabilitação urbana, tem vindo a tirar partido do desenvolvimento de polos de inovação, como o UPTEC e a Porto Tech Hub, bem como apostado em infraestrutura de intermobilidade como o Terminal Intermodal de Campanhã. Contudo, esta dinâmica enfrenta dois grandes obstáculos: o bloqueio da mobilidade e a ausência de uma visão metropolitana coerente.
A VCI (Via de Cintura Interna) é, desde há muito, um símbolo da disfuncionalidade da mobilidade no Porto. Concebida nos anos 90 como um anel rodoviário de escoamento rápido, tornou-se rapidamente numa artéria saturada, com níveis de congestionamento próprios de uma cidade três vezes maior. Transporta hoje mais de 130 mil veículos por dia, superando a sua capacidade de projeto, e é atravessada por dezenas de nós urbanos, sem soluções eficientes de transporte público integradas.
A verdade inconveniente é que a VCI não falha apenas por excesso de tráfego: falha porque está sozinha. A ausência de uma rede viária complementar estruturada, a escassez de transportes públicos de elevada capacidade nas zonas periféricas, e a pulverização de decisões urbanísticas pelos 17 municípios da AMP geram um caos diário que não se resolve com mais alcatrão. Pior: continuam a ser planeados investimentos de centenas de milhões em mais túneis e mais viadutos, como se o problema da mobilidade fosse apenas uma questão de engenharia e não de política urbana.
Neste quadro, o Porto aparece como vítima de um centralismo disfarçado de descentralização. O município tem vindo a reforçar competências, mas continua manietado por uma política nacional que não reconhece a especificidade das áreas metropolitanas. Enquanto Lisboa beneficia de uma concentração natural do poder político e económico, o Porto vive entre a autonomia retórica e a dependência orçamental. A AMP, por sua vez, é uma entidade de cooperação frouxa, sem instrumentos vinculativos, sem autoridade sobre transportes ou ordenamento do território.
Um exemplo recente da tensão entre o Porto tradicional e uma cidade mais aberta ao futuro é o caso da Avenida Nun’Álvares. O projeto de requalificação, centrado na mobilidade pedonal, ciclável e na arborização do espaço público, tem sido alvo de controvérsia — mas ilustra precisamente o tipo de transformação que uma cidade precisa de abraçar para atrair talento, investimento e qualidade de vida. Cidades competitivas no século XXI são desenhadas para as pessoas, não para os carros. A nova Nun’Álvares aproxima o Porto de modelos urbanos europeus como Copenhaga ou Amesterdão, onde o espaço público é um ativo económico. Resistir a essa mudança em nome de uma suposta “tradição” é perpetuar o bloqueio da cidade a uma nova geração de residentes e empresas que procuram um ambiente urbano vibrante, verde e acessível.
O resultado é uma cidade que, apesar do seu dinamismo, vive paralisada por limites administrativos artificiais. A política habitacional, por exemplo, continua segmentada por concelhos, o que empurra milhares de residentes para municípios vizinhos e agrava a pressão sobre a VCI. O mesmo se passa com os transportes: os operadores ainda atuam como se as fronteiras concelhias fossem muros, em vez de serem costuras de um tecido urbano contínuo.
A solução não passa apenas por mais investimento, mas por governança integrada, como afirmei esta passada segunda-feira em São João da Madeira. O Porto precisa de uma autoridade metropolitana com poderes reais em matéria de mobilidade, urbanismo, habitação e ambiente — algo que Lisboa também carece, diga-se. É incompreensível que, em pleno século XXI, a segunda metrópole do país seja gerida como um arquipélago de pequenos poderes locais, mais preocupados com o alcatrão à porta do que com a coesão do território.
O discurso do “Porto independente” ou do “Porto resistente” serve pouco mais do que a nostalgia. O que se exige é liderança política com visão metropolitana, capaz de romper com a lógica paroquial que ainda domina a gestão do território. Não é aceitável que cada município da AMP continue a planear o seu centro comercial, a sua zona industrial ou a sua estação de metro, como se estivesse isolado numa ilha.
No fundo, a cidade do Porto espelha o que é Portugal enquanto Estado territorial: um país de pequenas decisões, dominado por interesses fragmentados, onde a coordenação é vista como ameaça e a escala como um problema (veja-se como exemplo paradoxal chocante a nova lei de desagregação das freguesias).
A recente alteração à Lei das Freguesias (Lei n.º 39/2021), que permite reverter fusões realizadas em 2013 e criar novas freguesias por desagregação, representa um passo atrás em termos de racionalidade administrativa e escala de gestão urbana. Onde antes tínhamos algumas freguesias agregadas que resultaram de décadas de crescimento urbano contínuo e exigências funcionais, voltar à fragmentação paroquial será comprometer a capacidade de resposta pública, dispersando recursos, multiplicando estruturas e reduzindo economias de escala. Em vez de fortalecer o papel das juntas enquanto órgãos de proximidade eficientes e tecnicamente apetrechados, este regresso ao microterritório fomenta uma lógica clientelar, atomizada e resistente à modernização da administração urbana. O Pais, mais do que mais freguesias, precisa de freguesias com mais escala, mais meios e uma nova visão estratégica — e não de um regresso à geografia sentimental e fragmentada do século XX.
Esta é, talvez, a mais trágica ironia: numa cidade que deu nome ao país, o seu futuro continua a ser travado pela pequenez das suas políticas. Enquanto a VCI se arrasta em fila, entre Matosinhos e a Ponte do Freixo, o Porto espera — não por mais obras, mas por uma política que pense além das fronteiras paroquiais. O tempo dos “Portugais dos pequeninos” já devia ter ficado para trás. Infelizmente, ele persiste, travando não só o Porto, mas o desenvolvimento equilibrado do país.
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